Cruzeiro
Seixas
Portugal
[1920-]
Levado pelas águas
sem jamais encontrar o mar
ferozmente atacado por uma flor
olho os dinossauros
idilicamente
pastando nas margens. Que vejo
eu?
Já não resta fóssil sobre
fóssil
e só os náufragos ainda
repetem os erros de ortografia
de continente em continente.
As plumagens agitadas das
palavras são estandartes
atravessando o espaço e o sono
livres em toda a sua
estranhíssima glória.
São os peixes esverdeados
que escondem sob as roupagens
os labirintos
e as maquinarias prontas a
investir
contra o paraíso.
A experiência impregnou as
pedras da sua voz rouca
e as coisas são como um
tríptico aberto
mostrando aos canibais
perplexos
os nós mais secretos
daquele marinheiro alado.
Desfia-se já o fio que há
séculos nos mantém.
Tenho frio
e imploro que me cubram com o
dilúvio
ao som de trombetas
exacerbadas:
que me cubram a mim e ao eco,
e à memória de tudo isto.
Estou ainda aqui,
e vejo
como um cego vê o mar.
Áfricas 62
…
Doem-me na minha
carne todos os anzóis do mundo
e lá fora se amanhece
trata-se apenas de uma
miniatura a escala do infinito.
Na fachada da tua torre
encoberto pela era descobrimos
patinado pelos séculos o
brasão dos sentidos
onde sobre campo azul a saudade
parte
e sempre ressuscita.
Sentadas nas soleiras das
portas
as mulheres incansáveis
cosem todas as coisas umas às
outras.
As mãos correm como cavalos na
planície
e um rapaz perde a cabeça
diante do mar.
Neste quarto azul acendem-se as
luzes uma a uma
os livros descem das estantes e
abrem-se
sobre a grande mesa vermelha
tendo uma mosca
como única testemunha.
O tremor de terra
confunde-se com o movimento dos
nossos lábios.
Dos retos descem estalactites
sem razão.
É tempo de abrir as janelas e
acreditar
que todas as coisas voam.
Áfricas 59
...
A noite chega como
uma detonação.
O arrependimento é uma chuva
opaca,
e tudo impede a verdadeira
morte,
a gratificação de uma estrela
esverdeada.
Eu vos digo tanto pior,
tanto pior para os outros
animais flutuantes.
É abrir um seio para ver um
ovo,
e saudá-lo oficialmente em
pleno circo,
é visitar os subterrâneos
durante o número dos
trapezistas.
É querer que
a aliança de um pássaro e de
um peixe
gerou estes olhos,
gasômetros ardendo
e o absurdo de uma vela,
mal iluminando esta escrita.
Nós vemos que não há copos
vazios,
vemos que um terremoto é um
beijo alucinado:
ouvimos um tronco docemente
adormecido entre a
folhagem,
projetando a clássica sombra
alongada,
passageira negra descendo a
dunas como uma flauta.
Ponham agora a luz entre as
tuas mãos,
pequenas sepulturas nuas,
e o furor da cobra querendo ser
um rio,
do rio querendo ser uma cobra,
traz o batimento dos tambores
interiores,
o som das flores no cabelo,
os sinos carnais
anunciando a carta
desaparecida,
totem de uma ilha deserta.
África 55
…
Um barco sonha com
outro barco
oferece-lhe orquídeas de som
um túmulo gótico limos todo
o mistério
lá onde a abóbada assenta
sobre a coluna vertebral
que guarda palavras algemadas
e os passos dos peregrinos a
caminho da ausência.
Estamos a um dia do fim de
qualquer coisa.
Pela mão que guardo em todos
os peitos
pelo contínuo marulhar na
solidão na minha fronte
por esta maresia que vinda do
sonho
sobe e sufoca
pela noite que se exprime no
mais profundo de cada dia
ofereço-te a eternidade
como um trapo velho dentro de
mim.
Todos os comboios atravessam o
meu corpo
todos os diamantes se suicidam
à minha porta
todas as mãos têm movimentos
copiados do mar.
Ao meu lado sobre mim dentro de
mim
como ao fim das tardes no
inferno
o segredo que a sete chaves
guardamos
passam-no agora as árvores em
voz baixa uma às outras.
Oh meu amor o fim não existe
tudo é recomeço
e tudo recomeça pelo fim.
Não esqueças esses momentos
de transgressão
mais vida do que a vida
como o cavalo que corre dentro
de si próprio
cego
até o infinito que não há.
África 61
in:
Homenagem à Realidade
Floriano
Martins [org] / 2005
http://www.publico.pt/portugal/jornal/artur-do-cruzeiro-seixas-a-palavra-amor-e-incendiaria-26922444