segunda-feira, 30 de novembro de 2015

4 poemas de Cruzeiro Seixas






Cruzeiro Seixas


                  Portugal [1920-]



Levado pelas águas
sem jamais encontrar o mar
ferozmente atacado por uma flor
olho os dinossauros idilicamente
pastando nas margens. Que vejo eu?
Já não resta fóssil sobre fóssil
e só os náufragos ainda repetem os erros de ortografia
de continente em continente.
As plumagens agitadas das palavras são estandartes
atravessando o espaço e o sono
livres em toda a sua estranhíssima glória.
São os peixes esverdeados
que escondem sob as roupagens os labirintos
e as maquinarias prontas a investir
contra o paraíso.
A experiência impregnou as pedras da sua voz rouca
e as coisas são como um tríptico aberto
mostrando aos canibais perplexos
os nós mais secretos
daquele marinheiro alado.
Desfia-se já o fio que há séculos nos mantém.

Tenho frio
e imploro que me cubram com o dilúvio
ao som de trombetas exacerbadas:
que me cubram a mim e ao eco,
e à memória de tudo isto.
Estou ainda aqui,
e vejo
como um cego vê o mar.



Áfricas  62








Doem-me na minha carne todos os anzóis do mundo
e lá fora se amanhece
trata-se apenas de uma miniatura a escala do infinito.

Na fachada da tua torre
encoberto pela era descobrimos
patinado pelos séculos o brasão dos sentidos
onde sobre campo azul a saudade parte
e sempre ressuscita.

Sentadas nas soleiras das portas
as mulheres incansáveis
cosem todas as coisas umas às outras.

As mãos correm como cavalos na planície
e um rapaz perde a cabeça
diante do mar.

Neste quarto azul acendem-se as luzes uma a uma
os livros descem das estantes e abrem-se
sobre a grande mesa vermelha
tendo uma mosca
como única testemunha.

O tremor de terra
confunde-se com o movimento dos nossos lábios.

Dos retos descem estalactites sem razão.

É tempo de abrir as janelas e acreditar
que todas as coisas voam.



Áfricas   59




...








 
A noite chega como uma detonação.
O arrependimento é uma chuva opaca,
e tudo impede a verdadeira morte,
a gratificação de uma estrela
esverdeada.
Eu vos digo tanto pior,
tanto pior para os outros animais flutuantes.
É abrir um seio para ver um ovo,
e saudá-lo oficialmente em pleno circo,
é visitar os subterrâneos
durante o número dos trapezistas.
É querer que
a aliança de um pássaro e de um peixe
gerou estes olhos,
gasômetros ardendo
e o absurdo de uma vela,
mal iluminando esta escrita.
Nós vemos que não há copos vazios,
vemos que um terremoto é um beijo alucinado:
ouvimos um tronco docemente adormecido entre a
folhagem,
projetando a clássica sombra alongada,
passageira negra descendo a dunas como uma flauta.
Ponham agora a luz entre as tuas mãos,
pequenas sepulturas nuas,
e o furor da cobra querendo ser um rio,
do rio querendo ser uma cobra,
traz o batimento dos tambores interiores,
o som das flores no cabelo,
os sinos carnais
anunciando a carta desaparecida,
totem de uma ilha deserta.




África    55






Um barco sonha com outro barco
oferece-lhe orquídeas de som
um túmulo gótico limos todo o mistério
lá onde a abóbada assenta sobre a coluna vertebral
que guarda palavras algemadas
e os passos dos peregrinos a caminho da ausência.

Estamos a um dia do fim de qualquer coisa.
Pela mão que guardo em todos os peitos
pelo contínuo marulhar na solidão na minha fronte
por esta maresia que vinda do sonho
sobe e sufoca
pela noite que se exprime no mais profundo de cada dia
ofereço-te a eternidade
como um trapo velho dentro de mim.

Todos os comboios atravessam o meu corpo
todos os diamantes se suicidam à minha porta
todas as mãos têm movimentos copiados do mar.

Ao meu lado sobre mim dentro de mim
como ao fim das tardes no inferno
o segredo que a sete chaves guardamos
passam-no agora as árvores em voz baixa uma às outras.

Oh meu amor o fim não existe tudo é recomeço
e tudo recomeça pelo fim.
Não esqueças esses momentos de transgressão
mais vida do que a vida
como o cavalo que corre dentro de si próprio
cego
até o infinito que não há.




África    61



in: Homenagem à Realidade

Floriano Martins [org] / 2005













quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Balada dos venenos / Ballade of poisons - by Allen Ginsberg





Allen Ginsberg


Balada dos venenos

Com o óleo que listra as ruas em mágica coloração,
Com a fuligem que cai sobre a vegetação da cidade.
Com o enxofre no porão & o cheiro do escuro carvão
Com a poluição que avermelha as suburbanas colinas do poente
Com a Sucata que deixa negros & brancos com a vontade doente
Com as bolhas de plástico que só imensas eras dissolverão
Com os novos plutônios que só dissiparão
A febre dos venenos após tempo milenar,
Com os pesticidas que cercam e giram Cadeias de alimentação
Possa sua alma ter pouso, possam seus olhos chorar.


Com os feros hormônios no frango & no ovo aveludado
Com o pânico da tinta vermelha na carne do hambúrguer
Com as drogas velhas, nitrato no porco fatiado
Com o cereal açucarado crianças aos berros de morrer,
Com  aditivo Químico que causa Câncer
Com a bexiga e a boca no seu salame,
Com o Estrôncio Noventa nos leites de Mami,
Com as vozes mais sensuais cerveja nas orelhas despejar
Com os Copos de Nicotina até que você vomite
Possa sua alma ter pouco, possam seus olhos chorar.


Com o forno de microondas televisão
Com o Cádmio a reinar nas fruteiras árvores
Com o Centro de Comércio em noturna ejaculação
Com a praia de Coney Island numa babugem de Fezes
Enquanto Baleias azuis cantam nos mais raros mares
Com mundos Amazônicos e peixe na imensidão
Lavado em Rockefellers de ensebada Poção
Com terrores atômicos o oleoso labor alimentar
Com a CIA manchando do Mundo a emoção
Possa sua alma ter pouso, possam seus olhos chorar.



                    Envoi
Presidente, da barata do ódio a devoção,
Povo envenenado com radioativa loção,
Do ódio sem alma energia biônica se aveadar
Possa seu mundo ter limpa emoção,
A alma encontrar pouso, olhos de muito chorar.





trad. Afonso Henriques Neto (in Fogo Alto / Azougue / 2009)




Ballade of poisons

With oil that streaks streets a magic color,
With soot that falls on city vegetables
With basement sulfurs & coal black odor
With smog that purples suburbs’ sunset hills
With Junk that feebles black & white men’s wills
With plastic bubbles aeons will dissolve
With new plutoniums that only resolve
Their poison heat in quarter million years,
With pesticides that round food Chains revolve
May your soul make home, may your eyes weep tears.

With freak hormones in chicken & soft egg
With panic red dye in cow meat burger
With mummy med’cines, nitrate in sliced pig
With sugar’d cereal kids scream for murder,
With Chemic additives that cause Cancer
With bladder and mouth in your salami,
With Strontium Ninety in milks of Mommy,
With sex voices that spill beer thru your ears
With Cups of Nicotine till you vomit
May your soul make home, may your eyes weep tears.

With microwave toaster television
With Cadmium lead in leaves of fruit trees
With Trade Center’s nocturnal emission
With Coney Island’s shore plopped with Faeces
While blue Whales sing in high infrequent seas
With Amazon worlds with fish in ocean
Washed in Rockefellers greasy Potion
With oily toil fueled with atomic fears
With CIA tainting World emotion
May your soul make home, may your eyes weep tears.


          Envoi

President, ’spite cockroach devotion,
Folk poisoned with radioactive lotion,
Spite soulless bionic energy queers
May your world move to healthy emotion,
Make your soul at home, let your eyes weep tears.


January 12, 1978

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

poemas em Manual da Loucura de Gabriel L'Abbate Melo










Gabriel L'Abbate Melo


                                         Manual da Loucura
                                                                     Anome, BH, 2014


O Impossível

Ele caminhava, não havia maus muros e tampouco cercas e
paredes. Tudo isso havia caído em desuso. Distraídos, os in-
gênuos por pouco não se sentiam realmente libertos andando
pela vastidão. Porém o olho vigiava por toda parte, mas ele
não havia se instalado dentro. Lá, voa, ainda e sempre, a ave
imaginação. Tal ave nunca será vigiada, explorada e controlada.
Por isso, quando não a temem, simplesmente a ignoram.




Outro dia

Estive na casa do poeta, o poeta estava lá, olhando algum
lugar além. Ele também já não podia dizer. Ele estava atrás
de uma pilha de papéis e livros, cauteloso em suas ações. Já
não podia mais dizer. Estive lá na casa do poeta, ele estava lá,
olhando algum lugar além. Tomamos um café, conversamos.
Ele me mostrou alguns dos poemas fantásticos, olhou para
algum lugar além, e me explicou porque não iria publicá-los.





O edifício

Vejo-o por fora, mas também vejo seus tijolos. Não porque
eu os veja, mas porque eu os sei. Porém eu já não sei o que
eu via antes lá onde hoje vejo o que sei. Quase penso que me
desensinaram a ver. Porque também educaram o pensamento
para reproduzir. Não se cria impunemente no mundo dos
padrões, eles são os patrões do do memedo, os culpados os
culpados por toda culpa.







O Currículo de um não ridículo

Eu sou graduado
Na milenar arte de ficar deitado
Sob o espaço infinito.
Eu sou perito
Em estrelas, luas, sóis, cosmovisões e sou Doutor
Na fabulosa arte do amor.
Tais títulos me abrirão portas,
Se for preciso escrever um artigo
Sobre o perigo de não se fazer nada
Disso que querem que você faça.




Quintal cercado

O cão bravo, por não provar da Liberdade
-Ela sorri, digita por certo besteiras-,
Ao ver os cães na praia, esses cães de verdade,
Late bravo invejando as tolas brincadeiras.

Logo os panos das tendas, azuis ou vermelhos,
Quais imagens que jamais se prendem sob espelhos,
Esvoaçam sem mastros para céus distantes!
-Velho barco encalhado em areias picantes...

Cansou-se de esperar um gentil que o empurrasse,
Tal qual empurra a noite o novo sol que nasce.
Pois a Gira se serve pensando em champanhe,
Não lhe importando qual mão a taça acompanhe.”

Então, ciclos medonhos, a casa já não
Possui donos, sem teto as paredes, e o cão,
Seus restos enfadonhos, rosnam sons pequenos
Quando pisa na grama alta um raio de Vênus.












Os 4 loucos

Sabe-se que o primeiro louco foi o profeta,
O primeiro a perceber a ilusão do tempo.
Dizem que o segundo foi o místico,
O primeiro a perceber a ilusão do espaço.
O terceiro louco foi o amante,
O primeiro a amar só por amar.
E o quarto louco foi o poeta. Mas não souberam explicar.








E aqueles que foram vistos dançando foram julgados
insanos por aqueles que não podiam escutar a música.”
                                                                              Friedrich Nietzsche


sexta-feira, 6 de novembro de 2015

MEDICAMENTO COMUM COM UM CONTO DENTRO - Paulinho Assunção


 







Paulinho Assunção






MEDICAMENTO COMUM COM UM
CONTO DENTRO


Indicação terapêutica: Estabelecer redes e campos magnéticos
em áreas embotadas do cérebro e em locais da circulação
sanguínea atacados por bombardeios de monólogos açucarados.
Uso adulto, exclusivamente adulto.

Identificação do medicamento: Em folhas manuscritas que somam
48 linhas. Tinta azul. Irregularidade na grafia em louvor da sedução.

Uso: Estritamente visual. Proibido o uso oral ou venoso.

Composição: Quatro personagens visíveis, oito personagens
invisíveis. Paisagem urbana. Ação principal na casa de número 87, da
Avenida das Ninfas de Touca. Parágrafos curtos ao longo das 48 linhas.
O que seria o último parágrafo deve ser visto apenas pela imaginação.
O medicamento pode ser dobrado e colocado no bolso do paletó.

Advertências: Não deve ser lido mais de sete vezes ao dia, pois
provocará incontroláveis espirais de delírio. Se for lido em total
solidão, aconselha-se, junto, o uso de bebidas alcoólicas, especia-
mente destilados fortes.

Pessoas que fazem oh: Durante as sessões de leituras analisadas, não
foram observados danos em pessoas que fazem oh.

Precauções: A absorção visual é rápida, praticamente instantânea. Em
segundos, a parte b do medicamento circulará pelos neurônios, e a parte a,
mais potente, estará em trânsito por artérias e veias. Em determinados
casos, há relatos de ereção e inundação vulvar.

Pessoas que fazem ih: Pessoas que fazem ih devem ler com as pernas
elevadas, de preferência com os pés tocando a parede do quarto.

Viagem: O medicamento pode ser transportado sem obstáculos em todos
os países signatários do Tratado Geral de Combate aos Açúcares Literários,
de 1922.

Aspecto físico: Em certas ruas de Paris, Toronto, Oslo e Copenhague, o medicamento poderá adquirir tonalidade azulácea, mas sem perder
suas propriedade terapêuticas.

Persistência de uso: Após a vigésima leitura, foram observadas excitações
paranoicas em alguns leitores, que teriam descoberto dois assassinatos
na Avenida das Ninfas de Touca. Os assassinatos não existiram.

Efeitos: Em 99% dos casos, o efeito terapêutico começa a partir da frase
que ilumina a face oculta dos neurônios roxos, na segunda ou terceira leitura.
A frase, com pequenas variações caso a caso, é esta: “O olhar de Roland
Barthes ainda está atrás da árvore”.








mineiro de São Gotardo, é escritor e jornalista.


Foi membro da Comissão de Redação do SLMG, em 1983

.
Tem mais de dez livros publicados, entre poesia, ficção, biografia e infantojuvenil.






In: SLMG nº 1360 BH mai/jun 2015 nº 1360




 

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