Surrealismo
em Paranoia
Assim
é o preâmbulo à obra Paranoia,
que traz mais descrições, mais metáforas, mais confissões, tudo
carregado de um desejo de transgressão. Mas como ainda é
confessional, como ainda há um sujeito poético a derramar sua fúria
subjetiva enquanto caminha pelas ruas, entre asfalto e delírios, é
possível encontrar possibilidades de identificação. É a tensão
que se mantem até o fim, entre transgredir e confessar. Ele vem
agredir os conformados, os tradicionais, e amigar-se com os
transgressores.
Piva
ataca e repele um mundo próximo que ele desesperadamente ama e
rejeita, mas sobretudo experimenta até o fundo de suas contradições.
Estas constituem a razão da sua desconjuntada realidade; estão no
centro de sua experiência lírica e na raiz de seu delírio.
(ARRIGUCCI Jr, 2009, p. 52)
Ainda
mais no terreno da sexualidade, numa sociedade repressora, cheia de
tabus. O erotismo vem como um manifesto do corpo, ou uma amostra de
como se fazer poesia com o corpo. Assim o erotismo ao irromper no
cotidiano de padrões e repressões, quando o verter de energia
erótica leva à valorização do corpo, pois não somos só
intelecto, mas carne, nervos, vísceras, genitais.
Na
leitura dos poemas é possível encontrar um desabafo de andarilho, a
descrever e transgredir, a apresentar e deformar, como se diante dele
uma névoa de delírio encobrisse uma realidade que não pode ser
transcrita. Lirismo e deboche, confissão e transgressão se mesclam,
se perturbam, criam um poema meio poema em prosa, mas ainda em
versos, estes bem longos, quase de perder o fôlego, num ritmo bem
próximo de uma fala entrecortada, de monólogo interior, de fluxo de
consciência, quando o prosaico vem romper uma cadência de figuras
líricas, propositalmente, como contraponto.
Verdadeiros
cortes prosaicos dentro de impulsos poéticos, assim o 10
% de desconto
que invade o desvario lírico em Visão
1961 :
a
náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e
lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas
tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os
lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas
tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os
ovários
dos
manequins
ou
quando o prosaico se mescla ao lirismo derramado com a citação ou
referência a acidentes topográficos, nomes de logradouros,
paisagens da cidade-sucata,
a selva de concreto-e-aço que recebe o nome do apóstolo São Paulo,
já
é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias
vacilava com cabelos presos (Visão 1961)
vacilava com cabelos presos (Visão 1961)
na
rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
(Visão
de São Paulo à noite)
a
praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças
brincando
na
tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
(Praça
da República dos meus Sonhos)
Esta
presença da cidade no cerne dos poemas apresenta uma
referencialidade no estilo alucinado, como bem notou o poeta e
crítico Claudio Willer, numa Uma
Introdução à leitura de Roberto Piva,
ao se referir a uma visão alucinatória da metrópole, cenário de
delícias & suplícios,
Designado
por Piva em diversas ocasiões como visão
alucinatória
de São Paulo, Paranoia
expressa
a gama de relações de afinidade e antagonismo entre o 'eu' e o
mundo, o poeta e a metrópole. Eu abro os braços para as cinzentas
alamedas de São Paulo. Poesia com os pés no chão, com uma ligação
com o aqui e agora, opera na dimensão do concreto. Daí a quantidade
de lugares da cidade expressamente nomeados.
Em
andanças pela cidade-sucata
- a qual é objeto de amor & ódio – o poeta confessa imagens
que dançam entre o real e o delírio, uma vez que suas visões têm
uma base material, está lá diante dele. Segundo as palavras de
Fernando Paixão (1984), ao comentar a visão de Gaston Bachelard
(1978) sobre poesia, “o
poeta orienta seu itinerário pelo mundo material”,
pois sua criação poética sempre parte de um 'mundo real', mesmo
que depois siga para um plano 'surreal',
O
sonho dos poetas com as palavras, contudo, deve ser um sonho
rigoroso, militante, teimoso. Sua caminhada pelas casas das palavras
não se dá à toa, mas define-se pelo próprio gesto de habitar,
ocupá-las com presença humana, decorá-las com coisas da realidade.
Em
outras palavras: mesmo alçando o voo de imagem e da emoção, o
poeta orienta seu itinerário pelo mundo material. A inspiração
profunda da poesia é a realidade, tanto a social como a da natureza,
com a qual mantém uma forte relação simbólica. (1984, pp. 80-81)
Entre
o referencial e o imaginário, o sujeito poético se percebe a
confessar visões e alucinações, a caminhar na cidade plena de sons
& imagens espectrais, como percebemos nos poemas em prosa do
poeta surrealista Robert Desnos, em impressões do absurdo e do
indizível, O
vento soprava sobre a cidade. Os cartazes do Bebê Cadum chamavam os
emissários da tempestade e sob sua guarda a cidade inteira tinha
convulsões.
do poeta que vê a cidade transfigurada, quando Piva aponta
minhas
alucinações pendiam fora da alma protegida por caixas de matéria
plástica
plástica
(Visão
1961)
reino-vertigem
glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
(Visão de São Paulo à noite)
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
(Visão de São Paulo à noite)
o
sujeito poético em andanças adiante, a trafegar junto a multidão,
aqueles transeuntes entre pressa e fadiga, mas a continuar solitário
em seus delírios, então confessados, como à espera de alguém, um
leitor, a ouvi-lo,
eu
sou uma solidão nua amarrada a um poste
(Boletim
do Mundo Mágico)
Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros
(No
Parque Ibirapuera)
Em
andanças na solidão povoada que o poeta encontra seus mestres, com
os quais dialoga, daí as tantas intertextualidades, não como um
pedantismo de erudito, a enumerar leituras, citações, referências,
mas como um abrigo junto aos que tanto o influenciaram, na escrita &
vivência,
na
solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um
Lótus colando sua boca no meu ouvido […]
Lótus colando sua boca no meu ouvido […]
(Visão
1961)
Eu
era um pouco da tua voz violenta, Maldoror,
quando os cílios do anjo verde enrugavam as
chaminés da rua onde eu caminhava
quando os cílios do anjo verde enrugavam as
chaminés da rua onde eu caminhava
(Poema
Submerso)
As
imagens se derramam, surgem com simultaneidade, mesmo sobrepostas,
tudo ao mesmo tempo, em sintagmas/versos recortados dentro de longos
períodos, quando enumerações são retomadas por
anáforas/repetições, assim como se lê em Paranoia
em Astrakan,
Eu
vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
[…]
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
[…]
onde
um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
ou em
Visão
de São Paulo à noite,
no qual tudo se acumula diante de retinas, em alucinações e
êxtases, num reino-vertigem,
aquele mundo de contrastes, de sujeira e promiscuidade, no qual o
sujeito poético convive com a figura maldita de Maldoror, ou vê nos
garotos desejados aqueles anjos invocados nos poemas simbolistas do
poeta austríaco Rainer Maria Rilke (1875-1926),
Maldoror
em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
[…]
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
[…]
sou
ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cú nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cú nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
Imagens absurdas como aquelas dos quadros do nederlandês Pieter
Bruegel (1525-1569) de fins da Idade Média, com cenas em que tudo se
acumula, com vários ângulos, quando o olhar se perde em mil
detalhes, em cenários fragmentados em dezenas de cenas, em festas
populares, banquetes, colheitas, conflitos, massacres, epidemias. O
tudo
ao mesmo tempo agora
atualizado pela pintura do espanhol Pablo Picasso (1881-1973), na
qual vários ângulos simultâneos são dados aos nossos olhos,
Nas
boites onde comias pickles e lias Santo Anselmo
nas
desertas ferrovias
nas
fotografias inacessíveis
nos
topos umedecidos dos edifícios
nas
bebedeiras de xerez sobre os túmulos
As
leguminosas lamentavam-se chocando-se contra o
vento
drogas
davam movimentos demais aos olhos
Saltimbancos
de Picasso conhecendo-te numa viela
maldita
e os ruídos agachavam-se nos meus olhos
[…]
os
fios telegráficos simplificam as enchentes e as secas
os
telefones anunciam a dissolução de todas as coisas
a
paisagem racha-se de encontro com as almas
o
vento sul sopra contra a solidão das janelas e as
gaiolas
de carne crua
[…]
(Poema
de ninar para mim e Bruegel)
É
nas visões que o estilo surrealista mais se destaca, pois o que
podemos ler é uma alucinação do que já se mostra delirante para o
poeta, ébrio de andanças numa cidade que é descrita em mil ângulos
cubistas, em movimentos desenfreados que somente podem ser captados
por uma escrita febril, tão ébria quanto,
na
porta do bar eu estou confuso como sempre mas as galerias do
meu crânio não odeiam mais a batucada dos ossos
colégios e carros fúnebres estão desertos
pelas calçadas crescem longos delírios
punhados de esqueletos são atirados no lixo
eu penso nos escorpiões de outro e estou contente
os luminosos cantam nos telhados
eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens
mas o céu roxo é uma visão suprema
minha face empalidece com o álcool
meu crânio não odeiam mais a batucada dos ossos
colégios e carros fúnebres estão desertos
pelas calçadas crescem longos delírios
punhados de esqueletos são atirados no lixo
eu penso nos escorpiões de outro e estou contente
os luminosos cantam nos telhados
eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens
mas o céu roxo é uma visão suprema
minha face empalidece com o álcool
(Boletim
do Mundo Mágico)
Outros
poemas evocam ainda mais o mundo onírico, pois que gerados em
sonhos, e na linguagem dos sonhos pretendem ser transcritos, como
aqueles quadros de Salvador Dalí, nos quais é possível imergir nos
sonhos e pesadelos do pintor a confessar suas obsessões em imagens
sobrepostas,
em padrões repetidos de cores e formas, em alucinações, quando
relógios derretem e corpos se recortam, se interpenetram, se expõem
entre penumbras,
Meus
pés sonham suspensos no Abismo
minhas cicatrizes se rasgam na pança cristalina
eu não tenho senão dois olhos vidrados e sou um órfão
havia um fluxo de flores doentes nos subúrbios
(Boletim do Mundo Mágico)
minhas cicatrizes se rasgam na pança cristalina
eu não tenho senão dois olhos vidrados e sou um órfão
havia um fluxo de flores doentes nos subúrbios
(Boletim do Mundo Mágico)
Eu
sonhei que era um Serafim e as putas de São Paulo avançavam
na
densidade exasperante
estátuas
com conjuntivite olham-me fraternalmente
defuntos
acesos tagarelam mansamente ao pé de um cartão de visitas
bacharéis
praticam sexo com liquidificadores como os pederastas cuja
santidade
confunde os zombeteiros
terraços
ornados com samambaias e suicidas onde também as confissões
mágicas
podem causar paixões de tal gênero
relógios
podres turbinas invisíveis burocracias de cinza
cérebros
blindados alambiques cegos viadutos demoníacos
capitais
fora do Tempo e do Espaço e uma sociedade Anônima
regendo
a ilusão da perfeita Bondade
(O
Volume do Grito)
Eu
vejo Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília
ele
me espera no largo do Arouche no ombro de um santuário
hoje
pela manhã as árvores estavam em Coma
meu
amor cuspia brasas nas bundas dos loucos
(Stenamina
Boat)
Múltiplas
imagens surrealistas explodem nos poemas, com exageros de delírios,
a partir dos faróis do trânsito selvagem, o brilho nos anúncios de
néon, refletidos nas vitrines sedutoras, as centenas de luzes e
reflexos que alimentam as alucinações da mente
enlouquecida,
Na
esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite,
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite,
(Visão
de São Paulo à noite)
e
um milhão de vaga-lumes trazendo estranhas tatuagens no
ventre
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade
(Jorge
de Lima, panfletário do Caos)
minhas
almas estão sendo enforcadas
com
intestinos de esqualos
meus
livros flutuam horrivelmente
no
parapeito meu melhor amigo
brinca
de profeta
no
meu cérebro oito mil vagalumes
balbuciam
e morrem
(Poema
lacrado)
os
insetos as nuvens costuram o espaço avermelhado de um céu sem
dentes
as
copeiras se estabelecem nas sacadas para gritar
o
sangue fermenta debaixo das tábuas
meninas
saem de mãos dadas sem que a Tarde deixe marca nas unhas
[…]
almas
inoxidáveis flutuando sobre a estação das angústias suarentas
as
palavras cobrem com carícias negras os fios telefônicos
no
ar no vento nas poças as bocas apodrecem enquanto a noite
soluça
no alto de uma ponte
(Rua
das Palmeiras)
O poeta se percebe ao adentrar um imenso pesadelo de pressa e de
carências, quando suas palavras se perdem ao vento, na indiferença
e na incompreensão dos transeuntes em imensas multidões de
apressados e solitários, numa vida de correria para satisfazer
necessidades cada vez maiores. Tanto que, tempos depois, em
entrevista de abril de 2000 para a Folha
de São Paulo,
Piva esclarece seu método de delirar, a explicitar sua poética na
obra de 1963, a confirmar a influência de Dalí,
Paranoia
é um imenso pesadelo. Transformei São Paulo em uma visão de
alucinações. Apliquei o método paranoico-crítico criado por
Salvador Dalí: o paranoico se detém num detalhe e transforma aquilo
numa explosão de cores, de temas, de poesia. Fiz isso, mas apenas
seguindo a intuição e a inspiração.
Em
sua solidão de poeta-andarilho apenas encontra diálogos possíveis
com seus mestres de poesia e expressão, sem pedantismo, apenas
identificação pela fortuna literária, que congrega os amigos e os
poetas de geração, dispersos pela metrópole-necrópole,
mas unidos quando o assunto é vida-de-devoção-literária. Assim
ele pode dialogar com o poeta modernista Mário de Andrade
(1893-1945), em pleno Parque Ibirapuera, em intertextos com Ginsberg
e Fernando Pessoa, lembrando o espanhol García Lorca, sendo que
todos eles foram leitores do poeta norte-americano Walt Whitman
(1819-1892), uma clara influência para os poetas da Geração
Beat,
assim, numa teia-tessitura de poetas-leitores-de-poetas, que
evidenciam homenagens e continuidade, quando a vanguarda procura
reler a tradição.
Piva
sabe muito bem que atualiza o mundo de Pauliceia
Desvairada,
obra de Mário de Andrade, publicada em 1922, disposta no cenário da
São Paulo de início do século 20, cidade dependente do comércio
do café, ainda sem industrialização, bem diversa quatro décadas
depois, com vida agitada, voos comerciais, desprezo ao lirismo,
É
noite nos teus poemas, Mário!
Onde anda agora a tua voz?
Onde exercitas os músculos da tua alma, agora?
Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços
Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem
como numa lagoa
É impossível que não haja nenhum poema teu
escondido e adormecido no fundo deste parque
[…]
Onde anda agora a tua voz?
Onde exercitas os músculos da tua alma, agora?
Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços
Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem
como numa lagoa
É impossível que não haja nenhum poema teu
escondido e adormecido no fundo deste parque
[…]
Agora,
Mário, enquanto os anjos adormecem devo
seguir contigo de mãos dadas noite adiante
Não só o desespero estrangula nossa impaciência
Também nossos passos embebem as noites de calafrios
Não pares nunca meu querido capitão-loucura
Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores
suspensa em teu ritmo.
seguir contigo de mãos dadas noite adiante
Não só o desespero estrangula nossa impaciência
Também nossos passos embebem as noites de calafrios
Não pares nunca meu querido capitão-loucura
Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores
suspensa em teu ritmo.
(No
Parque Ibirapuera)
O
mundo está lá fora, ao redor, mas é irrepresentável, apenas
sugerido pela descrição-alucinação, a se derramar a
subjetividade, meio a deformações & delírios, numa colagem ao
estilo surrealista, atualizado por uma percepção
Beat,
urbana, underground,
de leituras de então, no início da década de 1960, como lembra
Willer ao se referir ao contexto da escrita de Paranoia,
em diálogo com outros autores, outros artistas (como o fotógrafo
Wesley Duke Lee, 1931-2010),
Escrito
logo a seguir, no primeiro semestre de 1962, publicado um ano depois,
Paranoia
é um resultado desse encontro da beat,
especialmente de [Allen] Ginsberg e também de Gregory Corso com sua
escrita fragmentária, com tudo o que ele [Piva] já havia lido. A
criação dos poemas foi complementada e completada por andanças em
companhia do artista plástico Wesley Duke Lee, que tirou centenas de
fotos, das quais foram selecionadas aquelas que ilustram a edição,
dialogando com os poemas.
O
diálogo com os poetas e artistas, da tradição ou contemporâneos,
vem impedir que a obra Paranoia
seja um mero relato de um poeta urbano, marginal, alucinado,
ensimesmado, egocêntrico e megalomaníaco. Sem este diálogo não
haveria a possível identificação do/a leitor/leitora, pois
este/esta se sente a integrar uma longa sucessão de leitores,
autores-leitores, que compartilham visões e sentimentos do mundo, a
testemunharem vivências e confidências que levam aquele/aquela que
se dedica à leitura para além de um mero texto, antes para o cerne
da consciência, para a autoconsciência, que mescla referencial e
alucinação, representação e delírio.
Conclusão
Ao
usar o método de escrita automática e recorrer aos delírios, o
poeta Roberto Piva, em sua obra Paranoia,
conduz o leitor até a cidade-metrópole de São Paulo, uma
localidade real, mas transfigurada pelo imaginário. É possível
abrir um mapa rodoviário, ou acessar um mapa digital, para seguir os
percursos do poeta pela ruas da metrópole, ou cidade-sucata, espaço
amado e odiado que é apresentado como espaço literário de
descrições e confissões. Torna-se a metrópole-necrópole
num fértil e transloucado reino-vertigem.
Não
apenas descritivismo, enumerações geográficas, não apenas
delírios, mas uma mescla de referencial e imaginário, quando tudo
interligado na tessitura poética, inseparáveis. Caso contrário, o
tecido da poética piviana se desfaria, em mero nonsense
ou meras enumerações de locais, figuras e situações. A amarra
está devidamente demonstrada pelas imagens surrealistas. Há uma
fusão de vivência e escrita, tal como almejada pelos surrealistas e
pelos poetas da Geração
Beat,
que não faziam separação entre escrever e viver, numa integração
vida e obra.
Sem
o referencial, a poética piviana se perderia em solipsismos e
megalomania, a agredir e blasfemar, sem outro sentido que os arroubos
da juventude. Não apenas delírios e alucinações criam a poética,
mesmo a surrealista, mas a construção da linguagem, em metáforas e
metonímias, o uso de intertextos, a exploração de anáforas e
enumerações, a sobreposição de imagens, os diálogos com a
tradição literária. O estilo surrealista está presente na obra
Paranoia,
de Roberto Piva, como um dos tijolos fundamentais de sua construção,
além das referencialidades e espaços existentes, passíveis de
serem capturadas por fotos (aquelas do artista Wesley Duque Lee), por
mais que o imaginário se faça a partir do plano referencial, fora
do textual. É no amálgama de referencial e imaginário que se
constrói e se pereniza a poética piviana, atemporal mesmo que o
cenário, a cidade, seja temporal.
dez/14
Leonardo
de Magalhaens
(Leonardo
Magalhães Silva)
Fale
UFMG
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...