Fernando Bonassi
crônicas
na Folha
de São Paulo
2002
- 2006
12
/ POBRES
PAULISTAS
Homens
atarantados pelas ruas de São Paulo. Homens possessos respondendo
processos. Homens honestos em casos funestos. Homens indigestos.
Homens armados fazendo homens de alvo. Homens levados. Homens
mutilados chorando no asfalto. Homens esmagados. Homens socorridos.
Homens resignados como cachorros abandonados. Homens afamados. Homens
afobados. Homens desconfiados recebendo recados. Homens sérios
cultuando cemitérios. Homens felizes com poeira nos narizes. Homens
chapados gargalhando de fracassos. Homens atléticos de cérebros
esqueléticos. Homens religiosos e seus deuses preguiçosos. Homens
desenganados e revólveres emprestados. Homens incomodados sem o
útero inflamado. Homens angelicais e suas cólicas renais. Homens
ferozes em carros velozes. Homens siderados. Homens excitados. Homens
seduzidos. Homens ricos e guarda-costas aflitos. Homens de couraça.
Homens sob ameaça de uma mosca que passa. Homens escravizados
amarrados por contratos. Homens educados por livros copiados. Homens
entendidos procurando por maridos. Homens assumidos. Homens
revoltados agarrados em alambrados. Homens em turma. Homens em turba.
Homens amargurados adoçados por retratos. Homens desmemoriados.
Homens desaparecidos. Homens recomendados acompanham certificados.
Homens assinalados por chupões avermelhados. Homens marcados. Homens
apaixonados. Homens enlouquecidos. Homens traídos por telefones
batidos. Homens falados. Homens falidos. Homens asmáticos curvados
sobre cigarros. Homens decentes tragados por enchentes. Homens do
cacete! Homens descartáveis em embalagens memoráveis. Homens
especiais para burradas monumentais. Homens oficiais. Homens
profissionais para as coisas normais. Homens de coração. Homens de
prontidão. Homens de valor derretendo no calor. Homens diferentes.
Homens recorrentes. Homens indigentes. Homens parecidos como pães
amanhecidos. Homens baratos como ratos. Homens de brio morrendo de
frio. Homens sem camisa vivendo de brisa. Homens fervendo. Homens
querendo. Homens de família escapando da vigília. Homens cansados
em ônibus desgovernados. Homens apertados. Homens espremidos. Homens
contrariados com seus quereres adiados. Homens de fibra com
intestinos presos. Homens de palavra por um fio de barba. Homens de
visão com a cara no chão. Homens civilizados. Homens vilanizados.
Homens com pressa cumprindo promessa. Homens lacônicos em caixas
eletrônicos. Homens vitoriosos e troféus charmosos. Homens geniosos
de humores horrorosos. Homens blindados. Homens dotados. Homens
batidos. Homens condecorados e diplomas amassados. Homens morais e
suas causas fatais. Homens protocolares com ideias escolares. Homens
desperdiçados. Homens acostumados. Homens escandalizados. Homens
visados e cheques sem fundo. Homens esquivos e projetos escusos.
Homens sem juízo causando prejuízo. Homens gordos como presuntos,
espertos como defuntos. Homens encoxando valises. Homens criando
varizes. Homens danados por danos causados. Homens encalacrados por
lacres violados. Homens safados. Homens maduros. Homens seguros.
Homens comprometidos com carnês vencidos. Homens vidrados de ovos
virados. Homens da elite acometidos de artrite. Homens do poder.
Homens de f... Homens coitados com rabos inchados. Homens
atrapalhados por raciocínios embotados. Homens doentes arreganhando
os dentes. Homens sensíveis com problemas visíveis. Homens
banguelas batendo panelas. Homens envergonhados em banheiros
imaculados. Homens preparados. Homens treinados salivando ao chamado.
Homens desencontrados por mapas inalterados. Homens de achados.
Homens parados. Homens perdidos. Homens empreendedores despencando de
elevadores. Homens de posição tiradas da televisão. Homens
atuantes com memória de elefante. Homens fardados. Homens formados.
Homens fornidos. Homens esquecidos. Homens esquisitos. Homens de
programa. Homens de pijama. Homens bomba. Homens burros. Homens
sanduíche. Homens morcego. Homens comuns. Homens rã. Homens
engolindo sapos. Homens estudados e suas teses de mestrado. Homens
alterados no trânsito engarrafado. Homens atropelados por carrinhos
de supermercados. Homens de bem para o ano que vem. Homens imolados.
Homens amolados. Homens atolados. Homens cheios de sonho, cheios de
sono. Homens querendo paz. Homens querendo mais. Homens demais.
Homens provados à prova de enfado. Homens comprados. Homens
vincados. Homens vendidos. Homens carentes feito sementes. Homens
valentes feito valetes. Homens prostrados feito estrados.
Bandeirantes, imigrantes, retirantes, arrivistas, homens de passagem,
homens paulistas. Homens vergados pelo peso do passado. Homens do
futuro por trás dos muros. Homens com filhos ajoelhados no milho.
Homens aos milhões, aos porrilhões. Homens da cidade. Homens de
verdade. Homens como nós. Homens solitários varejando por salários.
Homens atarantados pelas ruas de São Paulo.
fonte:
A
BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
São
Paulo / Novo Século / 2007
13/
QUANDO ESTIVER CONFORTÁVEL
Cuidado.
Acontece quando você está confortável. Quando você tem a sensação
do dever cumprido e a cidade esquenta do outro lado da janela.
Justamente quando você baixa a guarda e tenta "esfriar a
cabeça". Quando você encontra um lugar. Nada demais. Uma sala
simples com ar-condicionado bem temperado. Você se aquieta, tem um
drinque nas mãos. É um bom lugar pra empunhar o seu copo. A cidade
derretendo do outro lado e você com umas belas paredes pra separar a
confusão toda. E tapetes macios pra pisar e cortinas grossas pra
afastar a luz inconveniente. Você flutua. Você puxa as cortinas da
sala e dá um bom gole no seu drinque. Um drinque gelado. A meia-luz
também suaviza o calor. Sua cabeça vai parando de latejar.
É quando você está assim, aproveitando. Quando relaxa. Há plantas em torno e as plantas ajudam. As plantas ajeitadas em vasos. Há pequenos vasos sobre as mesas e grandes vasos no chão. Tudo muito refrescante. O ar-condicionado, as plantas, os móveis... os móveis são muito limpos. O drinque, tudo bem, está gelado. Você repara nas paredes. As paredes são lisas e aveludadas como uma pele. Você fica admirando aquela película. Além dessa textura especial, as paredes têm bons quadros. Retratam coisas antigas, permanentes, tranquilizadoras. Você põe os olhos nelas e... "se desprende", por assim dizer. A cidade, você sabe, rachando do outro lado. Os bons quadros têm molduras muito boas. Um pouco pesadas talvez, mas os quadros e as molduras combinam. Não incomodam as vistas.
Você afrouxa a gravata. Abre uns botões. Na poltrona há lugares pros cotovelos, pros pés e até pra encaixar o pescoço. Você baixa a guarda. A coisa toda massageando sua estrutura óssea; a respiração começando a adquirir aquela cadência própria do repouso. As pálpebras demoram cada vez mais pra abrir quando você pisca. Seus músculos dissolvem-se preguiçosamente.
O seu drinque bem na sua mão e a cidade inteira se assando lá fora. Dá pra sentir. Você sabe como é. É quando você está conseguindo "pousar o cargueiro"; quando "a batalha parece ter dado uma trégua"... é bem aí...
Você não presta atenção logo que começa, mas percebe. Há algo vibrando embaixo de você, dentro de você... não. Está fora das paredes. Você pensa que é um terremoto. Depois você pensa que essa é uma cidade afortunada por não termos catástrofes tão naturais em outros povos; embora ela fique fritando do outro lado das paredes... Você demora a tomar ciência. Você hesita, mas tem que se haver com o que acontece.
E o que acontece é isso mesmo: são as paredes, meu amigo. Elas começaram a se mover. Na sua direção. Lentamente. Você pode ver com a maior clareza; não ajuda, mas pode. É isso: as paredes começaram a se fechar umas por cima das outras e você foi colhido no meio do negócio.
Primeiro você observa com curiosidade. Fica fazendo "joguinhos mentais", imaginando quando é que vão parar com aquilo. Quando alguém vai abrir a porta e dizer: "brincadeirinha!". Só que demora. Amigo... como demora!
Você finalmente ergue sua bunda da poltrona. Vai até a porta. Tenta abri-la. Claro que ela não cede. A coisa não para. Você é que para. Tenta pôr as ideias no lugar. Não dá tempo. Dá um gole no drinque. Ele já não tem o mesmo gosto. Você vira as costas pra cidade fervendo do outro lado das paredes. As paredes encostam nas plantas. As mesas começam a ser empurradas. Os vasos das mesas rodam e acabam no chão. Quebram. Os vasos maiores vão sendo jogados pro centro, pro mesmo lugar onde você está.
Enquanto você pensa numa maneira brilhante de dividir o espaço cada vez mais exíguo com meia dúzia de samambaias dos infernos, os quadros despregam das paredes. Todas aquelas paisagens caem e pulam das molduras e amarrotam. As molduras estilhaçam. São de gesso. O pó se espalha. Você se protege. Sufoca. As paredes nem aí, conduzindo aquele movimento teimoso, te reduzindo a cada vez menos.
Você então sussurra. Ainda tem vergonha. Chama um nome, outro. Apela aos conhecidos. A quem interessar possa. A alguém que possa ajudar... Você pede. Um pouco mais alto agora, na esperança de que alguém tenha se aproximado. Você junta as mãos no rosto e fala e pede e, por fim, grita. Anda de um lado pro outro gritando. Chega a chorar. Um pouco. Você termina seu drinque de uma vez só. Está quente, choco. Você cospe. Não sabe onde colocar o copo.
As mesas e a poltrona continuam se movendo. Se empurrando. Te empurrando. Você salta sobre a poltrona. Você chega perto das paredes, dos seus vãos, imaginando que é ali, no filete escuro em que as paredes rolam umas sobre as outras, que vai poder avisar quem quer que seja sobre o que está se passando. Você se esfrega nos vãos das paredes. Você encolhe essa barriga, antevendo o pior. É ridículo. As paredes da mesma maneira, reduzindo o seu conforto. Você baixou a guarda, lembre-se. Bem quando você estava confortável. Quando o mecanismo estava muito perto de "parar mesmo", se é que você me entende. As paredes vão derrubando e trincando e moendo e esmagando tudo o que está no caminho. Nada resiste à sua passagem. Nada mesmo. E lentamente. Você pode ver tudo. A poltrona esmigalhada, o cinzeiro de metal transformado numa fita retorcida, a mesa estilhaçada, seus pés de metal rangendo... no fim, as lâmpadas faíscam e explodem. Há uma luz intensa e depois tudo fica escuro. Desesperado você tateia, coloca a mão sobre a parede, faz força... muita força... toda a força que tem... obviamente as paredes não param por isso... está sentindo esse cheiro? Cuidado...
fonte:
A
BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
São
Paulo / Novo Século / 2007
20
/ REFORMAS
BRASIL LTDA.
Reunidos
no fragor da indiferença, visando evitar prejuízos ao desinteresse
nacional e inclinados a fazer nada de mal, assim como de bom, a Turma
do Deixa Disso preparou este desarrazoado, de forma a desencaminhar
algumas sugestões de reformas e consertos em geral, contribuindo
para que tudo fique melhor do jeito que está mesmo:
1.O
executivo continuará se defendendo às canetadas e protegido do
controle organizado pela porta do cofre. O cofre será blindado, mas
não se admitirão segredos entre autoridades incompetentes.
2.O
judiciário continuará, em última instância, tendo suprema pena de
si mesmo.
3.O
legislativo continuará votando seus aumentos de salários. Quanto ao
resto, o mínimo é o necessário.
4.Os
policiais continuarão atirando primeiro. Em caso de erro,farão
perguntas.
5.Os
bandidos continuarão atirando a esmo. Em caso de acerto, farão
churrascos e soltarão fogos.
6.As
balas perdidas continuarão sendo remetidas aos donos de origem, de
um lado e de outro.
7.O
Ministério da Saúde poderá advertir: a cocaína chutada será
sobretaxada.
8.Os
ministros fritos e ex-presidentes desempregados continuarão ganhando
embaixadas chiques e verbas de representação em moeda forte. A
representação será proporcional ao nível dos coquetéis.
9.A
iniciativa privada continuará cooptando influência das coisas
públicas (é favor não confundir a coisa pública com 'coisa
pública').
10.O
que for arremessado no ventilador não poderá cheirar mal, nem
manchar reputações ilibadas.
11.Os
militares belicosos poderão ser atingidos, mas não devem ficar
nervosos.
12.Os
confessos terão suas palavras usadas contra si. Recomenda-se o
silêncio como a melhor maneira de não se meter no que quer que
seja.
13.As
igrejas, por via das sua dúvidas, continuarão dando graças a Deus
e pedindo dízimos, que ninguém é de ferro e o santo é de barro.
14.Os
assalariados, por via das dívidas, continuarão afundando em
crediário movediço.
15.O
crédito continuará restrito àqueles que puderem pagar à vista
pelo olho da cara.
16.Os
leões esfomeados continuarão arranhando os contribuintes vacinados.
17.Os
que comprarem um atestado de supercansados continuarão recebendo
superaposentadorias.
18.Os
que se fizerem de mortos continuarão recebendo pensão por
falecimento. Os que ficarem inválidos serão aleijados
definitivamente dos processos.
19.O
sistema bancário continuará fazendo sigilo e também uma grana
9depois outra, então mais outra e assim por diante)
20.A
televisão ignorante continuará se encarregando da cadeia nacional,
na qual as feras podem ser isoladas do convívio social nos
apertamentos dos conjuntos habitacionais.
21.A
cultura de bactérias continuará sendo desenvolvida à custa de
renúncia fiscal para combater ideologias alienígenas.
22.As
massagistas e os gerentes de marketing poderão ser indiciados por
excitar nosso despudor.
23.A
renúncia fiscal continuará sendo como um paraíso.
24.Nos
paraísos fiscais também serão recebidos férias e décimo terceiro
via Sedex Internacional ou exportação subsidiada.
25.A
vingança continuará sendo requentada. Os desafios continuarão
tendo seu vencimento adiado ate segunda ordem, não cabendo multa por
atraso.
26.A
ordem continuará sempre a vir antes do progresso. Se necessário
será usada a força elétrica com dois fios desencapados no saco dos
coitados.
27.Quem
não tiver riqueza espiritual continuará andando com a roupa do
corpo; na ausência delas, uma mão deverá ser posta na frente e
outra, profundamente, lá atrás.
28.Os
inativos não poderão coçar as partes baixas, salvo por motivo de
doença.
29.Para
os casos de doença urgente continuarão existindo planos de saúde
de longo prazo.
30.Os
velhos que não largarem o osso, de todo mundo, devem morrer de
artrite.
31.A
juventude miserável sempre preferirá o sangue fresco.
32.Os
colarinhos encardidos continuarão sendo pintados de branco a cada
gestão no orçamento.
33.Os
negros e as mulheres continuarão ganhando menos pra fazer a mesma
coisa, o que terá sido mera coincidência, ou costume, sei lá...
34.A
carapuça que servir será transformada em carapaça.
ATENÇÃO:
Alertamos para o fato dos esquisitos poderem se misturar aos
estranhos, criando grande confusão aos distraídos. Por isso, ao que
fizer sentido será oposto um contraditório, de forma a redefinir
uma série de ambiguidades inconsistentes. Pelo sim, pelo não,
valerá o que for desencontrado, em nome da incoerência.
A
História que julgue essa historinha...
fonte:
A
BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
São
Paulo / Novo Século / 2007