quarta-feira, 24 de julho de 2013

2 poemas de ELISA LUCINDA






ELISA LUCINDA


Lambe-lambe


Passam muitas pessoas no saguão dos aeroportos.
Passam neste aeroporto de agora,
e eu, no meu pensamento,
não me comporto, imagino elas fodendo:
fulano com fulano,
são casados, gozam, fazem planos?
E ela, quer logo que acabe?
E ele, penetra rosnando?
Fantasio as inúmeras possibilidades de encaixes,
em como foram as noites de amor que tiveram pra fazer essas
crianças chinesas africanas alemãs francesas mexicanas libanesas
brasileiras cabo-verdianas espanholas cubanas holandesas
senegalesas turcas e gregas.

(Meu pensamento é inconveniente mas ninguém sabe,
escrevo num café, estou, por fora, muito chique no cenário
e nitidamente estrangeira.)

Agora passam dois homens.
Sentam à mesa ao lado.
Falam germânico mas a tradução é da mais alta putaria,
uma iguaria da mais pura sacanagem!
Eu sei, são gays. Eles não sabem que eu sei.
Pensam que escrevo o abstrato
e capricham descansados ao colo do idioma que não alcanço.
Mas sou poliglota na linguagem dos olhares,
cílios a mais antiga cortina do mais antigo teatro
na pátria universal dos gestos, meu bem!
Ele não me escapam.
Um chupa muito o outro, que eu sei,
e o magrinho gosta de dar por cima e de lado.
Importante dizer que dentro desse meu pensamento safado
também não tem pecado.
Só me diverte
ver o que todos negam,
o que não se diz no social,
uma radiografia verbal da intimidade alheia é o que faço aqui,
sem que ninguém suspeite,
sem ninguém me permitir.

Aquele tem pau pequeno e, pior que isso,
ele, mais que suas parceiras, acha isso um problema.
Aquele ali também tem, mas arde na cama e se empenha muito
compensando a diferença.
Aquela, num outro esquema,
diz que não gosta da coisa
e fala sem parar.
Só uma pirocada de jeito para fazê-la calar.
A gostosa gordinha engole a espada todinha
daquele altão desajeitado,
cujo grosso membro se torna,
em meio às coxas dela, disfarçado.

E o velhinho punheteiro
de pau mole com jornal no colo?
Talvez seja o único a adivinhar o teor dos meus escritos,
dado que me olha dissimulado e constante
de modo a nunca perder meus segredos de vista.

(com licença mas é dessa matéria hoje minha poesia)

Enxerida, vejo a mulher com cabelos cortados à la moicano
com a menina que iniciara a tiracolo,
feliz em ser por ela lambida
e sem saber no que estou pensando.

Passam as pessoas
no saguão do aeroporto,
fingem que fazem check-in,
fingem viajar sérias e de férias,
fingem estar trabalhando...
mentira,
pra mim tá todo mundo trepando!





Frankfurt, 6 de junho de 2002







Suicidas invisíveis


São jovens senhores e senhoras
se despedindo dos agoras.
Desembarcam da vida
antes que se cumpra o destino,
antes de escrito o percurso,
sem giletes, sem tiros,
sem cortar os pulsos,
sem se jogar dos edifícios,
sem abrir o gás
dão pra trás na lida,
focados no passado e suas dores,
no pretérito de suas frustrações,
no fungo dos rancores.
Esses personagens e suas ações
vão dando cabo do viver,
começam a produzir a morte
e ninguém vê.

Diante da televisão,
presos à Internet,
cativos de shoppings e dopings,
eliminam todos os confetes,
desconsideram as comemorações para o novo dia,
odeiam vésperas de alegria,
desprezam os inoportunos sóis
que anunciam que a vida continua.

Sem cartas, sem avisos,
sem marquises,
sem os comprimidos assassinos
e seus vidros vazios ao lado,
escolhem o lado do dado
que não tem jogada nenhuma.

Os suicidas invisíveis
veem esmola na cara do carinho,
não suportam a esperança do vizinho,
matam-se devagarinho
no meio da sala,
na mesa do jantar,
diante dos hambúrgueres,
atrás das taças transparentes de vinho
e ninguém ora.
Sem alarme, sem chavão,
sem investigação,
o suicida invisível
não sai no jornal
nem passa na televisão.

Não virá o baile,
não virá o passeio,
o cinema,
o novo amigo,
o encontro,
a compreensão.

O suicida invisível
se mata na nossa cara
e, como não se nota,
não se pede explicação.
Aperta o botão da morte,
encerra sua condição,
sai antes do fim do filme,
antes de acabar a sessão.

O amor não virá,
não virá a felicidade
em sua homeopática e antipática dose.
Virá talvez o mais rápido possível
algum câncer ou trombose,
alguma artrose de falta de movimento,
filha da falta de caminho.
O beijo não virá,
não virá o sonho realizado aos pouquinhos.

Os suicidas invisíveis
dizem com o seu “não bom dia”,
com seu rancor,
com o seu medo,
com o seu horror:
eu estou me matando agora.

E ninguém liga
e ninguém para
e ninguém olha
e ninguém chora.



São Paulo, 14 de junho de 2001




in: A Fúria da Beleza / 2006




Elisa Lucinda (ES, 1958-)

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