MELODIA NOTURNA DE AZUL PROFUNDO
Desperto por um breve sustenido, em suspenso, ascendendo para um allegro. Toques de uma sonata em notas etéreas, acordes volúveis. Teremos uma suíte completa? Mas havia algo mais ali. O piano não estaria trancado? "Melissa, minha querida, acho que a lição terminou." Uma leve vibração percorreu o ar, e também sua face, ouviu-se a solfejar uma sequência fragmentar de fá, si, dó, ré , fá bemol, si.
A porta se perdia naquela bruma ébria de escuridão e tédio, ferida aqui e ali por reflexos tímidos dos lampiões da ladeira, dançantes como sinistros fogos-fátuos, porém incapazes de assustar a quem é assim despertado em plena conflagração de sono e descrença.
Tropeçando pelos corredores, já não havia Melissa nem fim de lição, havia a tocata, a fuga, as notas ora alegres ora tétricas, havia o chamado.
Apoiando-se no corrimão, unhas agarrando uma testa enrugada, desalinhando o cabelo caído sobre as orelhas, sentindo cada degrau da escada, descendo, a repuxar o roupão, viu-se assim no tapete da sala.
Havia a melodia e o piano. Debruçada sobre o piano, concentrada no bailado das notas, havia uma mulher.
A mulher ondulava com os acordes, flutuava com os bemóis, trilhava as escalas, toda entregue às notas e pausas, ao ritmo dos compassos, andamentos da alma despejados no martelar das teclas. Os dentes de marfim subiam, desciam, solidários, no baralho de contrapontos, obedientes aos dedos leves, unhas deslizando em barras negras, a mulher que trajava um ondulante vestido azul noturno, um anil profundo, mas cintilante, em golas e bordados num tom violáceo, um broche de prata, uma sandália no mesmo azul. Em tudo uma fascinante áurea azul, tão instável, qual bolha frágil, o vestido de abismado anil, o cabelo preso numa trança dupla, despejada em cascatas, tal como a arieta.
Parecia-lhe que uma brisa insinuava-se pelas frestas das janelas altas, numa carícia de frescor, engolfando a melodia em ondas na luz mortiça que preenchia a sala, como a originar-se em tudo e lugar algum. Que sombras bruxuleavam na penumbra?
Tecia as questões como uma rede para a mulher de anil, mas ela só podia conceder-lhe a música, ela que era a própria melodia. "É, parece que continuo só"
Então ele se voltou, e nos seus passos rumo a escada, não olhou para trás, não viu que ela se esvaía, sempre atenta, a solista que interpreta a si mesma como tema. Entregando-se, absorta em seus espasmos, a ele, o homem que conquistara ao sono.
É este homem que trilha o corredor, trôpego, guiado pelos fogos-fátuos, as mãos úmidas comprimindo as têmporas, resistindo às últimas notas da sereia anil, ao sentir-se nova criança, abraçando as almofadas macias, buscando refúgio, mergulhando no profundo anil do labirinto dos sonhos.
A porta se perdia naquela bruma ébria de escuridão e tédio, ferida aqui e ali por reflexos tímidos dos lampiões da ladeira, dançantes como sinistros fogos-fátuos, porém incapazes de assustar a quem é assim despertado em plena conflagração de sono e descrença.
Tropeçando pelos corredores, já não havia Melissa nem fim de lição, havia a tocata, a fuga, as notas ora alegres ora tétricas, havia o chamado.
Apoiando-se no corrimão, unhas agarrando uma testa enrugada, desalinhando o cabelo caído sobre as orelhas, sentindo cada degrau da escada, descendo, a repuxar o roupão, viu-se assim no tapete da sala.
Havia a melodia e o piano. Debruçada sobre o piano, concentrada no bailado das notas, havia uma mulher.
A mulher ondulava com os acordes, flutuava com os bemóis, trilhava as escalas, toda entregue às notas e pausas, ao ritmo dos compassos, andamentos da alma despejados no martelar das teclas. Os dentes de marfim subiam, desciam, solidários, no baralho de contrapontos, obedientes aos dedos leves, unhas deslizando em barras negras, a mulher que trajava um ondulante vestido azul noturno, um anil profundo, mas cintilante, em golas e bordados num tom violáceo, um broche de prata, uma sandália no mesmo azul. Em tudo uma fascinante áurea azul, tão instável, qual bolha frágil, o vestido de abismado anil, o cabelo preso numa trança dupla, despejada em cascatas, tal como a arieta.
Parecia-lhe que uma brisa insinuava-se pelas frestas das janelas altas, numa carícia de frescor, engolfando a melodia em ondas na luz mortiça que preenchia a sala, como a originar-se em tudo e lugar algum. Que sombras bruxuleavam na penumbra?
Tecia as questões como uma rede para a mulher de anil, mas ela só podia conceder-lhe a música, ela que era a própria melodia. "É, parece que continuo só"
Então ele se voltou, e nos seus passos rumo a escada, não olhou para trás, não viu que ela se esvaía, sempre atenta, a solista que interpreta a si mesma como tema. Entregando-se, absorta em seus espasmos, a ele, o homem que conquistara ao sono.
É este homem que trilha o corredor, trôpego, guiado pelos fogos-fátuos, as mãos úmidas comprimindo as têmporas, resistindo às últimas notas da sereia anil, ao sentir-se nova criança, abraçando as almofadas macias, buscando refúgio, mergulhando no profundo anil do labirinto dos sonhos.
Mai02
Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com