Sobre “Sobre Ventos e Sementes” (2011)
do poeta Jair Barbosa
Olhar além do próprio umbigo
Intro (um panorama...)
A poesia como uma forma de expressão mais do que uma criação artística tem se apresentado desde os Românticos, onde a voz autoral tinha mais valor que o formalismo dos Clássicos. Ao expressarem suas sentimentalidades os autores incluíram dados biografias (que pouco importavam se verídicos ou ficcionais) e delírios, desejos e ânsias de grandeza pouco preocupados com os jogos formais dos mestres do Barroco ou do Classicismo.
Ao longo do século 19 outras correntes literárias de preocuparam com formalismos – vide os românticos que escreviam sonetos e os simbolistas com poemas mais sugestivos do que descritivos – ao lado de expressionismos autorais, quando não acetiavam um destaque maior sobre o autor do que sobre a obra.
Outros autores se destacaram justamente por causa da obra. Não sabemos bem quem foram Lautréamont ou Corbière, mas admiramos estes 'poetas malditos' por suas belas obras, mesmo que niilistas e iconoclastas. Os poetas se expressavam, falavam sobre si mesmos, mas não apenas sobre si mesmos. O fato de incomodarem toda uma cultura literária da época mostra o quanto olharam mais além – além dos próprios umbigos.
Durante o século 20 – principalmente após os movimentos modernistas – os autores voltaram mais à expressão dos sentimentos do que preocupações formais (com raras exceções – Eliot, Yeats, Auden, Pound - que confirmam a 'regra') uma vez que menos interessados em forma do que no conteúdo (seus sentimentos, dramas e vicissitudes existenciais).
Esta necessidade de expressar algo – mais do que a forma de expressar – levou a um enriquecimento da confissão, da auto-análise, auto-punição, e um consequente empobrecimento das artes poéticas em si-mesmas. Pouca originalidade e muita biografia. Versos pouco trabalhados, poemas que se resumiam em confissões. Faltava um pouco de teoria literária para vitaminar os poetas.
Por outro lado, outros exibiam um excesso de erudição que, no profundo hermetismo, afastava os leitores (vide as obras de Pound, Plath e Montale) a ponto de estes preferirem os claramente biografistas (melhor saber do poeta que da obra?) do que os (ditos) formalistas. Chegou ao ponto de os formalistas serem execrados como 'pedantes'.
Hoje parece haver um maior equilíbrio. Bons poetas sabem dosar expressão e modo de expressão – sabem falar do Eu e do mundo, sabem olhar para dentro e sem esquecer que há todo um mundo lá fora. Esperemos que esta balança poética (sempre em oscilação ) não volte a se desequilibrar.
'Sobre Ventos e Sementes'
O segundo livro de poesia do poeta Jair Barbosa está em nossas mãos. Era aguardado, pois o primeiro (“Gomo de Tangerina”, publicado pela Anome Livros) é de 2003. Um livro de estreia, com mais um sabor de novidade do que de originalidade. O poeta se apresentava, a crítica manteve-se silente.
Agora a crítica não pode ficar impassível. Podemos comparar, podemos dizer se houve evolução (ou não) na trajetória do poeta. (Entenda-se: não é o que ele expressa que julgamos, mas COMO expressa.)
“Sobre Ventos e Sementes” (Edição do Autor) exige leitura atenta, pois trata-se de um volume de poemas, prosas líricas e máximas, que não estão em blocos, mas disseminadas em todo o canteiro. Onde o poético onde o prosaico? Encontraremos joio brotando meio ao trigo. É fatal. Contudo, saberemos antes distinguir onde o eu-lírico fala de si-mesmo e onde vê lá fora.
Na medida em que narrativa se diferencia de confissão, alguns poemas e prosas poéticas se diferenciam por olhar pra dentro e por vislumbrar lá fora. Ora o umbigo se dilata ora o barulho dos carros na avenida rompem os devaneios. Tudo é registrado, obviamente, por alguém que sente e (d)escreve, mas a ênfase sofre modulações. O fora muitas vezes espelha o que borbulha pro dentro.
Folheamos “sobre Ventos e Sementes”. De início, “os dois irmãos” , um poema narrativo e descritivo com cenário num local mais interiorano, o meio rural, “naquele ano eles ainda conversaram observando a fumaça que subia das canecas de café, sob o luar cresceram esfregando as mãos, ouviram histórias, silenciaram, adormeceram...” (p. 11)
Temos em 'asas' uma linguagem onírica (que lembra algo de Manoel de Barros) demonstra resquícios de um olhar infantil (que o poeta parece cultivar com ternura) quando declara que “gosto de recolher as migalhas que caem do crepúsculo e o meu olhar é o cansaço do outono” (p. 13), num bucolismo que destoa da vida que levamos. Aliás, este 'destoar' causa o efeito poético: quem para um pouco para contemplar o crepúsculo? Estamos correndo pra casa para assistir um seriado ou novela na TV...
Podemos citar exemplos de prosa poética com recurso narrativo, quando a narração é o 'suporte' e o lírico surge nos entrelinhas, com destaque para “metrópole” um testemunho do que vivemos diariamente nas grande s cidades inchadas de subempregados e despossuídos...
“os semáforos espiam os invencíveis meninos magros, os meninos
jornaleiros, os velozes meninos trombadinhas, os meninos estátuas
prateadas, os meninos limpadores de para-brisas, os malabares dos
meninos equilibristas, os anônimos meninos palhaços...
os semáforos esperam nossos sonolentos rostos cansados no fim do
dia, esperam a noite, esperam o silêncio dos pardais, esperam o sono
dos mendigos nas calçadas, esperam os meninos desaparecidos
voltando para casa...” (p. 49)
Assim 'comunhão' (p. 45) também narrativo e com alguns traços biográficos, ainda mais que 'lagoa' aqui pode ser uma referência à Lagoa do Nado na região norte de BH, “numa tarde de abril o encontro com um amigo à beira da lagoa.”, algo prosaico que pode chegar ao lírico, na frase seguinte, “os melhores encontros não são marcados.” para construir e desconstruir liricamente o local (que passa a existir apenas no olhar do poeta)
“e fremiam aquáticas plantas e flutuavam gravetos e sonhávamos manhãs fluindo nos arroios...” (p. 45)
para concluir pelo silêncio – as palavras podem quebrar o encanto – com um prosaico “não falamos mais nada.”
Além dos poemas em prosa temos os poemas mínimos (curtos), descritivos ao estilo haicai , “o orvalho solitário na pétala / e o último reflexo da lua / a rosa aperfeiçoa: / o amarelo engendra o dia.” (p. 35) e reduzidos ao mínimo ao essencial ao básico e limiar do silêncio, num processo de meditação onde se reduz a fala prolixa a um mantra, até a incluir uma máxima : “é certo que o sol nasce para todos... mas para quem ainda espera, a noite é provação.” (p. 31)
Tanto olhar lírico sobre as pequenas coisas, sobre o mínimo (que passa despercebidos aos ambiciosos do mundo), tanta identificação com os elementos da Natura, faz lembrar em alguns momentos a prosa idílica de um Guimarães Rosa, ou o olhar lúdico-infantil de uma Manoel de Barros. Mas o que percebemos em alguns versos (ou poemas inteiros) é uma clara influência do estilo 'agrolírico' de Wilmar Silva, principalmente do significativo livro “Estilhaços no Lago de Púrpura”.
Pois não é vemos um “avoante sobre o minarete do deserto eu”? ou um “eu / a mil milhas distante eu / ” (p. 47) ? que tanto intriga os leitores da agroLírica: o eu se confundindo com a natureza. Como pode um ser de cultura se identificar com as forças da Natureza/ trata-se de fantasia ou algum tipo de idealismo? Parece que os poetas sofrem disso desde o Romantismo. Esquecem-se que tanto nós (os aculturados, civilizados) maltratarmos a Natureza , ela agora se vinga.
A posição que denomino 'agrolírica' é basicamente um novo arcadismo de autores urbanos (com ou não origem interiorana) quando os poetas, vivendo nas selvas de pedra e aço, idealizam liricamente a beleza do meio rural, usam fartas metáforas com searas, frutos, aves, sementes, campos, gramíneas, rios, etc, ansiosos por uma vida no interior enquanto continuam sobreviventes na metrópole...
as folhas que eu piso já não têm a novidade da manhã e estalam
sob os meus pés velhas texturas num derradeiro suspiro de vida
eu penso sobre algo que perdi uma ingenuidade uma capacidade
de sonhar de crer sem perguntar […] não avalio mais as conjecturas,
essa é a hora de ir...
mas para onde?
(“quando os pássaros migram no outono“ p. 39)
No mais é constante uma ideia do deslocamento do eu-lírico, tal qual um poeta gauche num exílio mais íntimo do que exterior (exilado em qualquer parte em qualquer época), assim em “exílio” (p. 25),
“de como depois de banido / fui me arrastando a uma terra estranha”
numa necessidade de se apresentar, se reafirmar, mas sempre em relação a algo ou idealizado ou afastado, em que se espera a 'comunhão' mas esta é feita apenas de palavras, de um discurso que não vai além de si mesmo. Sobra a vontade, o silêncio e a insônia.
É o que percebemos nos poemas plenos do eu-lírico ensimesmado, retratos dos estados de espírito, do modo de ver o mundo, ou em conflito com o mundo,
“e se agora o meu quarto pegasse fogo / minha alma certamente estalaria como as folhas secas” em “vigília” (p. 29)
“dentro de mim uma floresta riso e paraíso
eu / meio grogue eu/ devoto sincero eu / “
em “como fugir daquele que nunca dorme” (p. 47)
“me agiganto esplêndido animal mitológico de mil cabeças.
nesta noite escura o meu nome é sussurro insone imaginação perdição...
meu olhar claro pulso pulsando no meio da noite.” em “palimpsesto” (p. 51)
“onde exausto irei parar/ / com a minha arte acenderei uma pequena fogueira /
e não serão apenas as estrelas / crepitando no breu da noite...” em “náufrago” (p. 61)
“um dia arrebatado pelo vento, parti. Derramando a minha sede sobre
a beleza preferi perder o senso ao paraíso. Mesmo quando as musas
me abandonaram escrevi, violentei todas as linguagens, [...]” (p. 69)
Mas o interessante mesmo é quando o eu-lírico cessa de vislumbrar o próprio umbigo e passa a observar o que acontece fora, no mundo – é quando registra as cenas da vida cotidiana, da selva urbana surgem imagens quase líricas (ou liricamente traduzidas). Já comentamos a prosa poética de “metrópole” que também se encaixa aqui.
O recurso narrativo está desenvolvido quando lá fora algo acontece e merece descrição, um fotograma poético a registrar algo memorável, assim em outros poemas ou prosas poéticas,
“os meninos de cabelos bem curtos as pernas finas os calções
largos os meninos deslizando os seus olhos enchendo d'água
os peixinhos iludindo atraindo capturando os meninos.”
em “alento” (p. 33)
“o homem cala-se em fração, se endireita na cadeira, olhar longe,
pensamento regressando sossegado, voando distante, muito
distante, buscando nos começos, demora-se... prossegue revelando,
aos poucos:” em “na varanda” (p. 37)
Justamente quando olha para além do próprio umbigo que o eu-lírico – ou a voz do poeta - demonstra um poder de testemunho, de registro que se aproveita das formas à mão (verso, prosa, máxima) para expressar o que muitas vezes nem percebemos. Sem esta presença do olhar do Poeta o mundo seria ainda mais opaco, ainda mais tedioso, ainda mais padronizado pela mesmice, pelo hábito, pela inércia social.
Só esperamos que o poeta Jair Barbosa mantenha este olhar além, que supere outros “ventos e sementes” e ouse dizer mais sobre o que sabe, suas vivências (não por serem suas vivências, mas nossas) , suas expectativas (também nossas) e suas frustrações (que compartilhamos) num processo de fotografia e testemunho, onde possamos nos identificar e reconhecer nele não mais alguém a confessar intimidades, ou vangloriar-se vate, mas uma real, uma potente 'antena da raça', no dizer muito apropriado de Ezra Pound
jan/12
Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com
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