terça-feira, 1 de novembro de 2011

CASTELO DE CARTAS - conto



CASTELO DE CARTAS


    Estava diante do literato, modestamente renomado. Conversávamos, isto quando não me dispunha a rondar as mesas das roletas, atento aos movimentos frenéticos das esferas e o acaso dos números. Acariciava o veludo verde das mesas de carteado. Também pinçava quitutes das bandejas dos garçons, e , quando no balcão, exigia drinks exóticos – aos quais desconheço. Bebericava os tais drinks exóticos e dedicava certa atenção ao literato – abordava a questão das diferenças culturais, o que é virtude, numa dada sociedade, pode ser vício em outra, etc. E o incrível: ele não abandonava aquele ar de Prêmio Nobel.


    Um luxuoso cassino – fechado para reformas, após o atentado. Edifício imenso, com suas boates, salas de jogos, escritórios, etc. E ainda, lá em cima, através das amplas janelas, contemplávamos a cidade iluminada – e o alvorecer. Sim, passara a noite em diálogos surreais ou antropológicos e já o dia me surpreendia. O sol logo golpearia os óculos do literato. Sim, os óculos, imprescindíveis , não? Mas se o homem podia comprar umas lentes de contato! Esse deslizes, pequenos detalhes, é que me aborrecem. Que interesse eu tinha em culturas aborígines? Foi por isso que me levantei, desculpas, meu velho, mas dê-me um minuto, disse e procurei o rumo dos banheiros. Era um longo corredor, onde saudei pessoas, sorri para outras, e até esperei o revoar dos anjos.


    Mas, antes do W.C. , a sala de leituras. Revistas, jornais, algumas brochuras, títulos e títulos expostos para leitura. Que seja proveitosa. Não preciso dizer que a sala estava vazia. Aproximei-me para ler uma manchete – do dia anterior, claro. Mais balelas sobre o novo presidente. Mais sensacionalismo de alguém da bolsa de Valores, aqueles jovens bitolados que seguem junto ao Murro. Mais um editorial cheio de messianismo. Aí é que fui mesmo ao toalete. Enfiei a cabeça sob um jorro de água fria – e sobrevivi.


    Voltei pelo mesmo corredor. (por que me lembro de tantos detalhes?) aceitei uma taça de champanha – comemorávamos o quê mesmo ? Procurei a mesa de antes, até acho que a encontrei, mas nada, nenhum sinal do literato. Esperei. Esses caras são assim mesmo, meio excêntricos, somem de repente.


    Mas o dia nascia e eu cabeceava, quase um cochilo. Voltei ao meu apartamento assim. À pé mesmo, tudo perto. E aquele ar de algas marinhas. Ah, sentir o Rio, a Ilha e o Mar. Andar pesado tal um pão encharcado. E ao meu redor os primeiros trabalhadores no reconhecimento de suas largas avenidas. Um skatista com um lenço e um gesto nacionalista – as estrelas e as listas. Mas um mendigo já ressuscitava diante de uma loja de departamentos, e as luzes piscavam sobre um manequim. Sem cabeça.


    Sei que entrei na torre, na minha torre. Identifiquei-me, distribui saudações, sorri, dissolvi as dúvidas do motorista, mas o senhor veio andando?, sim, meu caro, sou por acaso paralítico? Uma caminhada matinal é sempre saudável !”, tive a dádiva de um elevador à espera. Mas é lá encima que esperava-me o incômodo. Pois Sylvia foi acordada com o terremoto dos meus sapatos – o idiota aqui nem pensou em entrar de mais! E logo passando ao interrogatório. Coisa dos Serviços de Inteligência. Sim, mas como vou discutir com essa morena alta, de corpo atlético, e outros lugares-comuns, que vive correndo numa esteira e conferindo a balança. E como discutir com a TV ligada? Pois era sempre assim: a primeiríssima coisa que fazia ao acordar era usurpar o controle da telinha e acompanhar a sessão animada. Então sentei-me num dos sofás mais confortáveis da América. E juro que tentei dormir.


    Mas como dormir na maior metrópole do mundo? Um clamor de ambulância me alcança à meia milha do chão. Comecei a procura por café, e, se possível, torradas. E Sylvia na esteira, sincronismo, batidas por minuto, milhas percorridas. Lembro que bebericava o café e via notas aladas. Todo o dinheiro que eu perdera na noite passada. Por que tudo tão nítido agora? Lembro que agarrava o paletó e saía. Claro, depois poderia encontra-la, para almoçarmos, andares acima, na academia. Mas aqueles olhares eram de protesto? Ainda insistiria em saber aonde eu ia? Bolas, isto não está nos contratos ! Vou ao banco. Preciso apunhalar um gerente.


    Foi assim aquela manhã de setembro, quando dormi apenas duas horas. Fechei a porta e fui escolher um dos elevadores. Esperava, mas a vontade era de descer pelas escadarias, desabando degrau a degrau. Mas o teletransporte finalmente foi ativado. (preciso ironizar, para não desesperar) E já pensava em dispensar o motorista. Um automóvel de luxo para percorrer dois quarteirões! Vou ao banco cumprimentar George e beijar as sedosas mãos de Bianca. Que falta vou sentindo de todos! Ah, como sou comovente!


    Apertei na portaria e ate pensei em perguntar pela correspondência. Mas o que me interessou mesmo foi um tremor, um chocalhar das estruturas. Uma explosão escandalosa fez chover vidro moído. Ali na calçada, um dilúvio de cacos. E a explosão apresentava os seus ecos, e os berros que o edifício soltava era terrificantes. É claro que fiquei sóbrio de repente. Liguei para o apartamento. Nada. Corri escadas acima, encontrei pessoas alarmadas. Terremoto! Ah, como tentavam se enganar! Fogo! Acidente! Avião desgovernado! Sempre alguém tentando rotular o absurdo, classificar as ocorrências para as autoridades,para a sua companhia de seguros.


    Mas aquilo era nadar contra a correnteza, pois todos corriam em p6anico, sem exceção. Estava de volta a rua, quando os bombeiros chegaram. Os porteiros igualmente corriam gritando avisos, ou solícitos obedecendo ordens. Aí então eu vi – estático no meio da rua – realmente os andares superiores em chamas.


    Corri, longe das calçadas, apalpando os bolsos, só para notar a falta do celular, e derrubei curiosos, esqueci o motorista – onde estaria? Mas o mais incrível ainda viria. Ouvi um ronco, outro Airlines. E direto sobre a outra torre! Acidente? Façam-me o favor! Tratava-se de um ataque! E que os céus nos salve de Pearl Harbour! E eis os destroços caindo, o deslocamento do ar, e eis a entrada do cassino!


    Corri ao salão de jogos – já paralisado. Alguns atentos às janelas, outros encarando a telinha que um dos garçons ligara. Acidente? Dois aviões? Ataque! Nas sacadas se aglomeravam os jogadores, abandonando suas moedas, para, atônitos, perplexos, assistirem uma cena de guerra ao alcance da mão.


    Se eu me lembrara de Pearl Harbour, um outro menciona o bombardeio de Berlim, e, um fulano, até os mísseis inteligentes sobre Bagdá. Eis, meu velho, que a guerra é entregue à domicílio! O que significa aquilo? Um croupier apavorado, quem nos ataca? Nem sugeri os árabes malucos, Nós mesmos.


    Mas aí engasguei – a primeira torre, a minha torre, desabava! Um castelo de cartas! De cima a baixo, num cogumelo atômico de pó e destroços, e o horror peregrinava por entre os edifícios. Prosseguia cobrindo os transeuntes. E a névoa fétida seguia ao longo das portas, um anjo da maldição, soterrando as bancas de revistas!


    Alcancei as escadas - nada se via. Meu Deus, Meus Deus!, era tudo o que se ouvia, todos fiéis deístas de repente. Maldição. Novelos de fumaça negra nublavam o fragmento de azul lá encima. E – horror, horror – vultos se atiravam da outra torre. Fogo, fogo, era a única palavra a brotar de gargantas esfoladas. Ao meu lado, o desespero do literato – saído não sei de onde. Ele esfregava um lenço nas lentes e esgares de ansiedade turbilhonavam em seus olhos. Num dos edifícios do Centro, aquele outrora sob a sombra das Gêmeas, se encontram os escritórios de seu editor, e lá estão os originais de importante obra, recentemente entregue para publicação.


     Não entendo o que ele diz, ou berra, mas, perplexo,percebo que o homem, ao contrário de fugir da névoa, da fumaça asfixiante, segue, lenço no nariz, direto para dentro deste, a bracejar contra o horror, para alcançar as ruínas do Centro. Nem posso segurá-lo, enlouquecera. Sei que jamais o verei novamente. E este sentimento de perda me lembra algo, me lembra alguém...


     Empurrado pelos que fogem, Corra, idiota, Saí fora, ainda tenho diante dos olhos os vestígios das torres, uma coluna de fumaça, tal uma sombra, um espectro do corpo falecido, então a lembrança novamente me lacera. Lá acima as chamas, lá acima uma mulher corre na esteira, rindo das audácias do Mickey.


 

    dez/04


 


     Leonardo de Magalhaens




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