segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Era uma vez um lugar chamado Savassi ...




Era uma vez um lugar chamado Savassi


            Antigas lendas narram sobre um lugar chamado Savassi. Lugar paradisíaco, segundo certos estudiosos, devastado por obras inúteis e vagarosas, oportunistas e irresponsáveis, promovidas pela administração pública municipal. Obras que se prolongaram por secas e enchentes, neblinas e tormentas, e acabaram por apagar do mapa belorizontino o oásis meio à vulgaridade circundante.


            Era uma vez a Savassi – famosa mas desconhecida – reduto de tribos de moicanos, cabeludos e skatistas, paraíso de madames e cãezinhos mimados, tapete vermelho para pseudo-intelectuais e poetas pequeno-burgueses, que desfilavam em mil livrarias pra acadêmico parisiense ver; enfim, vestígio final do glamour que os flâneurs-high-tech ostentam exibicionistas no trottoir vespertino.


            Mais do que isso, sem dúvida, suspeitam os estudiosos. Putas de vitrine, gangsters de shopping-center, políticos suspeitos em início de carreira, lobbistas anônimos, todos amigos do poder, passageiros clandestinos, meninos e meninas de rua, policiais corruptos, ou corruptíveis; em suma, todos lá habitavam, num labirinto de ruas mezzo asfalto mezzo jardim, mezzo concreto mezzo vitrine, ao estilo Los Angeles dos trópicos, Manhattan do mundo em desenvolvimento, Orlando dos empreendedores lúdicos, Miami dos sonhos consumistas, Paris dos boulevards artificiais, Londres da segregação social, Berlim das passadas geométricas, Moscou da solidão coletivizada.


            Relatos narram sobre a existência de contradições profundas entre o peace & love de camisetas juvenis e olhares ávidos por liquidação, tudo à venda, a cheque e a cartão, débito & crédito, todos os prazos do mercado, todos os juros negociáveis, em mil prestações. Mercadorias espreitavam transeuntes, cativavam atenções, capturavam delírios, alucinavam vontades, sutil e artisticamente, em flashes de néon, em brilhos de letreiros, onipresentes. Tudo estava ali à disposição em vitrines encantadoras que não hesitam em afagar os egos inchados dos fiéis consumidores no mundo árido da insatisfação.


            Aliás, promessas de satisfação é o que não faltava no paraíso chamado Savassi. Lá onde os transeuntes andavam topando em pedras pelo caminho, ainda mais quando as obras devastavam calçadas, ruas, asfalto, tragavam portais, entradas, sugavam paradas de ônibus, estacionamentos, aspiravam alamedas, casario histórico, sim, numa implosão que desgravitou o centro dos Funcionários até a Contorno, convulsionando os cidadãos pacatos que ali residiam, e logo debandaram. (Certos arqueólogos encontraram, mais ao sul, ruínas de casarões nas beiras e beiradas de encostas, o que leva à hipótese de que aqui outrora não apenas os pobres viviam nos morros...)


            No devastado local outrora denominado Savassi (e não apenas lá...) foram encontradas relíquias que fazem supor uma vida de luxo ao lado de uma subvida de lixo. Carros de qualidade abandonados ao lado de latas enferrujadas; casarões elegantes que abrigavam casebres nos quintais; ruas iluminadas que acolhiam senhoras de renome e damas-da-noite, além de estudantes universitárias que adoravam acompanhar executivos. (Um trabalho colaborativo deveras relaxante, outrora denominado, talvez uma gíria, não se sabe ao certo, de 'programa', segundo os melhores estudiosos.)


            Um relógio de sol parecia assinalar o marco central do lugar outrora denominado Savassi, onde os jovens apocalípticos conviviam com os jovens integrados, enquanto os primeiros aguardavam o fim do mundo – e o fim das infindas obras – e os segundos reclamando dos prejuízos, uma vez que não lucravam com as licitações das obras.  Ambos deslocados entre calçadas desertificadas, fachadas decadentes, edifícios disputados, estacionamentos lotados, gente dispersa, itinerários desviados, reclamando de operários e clientes inadimplentes, donos de cachorros mal-educados, que gratificam os canteiros centrais com saudáveis fezes, ou carregadores de mercadoria que estacionam fechando o cruzamento, ou pais de estudantes no portão do colégio onde paravam os veículos em fila dupla.


            Sim, um lugar aprazível, onde o convívio diário entre diferentes, de diferentes classes sociais, mostrava o apogeu da democracia, da tolerância racial, da aceitação recíproca, da vida bela numa aglomerado de casas, casarões, edifícios, lojas, shoppings, lan-houses, cafeterias, livrarias, spas, salões de beleza, pet shops, floriculturas, pontos de táxi, torneiras estrategicamente localizadas para os lavadores de carros nos semáforos. Sim. Civilização plural e hospitaleira, cantada & louvada por poetas, vates, bardos, aedos, cordelistas, sonetistas, autores engajados e literatos-de-torre-de-marfim, em versos e epopeias e sagas de valor quiçá universal e atemporal.


            Contudo, toda esta amostra de vida civilizada, de violência sublimada, de arte enlatada, de estética comercializada, de satisfação mercantilizada, de felicidade estandartizada; todo este delírio de venda & compra, este bel-prazer da vida mercantilista, este outdoor do sonho pós-moderno; em suma, este lugar outrora denominado Savassi, implodiu, desabou, foi tragado pelas profundezas, quando finalmente as obras públicas ousaram perfurar suas entranhas para a construção do tão prometido e proclamado metrô, desta vez realmente subterrâneo, e nada mais restou, além das ruínas hoje redescobertas. Devastada, esquecida, agora recentemente recolonizada,  quando, certamente, alguém viu a primeira flor que rasgou o asfalto.





31out / 1nov11




Leonardo de Magalhaens




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