segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A miséria manda lembranças - conto



conto


A MISÉRIA MANDA LEMBRANÇAS


     Minha querida Lídia não mostra-se mais tão animada, após contínuas considerações sobre o seu desânimo, semelhante a síndrome daqueles mau-humorados que ainda mais ranzinzas se tornam, caso ouçam comentários sobre mau-humor crônico.


     Lídia recebe-me, assim que abre o portão, com aquela carranca depressiva a ponto de atemorizar-me, eu ligara antes, naquele entardecer de sábado, em gentil convite para o casamento de uma amiga de Cíntia, minha irmã, Se apronte logo, querida. Daqui a pouco, apareço aí! Sim, é isso. Aparece um casamento,  há um convite, uma festinha restrita, e Lídia mostra enfado, a incomodar-me com o que ela denomina o meu “tom imperioso”, e eu preciso apaziguar os ânimos, “Querida, sem traumas! É só se aprontar, daqui a pouco eu chego, é claro, se você quiser ir...”


     Não mais que uma hora e lá estou. E aguardo ainda quase outra. E Lídia, ainda que toda magia e perfume, fala pouco, responde por monossílabos e sai, sem ao menos se despedir da família, e espero não terem se degladiado.


    No carro, distâncias se sucedem, ela em silêncio, e, se responde, é ainda em monossílabos, a voz sumida, mas não exatamente irritada, e sim apática, algo sonâmbula.


     Preciso abastecer a máquina. No primeiro posto, exijo logo a aditivada e aguardo o trabalho dos frentistas. O moreno que atende tem umas olheiras medonhas e anda a passos miúdos, certamente sem paciência para levantar os pés, e o outro é um branco, alto e magrela, fartamente agasalhado, a esperar um frio noturno, enquanto o moreno se limita ao uniforme, em gestos pré-determinados, robóticos até, e penso se, um belo amanhã, não serão substituídos por robôs ou andróides.


     E o silêncio de Lídia, ali ao meu lado, mas assim distante, me incomoda, e então ligo o rádio, bem discreto, e o Rolling Stones entra sem pedir licença, “I  can’t  ge t no satisfaction!”, grita o indiscreto Mick Jagger e lídia até se assusta, num frêmito brusco, mas tudo bem, ela estava dormindo certamente.


     Os frentistas conferem os valores, destacam cédulas e eu recebo o troco, e estou pronto para acelerar, quando surgem dois garotos, não mais que uma década de sofrimento, mas com olhares de uma temporada milenar no inferno, “Moço, compra um salgado pra ajudar a gente!”, diz o que parece ser o mais velho, e o mais novo segura um frasco de catchup na mão direita, e um de molho de pimenta, na esquerda, e olha todo pedindo (ou exigindo) piedade, como se dissesse, “o senhor precisa ajudar a agente, sabe, senão a gente cresce e vira tudo bandido!”


    Parece que Lídia já observava o trabalho dos meninos, a abordarem os outros carros, e comovida, até exaltada, percebo, suplica que eu ajude os pequeninos, “Ei, campeão”, eu digo, “deixe-me escolher! Empada ou coxinha?”, e o menorzinho oferece o catchup e o molho de pimenta, mas só consigo ouvir Lídia, toda dolorida, “Sobrevivem  assim! Ah, Alonso, é de perder o tesão!”


    Mastigo o salgado, e digo “não era pra ser assim.”, mas ela agora está dada à oratória, “você acha que esses garotos algum dia entenderão o significado de cidadania, ou de dignidade?”, eu, ainda mastigando, “É lamentável.”, e ofereço a empada, ela não aceita, “Ah, é de perder o tesão! Vamos embora.”


    Não é uma ordem, mas foi obedecida. Não fomos a casamento algum. E fui obrigado a engolir também a empada! Ah, eu mereço!



Leonardo de Magalhaens




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