fonte da imagem: Dois Irmãos / HQ [2015]
by Fábio Moon e Gabriel Bá
Conto
Dois Irmãos
Quer um tema que se repete sempre na literatura? O conflito de dois irmãos. Se não conflito, digamos, uma rivalidade no mínimo. Assim Caim e Abel, ou Esaú e Jacó, ou Remo e Rômulo, etc, até os gêmeos rancorosos do clássico do Hatoum.
Pois eu conheci dois irmãos desse jeitinho. Primeiro eu trombei com o Clésio lá nas aulas da faculdade. Um cara na dele, camisa preta, barba e cabelão. Maior atitude. Só falava quando alguém puxava assunto. Nunca criou caso com a galera. Ficava lá ouvindo um Iron Maiden ou Soundgarden, lá na dele.
Um dia conversamos qualquer coisa sobre política, se não me engano. Sobre banda que era de esquerda e banda que era de direita, algo assim. Clésio entrou no debate e defendeu ponto por ponto. Convenceu a galera. Não lembro mais os argumentos.
Claro que na hora de escolher banda, ninguém vai ficar olhando ficha partidária dos músicos. Mas tem bandas racistas ou homofóbicas que a gente não ouve de jeito nenhum. Nem vou dar nome aos bois.
Aliás o assunto dessa prosa nem é este. Só estou esclarecendo como conheci o Clésio. Pois passou um tempo e eu conheci o irmão do Clésio, o Cássio. E também a Cátia, a irmã do meio. Pois o Clésio é o caçula, vejam vocês.
Como foi? Deixa eu contar antes que vocês mudem de site. Foi no aniversário da irmã dos caras, a Cátia. E teve um pagode lá na varanda da dona Cíntia, a matriarca. Pois o pai tinha sumido no mundo. De repente o homem tinha outra família. Não se sabe.
Pois bem. Cheguei para conhecer a família do Clésio lá nas bordas da periferia, depois da Pampulha, e o som você já ouvia lá da esquina. Acho que era rock nacional ainda. Depois só rolou pagode...
Certo. Lá estava o Clésio e a mulher dele, gente boa. E a irmã Cátia, uma ruiva muito simpática, mãe de um menino muito simpático e falador. E um amigo do Clésio e um amigo do Cássio. O amigo do Cássio estava acompanhado de uma loira modelo. Ops. Quem era o Cássio? O irmão mais velho que estava num canto da varanda, como um Salomão ou sultão cercado de súditos. Ao lado, uma morena que parecia atriz.
Eu achava o Clésio um cara todo atitude, todo imponência, lá sem dar ideia, ouvindo um som pesado e tal, o pessoal falando que o brother era arrogante, e tal, mas é porque ainda não tinha conhecido o irmão do Clésio, o Cássio.
Pois na sombra da varanda, naquela tarde quente de domingo, o Cássio guiava o compasso e ditava a conversa. De óculos escuros, cabelo pouco e barba zero, de camisa branca e bermuda estampada, o Cássio conquistava a atenção do amigo e da namorada do amigo, e do amigo do irmão. E a mulher do irmão. E divertia o filho da irmã.
Eu achava o Clésio o cara mais de presença na faculdade, mas perto do irmão Cássio o meu amigo era uma sombra. Mal abria a boca, via-se ignorado por um gracejo do primogênito. Nenhuma rivalidade explícita, mas você via que era complicado para o Clésio brilhar quando estava em cena o Cássio.
Qual o assunto mais legal? Qual o filme mais top? Aqueles escolhidos e elogiados pelo Cássio que dominava geral e falava por três. As mulheres riam até chorar. Até da chuva que caiu mais tarde, devastando geral, ele fez piada. (Chuva que ele duvidava, pois quem falou que ia chover foi o Clésio...)
Peraí. Estou me perdendo. Ah, sim. Os dois irmãos. Difícil um contraste mais gritante. O Cássio era formado em Direito, mas não exercia advocacia, virou pequeno empresário. Bem sucedido. Casado, bem casado, ainda sem filho. Em suma, Cássio não podia reclamar de nada.
E ele não reclamava. Para tudo dizia sim, nunca falava um Não. Era o maior bon vivant que eu tinha o prazer de conhecer. Carro do ano, casa de campo, férias no Nordeste.
A irmã Cátia, a aniversariante, cuidava de encher nos copos com refri ou cerveja, e ao mesmo tempo olhava o filho aprontando todas, pulando nas poças de lama (isso foi depois da chuva...), e correndo para ver as panelas.
Enquanto isso, dona Cíntia largava a cozinha e aparecia para cumprimentar todo mundo e ver se o neto não tinha entrado debaixo do carro. Ou soltado os cachorros. Desse jeito. Ou então ela pedia um pagode.
No início só rolava rock nacional tipo Paralamas e Engenheiros, um Charlie Brown ou Legião. É um meio termo. Não ia rolar Iron Maiden nem Nirvana. Depois, antes da chuva, que eu me lembre só estava rolando pagode. Difícil. (Sou suspeito pra falar. Detesto pagode. Prefiro chorinho. Aliás, jazz. )
Cássio guiava os assuntos que passavam de política para carro esportivo para campeonato de fórmula 1 para campeonatos de futebol para rendas milionárias de jogadores etc Nem lembro mais. Mas era sempre o Cássio que falava ou então o amigo do Cássio. O amigo do Clésio olhava para o Clésio e o Clésio lá calado. E as mulheres rindo. E eu bebendo e olhando o espetáculo.
Não sabia daquele amigo do Clésio, pois eu acreditava que eu era O amigo do Clésio. Mas o sujeito era do bairro ali e amigo desde tempo de ginásio. Não era da publicidade como eu antes tinha cogitado. Se não me engano o cara vendia seguro de carros... Só falava quando o assunto era automóvel. Era um cidadão tão na dele quanto o Clésio.
O Clésio só calado ou só trocava umas sílabas com a irmã ou com o sobrinho ou com a mãe, dona Cíntia. E até eu ficava meio sem graça, ali convidado e... ignorado. Parecia que o aniversariante era o Cássio que discutia uma marca de eletrodomésticos quando a irmã pergunta quem poderia buscar mais bebidas e tal.
O Cássio logo se prontificou muito sorridente e tal. Cerveja e vinho ele pagava e sem problemas. Era só ligar o carro etc Mas continuava o papo. Foi quando o Clésio falou que ia chover. O Cássio falou que não.
Peraí. Lembro que foi aí. Um disse que teria chuva. Outro falou que não. Eu achei que não era impossível chover. Muito calor e tal na tarde de domingo etc Era só se preparar e tal. (Não podia prever o dilúvio que foi...)
Melhor alguém buscar as bebidas antes da chuva. Acho que a sabedoria veio da mãe, a dona Cíntia. A mulher do Clésio disse Uai fulano não disse que ia? E todos discutindo Chove ou não? O Cássio reafirma que vai. E continua achando que com argumentos ele vai impedir o dilúvio universal.
Clésio em nenhum momento se ofereceu, antes fez uma cara de contrariedade quando falaram em sair pra comprar bebidas. A mãe e a irmã entregaram os cartões de crédito e ficaram esperando. Cássio não ia?
Clésio olhava pras nuvens de algodão cada vez mais baixas e cinzas, gordas e pesadas, e suportava as risadas do irmão, do amigo do irmão e das mulheres. A morena, a esposa do Cássio, mostrava fotos no zap para a loira, a namorada do amigo do Cássio. Fotos das últimas férias, diziam. Eu adoraria ver estas fotos: duas beldades.
Quando o assunto se repetia, acho que era sobre o Brasileirão, o Clésio olhou mais uma vez pras nuvens gorduchas de algodão escuro e pediu o cartão de crédito da Cátia.
Clésio se levantou e disse que ele ia buscar as bebidas. O Cássio olhou e parecia que ia dizer A ou B mas só ficou na vontade. Clésio buscou a chave da moto e saiu.
Cátia ficou olhando enquanto o irmão saiu e voltou-se para os convidados com outra travessa de churrasco, picanha e coraçãozinho. A mãe pediu um pagode e daí a soundtrack só pra contrariar seguiu firme e inabalável. Cássio não gostou mas nada disse. Não tocaram mais rock nacional. E Iron Maiden nem pensar.
Quando o Clésio saiu, eu e o amigo do Clésio tentamos prosear sobre eventos climáticos, ou privatizações, mas em vão. A única coisa que tínhamos em comum era a condição de amigos do Clésio. O que era complicado justamente com a ausência do anfitrião.
Não sei quanto tempo depois. Mas Clésio chegou com as bebidas e trazendo a chuva. Cássio estava na mesma posição e vibe e assuntos quando Clésio chegou e deixou as bebidas no meio da mesa. E aquela cara de Quero ver agora você doutor guardar no freezer. Cássio percebeu mas continuou como se não fosse com ele. O amigo de Cássio calou no meio de uma frase. As mulheres deixaram os celulares. A mãe e a irmã pararam de dançar o pagode. Cássio e Clésio se olharam.
Foi aí que a chuva caiu mesmo. De cima e dos lados, logo a varanda estava inundada e a churrasqueira alagada igual a Vilarinho.
Não lembro quem guardou as bebidas. Lembro que a chuvarada afogou o pagode (o som também ficou molhado e calado) e encerrou uma lavação de roupa suja que nem começou.
Foi a única vez em que visitei os irmãos. Depois de formado, Clésio não seguiu na publicidade, mas hoje mexe com eventos no interior de Minas. Cássio continua empresário e rico, com mais sócios e clientes, segundo fiquei sabendo. Parece que agora o lance dele é entrar pra política. Afinal é um daqueles caras que nunca dizem Não.
Dez 25
LdeM
Escritor, crítico literário
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