terça-feira, 3 de outubro de 2023

O sucessor de Torto Arado vem aquecer nossa literatura

 


 



Resenha


Salvar o Fogo

Romance

Itamar Vieira Junior



    O sucessor de Torto Arado vem aquecer nossa literatura


    Imagine uma obra literária densa e com diferentes pontos de vista. Uma prosa poética e telúrica que lembra o clássico Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. O drama de mulheres fortes que testemunham a condição feminina, como encontramos em Torto Arado, obra impactante do mesmo autor.


    Pense também num enredo que explora uma narrativa não-linear e não absoluta. Diferentes perspectivas para um mesmo evento e modos de interpretação de personagem para personagem, e uma voz em 3ª pessoa que preenche as lacunas. É o estilo de O Som e a Fúria, romance do autor estadunidense William Faulkner. E de obras atuais do moçambicano Mia Couto.


    É o que temos em mãos: um romance que é poético, é telúrico, é agreste, é profundo e pungente. Temos várias perspectivas para acompanhar as personagens, sejam protagonistas ou coadjuvantes. É um quebra-cabeça a ser montado pelos leitores e pelas leitoras.


    Neste Salvar o fogo, o novo romance de Itamar Vieira Junior, o microcosmo do interior da Bahia representa o mundo, assim como uma cidadezinha do interior do sul estadunidense ou uma Macondo do realismo mágico de García Márquez. Aqui a Tapera do Paraguaçu é uma aldeia junto ao rio, ‘rio grande’ em tupi-guarani, nas terras da Igreja católica, que ali administra um mosteiro.


    O drama de uma família de descendentes de indígenas e de escravos africanos é narrado segundo a perspectiva de um menino que vira seminarista, de sua suposta irmã mais velha, que lava a roupa do pessoal do mosteiro, a voz de uma das irmãs, que deixou a família décadas antes e, por fim, uma voz que acompanha o menino agora adulto e sua suposta irmã mais velha que oculta um segredo.


    O enredo é disposto em fragmentos, pois as personagens não sabem tudo sobre o mundo ao redor e nem sobre si mesmas. O menino que se chama Moisés descreve sua vida de cuidados e pouco afeto junto ao pai viúvo e sua irmã Luzia, que não se casou para cuidar do caçula da família.


    A irmã Luzia consegue uma vaga para Moisés no seminário dos padres e espera que o menino não siga uma vida de labutas na lavoura ou nas jangadas ou saveiros. O menino realmente se empolga com os estudos, mas descobre facetas ocultas do abade e, traumatizado, ele deixa o mosteiro e a aldeia e vai para a capital.


    A aldeia de Tapera se situa em terras da Igreja e gravita em torno do mosteiro assim como a aldeia em torno do Castelo na obra de Franz Kafka. Os aldeões precisam pagar aos padres e trabalhar para a subsistência. O que aconteceu no mosteiro não é denunciado.







    Na segunda parte, temos a perspectiva de Luzia e o drama do acidente (?) com o pai na lavoura. Acamado, o pai que rever os filhos. Então o jovem Moisés retorna e também a irmã Mariinha ou Maria Cabloca. É na terceira parte que conhecemos a mulher que saiu de casa com um homem afrodescendente, que se mostrou agressivo, e ela consegue voltar à terra, junto com os filhos.


    Na parte final, a voz que tudo sabe vem preenchendo as lacunas. Quem é o Moisés? É mesmo o irmão mais novo? Ou é o filho de Luzia? Entendemos então que ela sofrera uma violência sexual em sua adolescência.


    É uma história difícil de resumir. Tem muita coisa a ser dita e muito para se ler nas entrelinhas. O leitor ou a leitora que se aventure em Salvar o Fogo e se aquecer junto às chamas da literatura.


Set 23


LdeM

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2023

 

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