terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Literatura e Psicologia. Persona e Sombra in 'O Médico e o Monstro' e 'Dorian Gray'





Literatura e Psicologia



Conceito de Sombra


Ego, Persona e Sombra


Integrar a sombra

 

Obras literárias: O médico e o monstro [R. L. Stevenson] e 

O Retrato de Dorian Gray [O. Wilde]


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    Na psicologia analítica de C.G. Jung encontramos os conceitos de Ego, Persona e Sombra. O que pensamos ser e o que esperam que sejamos e o que é reprimido ou reprimimos em nós mesmos.


    A uma luminosa Persona se contrapõe uma obscura Sombra arquetípica. Não somos inteiramente bons nem totalmente maus.


    Os mais bondosos externamente reprimem desejos internos no processo de repressão e recalque. Basta ver clássicos da literatura tais como ‘O médico e o monstro’, de Robert L. Stevenson e o ‘Retrato de Dorian Gray’, de Oscar Wilde.


    Em 'Dr. Jekyll e Sr. Hyde' encontramos um médico bondoso e prestativo oculta seus impulsos socialmente inaceitáveis até formar uma personalidade alternativa e que se destaca perigosamente. Ou, em 'O retrato de Dorian Gray', o jovem elegante Dorian Gray que deseja conservar sua beleza, enquanto se entrega aos prazeres e vícios , desde que um retrato 'absorva' seu lado sombrio.

 





    A suposta perfeição da Persona projeta uma Sombra que muitas vezes é rejeitada e reprimida. Acontece que tal repressão causa mais resistências íntimas e o que precisa ser compreendido é ocultado a gerar uma outra faceta da personalidade.


    O indivíduo sabe que é incorreto o uso da bebida alcoólica e em sociedade é moderado, e até abstêmio, mas, às ocultas, bebe garrafas e até chega à embriaguez e coma alcoólico.


    Assim, o ideal não é sufocar ou rejeitar a Sombra, mas compreender tal lado sombrio e tentar reintegrar. Um uso moderado de bebidas alcoólicas é melhor do que fingir ser abstêmio e depois beber às ocultas com sentimento de culpa.


    Obviamente que nem toda Sombra pode ser reintegrada. Um sujeito com tendência à vingança ou violência não pode aceitar tal lado sombrio por questões pessoais e sociais e criminais.


    Uma pessoa violenta pode tentar extravasar a agressividade com uso de práticas desportivas ou artes marciais, mas não deve se envolver em brigas ou portar armas.


    A Sombra pode ter aspectos manifestados de modos diversos com aproveitamento ou autossabotagem. Vejamos a dupla da DC os inimigos viscerais Batman e Joker / Coringa. O Batman projeta sua sombra como um justiceiro, muitas vezes violento, mas sem ser homicida proposital. Já o Joker é uma Sombra ambulante do caos e descontrole de uma mente sem unidade, mas que se dissocia em violência gratuita e auto-mutilação.


    Para aceitar e integrar a Sombra é preciso compreender porque tal faceta existe: drama familiar, conjugal, trauma? E depois tentar moderar os extremos e integrar os opostos deste ser fragmentado em personalidades que se tornam personagens de romance gótico. 


    Integrar a Sombra envolve trabalho de análise e terapia, e profundo conhecimento de si mesmo, para uma psique completa e funcional, e não cindida e em sofrimento. 

 

 

Dez23







Referências




FREUD S. Beyond the Pleasure Principle. 1920. Além do Princípio do Prazer. 1980.


_________ . The Ego and the Id. 1923. O Eu e o Id. 1980.


JUNG, C.G. Memórias, Sonhos e Reflexões.  Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.


________ . O Eu e o Inconsciente.  Trad. Dora Ferreira da Silva.  Petrópolis: Vozes, 2008.


STEVENSON, Robert Louis. O estranho caso do Dr. Jekyll e o Sr. Hyde. trad. Marsely de Marco. Cotia: Pandorga, 2022.


WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Graytrad. Otavio Albano. São Paulo: Lafonte, 2020.






Leonardo de Magalhaens


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG







bônus :::: 



artigo sobre O médico e o monstro in

LdeM Leitura e Escrita


http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/03/sobre-o-medico-e-o-monstro-dr-jekyll-mr.html




artigo sobre Dorian Gray in Meu Cânone Ocidental


http://meucanoneocidental.blogspot.com/2011/02/sobre-o-retrato-de-dorian-gray-de-oscar.html


http://meucanoneocidental.blogspot.com/2011/02/sobre-o-retrato-de-dorian-gray-22.html




Vídeo no canal Youtube LdeM Literatura Agora!


https://www.youtube.com/watch?v=toTMPuooTrA





 

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segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Sobre Sacerdotes na Revolução. Tilden Santiago. BH: Starling, 2015

 




Sobre Sacerdotes na revolução 

Os pobres, Jesus e as igrejas

Tilden José Santiago 

BH: Selo Starling, 2015



    Parte 1

    Socialismo cristão


    Para falar de socialismo em contraponto ao capitalismo precisamos antes definir o que o socialismo NÃO é. Assistencialismo não é socialismo. Sindicalismo não é socialismo. Estatismo não é socialismo.


    Socialismo não é comunismo, mas um rearranjo social que pode levar ao comunismo enquanto utopia. Igualdade entre os grupos humanos e fim da exploração do trabalho alheio.


    O comunismo atual vem da corrente marxista, o ‘materialismo dialético’, do socialismo científico, segundo o Manifesto do Partido Comunista em 1848, época de revoluções liberais na Europa e nas colônias da América. É um comunismo materialista, isto é, parte da matéria e não das ideias (que são base dos idealismos). Assim é indiferente ao transcendental, sendo adepto do ateísmo pois "a religião é o ópio do povo ".


    Como então um socialismo cristão? O modo de ver o mundo muda pois o cristão vê a realidade a partir do transcendente. O cristão é teísta e crê na fraternidade de todos os filhos e as filhas de um só Deus.


    A realidade de um socialismo ou mesmo comunismo cristão do tipo teísta é de constatação bíblica com igreja primitiva, com a comunidade de bens e a divisão da renda. Ver o Atos dos Apóstolos.


    Os primeiros cristãos seguiam o exemplo de Jesus de Nazaré que fez opção pelos pobres e deserdados. Jesus não tinha bens e pregava o desapego e a moderação. Ele dizia que o rico teria dificuldade em entrar no céu. O problema é o apego aos bens materiais.


    A Igreja Católica, quando foi oficializada três séculos depois no seio do Império Romano, assumiu propriedades e cargos públicos de modo que a opção pelos deserdados foi deslocada para os poderosos da Terra.


    Reis foram legitimados pelo poder Papal e reinos dependiam do poder dos sacerdotes, raros letrados e eruditos numa sociedade decadente e feudal. Somente séculos depois a figura de São Francisco de Assis despontou como arauto da opção pelos pobres e deserdados do mundo. Os franciscanos pregavam o desapego e a solidariedade.


    A questão da opção pelos pobres foi debatida nos séculos 13 e 14 entre as autoridades eclesiásticas como um modo de apaziguar os clamores populares por justiça social. Os senhores feudais exploravam os servos sem piedade... e com apoio do clero, também dono de terras. Muitas foram as revoltas camponesas. Ver O Nome da rosa, romance do italiano Umberto Eco. 


    Assim um socialismo cristão foi pregado antes de um ‘socialismo científico’ ateu. A mensagem de desapego faz mais sentido com a renúncia aos acúmulos de bens e a divisão igualitária da renda. Na literatura várias personagens abordam as concordâncias entre cristianismo e comunismo primitivo. Lembramos do judeu católico Leon Naphta de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. E também do padre Nando, protagonista do romance Quarup, do brasileiro Antonio Callado.


    A opção pelos pobres, mas não só pelo assistencialismo, mas com transformação social foi resguardado na igreja católica na forma de uma Doutrina Social da Igreja, com especial destaque para a encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII em 1891. O papa reagia ao avanço das ideais socialistas e comunistas e anarquistas entre as classes operárias europeias. Era preciso voltar a falar na condição dos proletários, pregar a justiça social e afastar os fiéis das lideranças políticas ateias do materialismo marxista.


    Em reação a reafirmação da doutrina social muitos setores se separaram desta 'esquerda católica' em nome de um conservadorismo contra socialistas e liberais. Para os conservadores, patrões e donos de terras, a igreja só deveria abordar assuntos transcendentes sem discutir 'políticas e ideologias '. E a igreja passou a resguardar uma minoria de poderosos contra os protestos de uma maioria de explorados. 


    Novamente as mudanças vieram das bases , com as ações de baixo clero, na Europa e na América Latina. A opção pelos pobres voltou ao discurso principalmente com a Teologia da libertação. 






    Leonardo Boff e Frei Betto são os mais lembrados quando se menciona teologia da libertação – considerada herética e ideológica pelos conservadores.  Que agora incluem os liberais. Tanto que os conservadores não liberais adotam o tradicionalismo que é antiliberal e antirevolucionario e antiiluminista. Mais do que a missa em latim os tradicionalistas querem o Ancien Régime e o governo papal. Acusam o secularismo e materialismo dos conservadores que acabam por conservar valores do mundo liberal pós Revolução Francesa.


    Os progressistas católicos são duramente atacados dentro e fora da igreja.  Não são tolerados pelos conservadores e também são desprezados pelos marxistas que não acreditam na fraternidade cristã -- só se aliam ao clamor de justiça social.


    A esquerda católica se preocupava com as condições dos trabalhadores -- tanto que colaborou ativamente para a fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980. De modo que as bases católicas foram essenciais para os diálogos e adesões. Suas pautas eram de cunho trabalhista e sindicalista. Não era somente assistencialismo. 


    Com os tempo, principalmente nos anos 2000, os setores de esquerda abraçaram pautas identitárias que nada dizem aos cristãos. A esquerda atual se preocupa mais com feminismo e casamentos de homossexuais e legalidade do aborto do que com igualdade social e racial e distribuição de renda.


    Com a mudança da pauta social para a moral, a esquerda foi acusada de ser contra a 'família tradicional ' e conspirar contra a civilização cristã ocidental. Assim o discurso conservador conseguiu abalar as bases da esquerda católica já frágil e sem novos líderes eclesiásticos.


    De outro lado o avanço das denominações de matriz evangélica, principalmente nas periferias das grandes cidades, acabou por popularizar outra teologia – a da prosperidade.  Deus abençoa os ricos e os empreendedores.  É 'a ética protestante e o espírito do capitalismo' que encontramos em obra de Max Weber (1904).


    A Teologia da Libertação foi eclipsada pela ‘teologia da prosperidade’ em vastas periferias sem esperança e poder estatal. Os pastores falam mais às classes sociais desfavorecidas do que os padres teólogos de seminários de grego e latim. A teologia da prosperidade nem é uma teologia mas um discurso de adequação das massas exploradas aos imperativos do capitalismo bárbaro e selvagem. Os trabalhadores labutam para serem os próprios patrões  – trabalhando em dobro.


    Assim a esquerda católica que foi forte há 40 anos hoje é pouco expressiva. Não tem novas lideranças e perde quadros para o partidarismo e o socialismo secular. Enquanto os novos cristãos, que passaram do catolicismo ao evangelismo pentecostal, já aderiram à lógica e à logística do sistema capitalista.


    Dizer que Jesus de Nazaré era comunista é um anacronismo mas soa como provocação.  Certamente Jesus não era comunista nem poderia ser. Sua época não o permitiria e nem seria viável.  Mas seus seguidores entenderam a opção pelos pobres como uma mensagem de não acumular bens na terra mas compartilhar fraternalmente para o bem de todos e todas.


    A mensagem cristã é mais próxima do comunismo até pelo caráter messiânico de futura chegada de uma era de fartura e justiça quando todos terão oportunidades iguais e não haverá exploradores contra explorados. Será o Reino da Justiça quando cada um terá acesso ao trabalho e à renda e acabará a carência e a fome. Será o fim da História. Socialistas -- cristãos ou ateus -- esperam com igual fé.


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Sobre Sacerdotes na revolução 

Os pobres, Jesus e as igrejas

Tilden José Santiago 

BH: Selo Starling, 2015


    Parte 2

    Em busca da fraternidade e justiça social 


    Finalmente tivemos a oportunidade de adentrar o universo do pensador e sacerdote e político Tilden José Santiago, nascido em Nova Era, região de Itabira MG, em 1940, e falecido em fevereiro de 2022, aos 81 anos. Vida intensa de pensamento e engajamento.


    Em sua época de estudante, nos anos 1950 e 1960, Tilden José tomou conhecimento das lutas sociais enquanto fazia seu seminário. Mas ainda vota nos candidatos representantes dos donos do poder. Sua jornada rumo ao socialismo cristão apenas se inicia.


    Viajando para a Europa, passa a estudar teologia em Roma, em sólida formação acadêmica.  É uma época de Concílio no Vaticano, com os papas João XXIII e Paulo VI, com forte manifestação dos movimentos eclesiais.


    Época em que Tilden José participa do Movimento da Igreja dos Pobres e resolve ser um padre proletário, um padre-operário em seu sacerdócio.  Da Europa, ele segue para o Oriente Médio, para a Palestina, a Terra Santa, onde vai trabalhar num kibutz, uma comunidade ou cooperativa, de colonos judeus de esquerda, junto aos cristãos e árabes. Havia cooperação mútua.  Ainda havia a solução de dois Estados, Israel e Palestina.


    Tilden José Santiago fez sua opção pelos pobres e deserdados do mundo assim como Jesus de Nazaré que pregava o desapego e a solidariedade. Dar de comer a quem tem fome e dar de beber a quem tem sede. Não simples assistencialismo que nada muda, mas um trabalho em conjunto em prol da justiça social.


    Mas no Brasil as forças da reação e do conservadorismo tomavam conta quando o povo exigia reformas sociais, principalmente a reforma agrária numa época de êxodo rural. O governo legítimo foi derrubado do poder por mais um golpe civil e militar chamado de Revolução de 64.


    Coerente com seus ideais de justiça social, que o aproximavam do socialismo, Tilden José virou militante. Um sacerdote militante que organiza os trabalhadores em cooperativas antes de perceber a radicalização do golpe dentro do golpe em 1968. Época em que muitos seguiram para a resistência na forma de guerrilha ou sobreviveram na clandestinidade.


    Não foi época fácil para os socialistas marxistas nem para os socialistas cristãos. Os relatos de Tilden José mostram de forma clara como os líderes das esquerdas foram sistematicamente perseguidos e eliminados. Nem corpos foram encontrados para um sepultamento digno.


    Tilden José Santiago, que adota a narrativa em 3ª pessoa com o nome de Aliocha, como foi batizado na prisão, em alusão ao marcante protagonista de Os Irmãos Karamazovi, de Fiódor Dostoiévski, presta um testemunho de militância e coerência, com suas aventuras e desventuras no sertão brasileiro ou nos kibutz da Palestina , digno representante dos anseios populares por justiça social. 


    É assim que ele chega ao contato com comunistas marxistas e com socialistas cristãos, com destaques para o PCdoB e a Teologia da Libertação. Teologia que busca progresso espiritual e social. Seus nomes mais proeminentes são os de Leonardo Boff e Frei Betto.

 

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    O engajamento resulta em prisão do militante e inesquecíveis cenas de humilhação e tortura que vitimaram tantos estudantes dos movimentos sociais e partido comunista.


    Sobrevivente, Aliocha Tilden José vai finalmente no casamento e na vida sentimental, atuando na militância do jornalismo junto aos proletários e sindicalistas, no que resultou na fundação do fundamental Partido dos Trabalhadores que chegou à Presidência em 2003 e 2007 e 2011 e 2015, e atualmente em 2023. Um partido com fortes bases sociais que atua na centro-esquerda e recebe crítica da esquerda comunista e ataques das direitas liberal e conservadora.


    Tilden José Santiago permaneceu no Partido dos Trabalhadores em sua atuação política, no partido e na função de deputado federal, até a importante função de diplomata (em Cuba, mandato de 2003 a 2006). Depois por divergências internas partidárias saiu ou 'foi saído' do Partido dos Trabalhadores em 2007.


    Continuou sua militância de esquerda em partidos socialistas tais como PSB, PSOL e PPS (atual Cidadania). Se aproximou de governos de centro-direita em tom conciliatório de bom político mineiro.


    Extensa e coerente carreira política que conciliava sacerdócio e militância, participação nos trabalhos coletivos e  pregação cristã da justiça social. Sua narrativa testemunha a busca pessoal e coletiva do ideal de um mundo sem explorados, de uma sociedade fraterna como esperavam os primeiros cristãos.


    Tilden José Aliocha Santiago nos deixou em fevereiro de 2022, aos 81 anos, num quadro pavoroso de pandemia em pleno governo de extrema-direita neoliberal de um desgoverno genocida. Tilden José Santiago foi mais uma das vítimas da Covid-19 que, no Brasil, ceifou a vida de mais de 700 mil irmãos e irmãs.



    Nov/ Dez23


Leonardo de Magalhaens 

Poeta, contista, crítico literário 

Bacharel em Letras FALE / UFMG

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terça-feira, 28 de novembro de 2023

Nalgibeira e Solfejos do Querer Bem : Poesia e cantoria em busca da infância perdida


 

 

 

Sobre Nalgibeira e Solfejos do Querer Bem 

Livro e CDs de Antônio Souza Capurnan 

Contagem MG 2023




    Poesia e cantoria em busca da infância perdida



    Introdução


    Depois de dois e meio de espera, finalmente, temos em mãos o livro e CDs lançados pelo professor, poeta e cantador Antônio Rodrigues de Souza, ou Antônio Souza Capurnan, com sua riqueza poética nutrida da fala e da cantoria popular. Trata-se do livro de poesia infanto-juvenil Nalgibeira e os CDs Indezrima e Pavios Negreiros juntos no Solfejos do Querer Bem. Poesia e cantigas e madrigais e lundus e sambas e toadas para testemunhar a manifestação cultural popular.


    Antônio Souza Capurnan é autor consagrado por obras tais como Flores no Pote (2002) e Valsa Mínima (2015) com seu estilo baseado numa linguagem popular que lembra um poeta Manoel de Barros e um cronista Olavo Romano. Vozes que espelham as falas populares que estão presentes na vida interiorana. A voz do campo vem falar poetica e musicalmente nos lábios do homem (educador, intelectual) que desbrava a cidade grande, o mundo de asfalto e aço.


    A literatura mineira é tecida com as tensões entre a vida do campo e a vida da cidade. Grupos se retiram do campo para a cidade e se mostram deslocados: querem entender a vida urbana e ao mesmo tempo conservar as tradições rurais. É o que move a literatura nossa das Minas desde Cyro dos Anjos e Otto Lara Resende e Guimarães Rosa até Olavo Romano.[1]


    A poética de Toninho Capurnan é uma tradição e um resgate das cantigas e toadas da roça, das resistências de indígenas e negros, de aldeias e quilombolas. É uma expressão lírica de recuperação do tempo perdido e um protesto contra a destruição do ontem, carregado de afetividade, em nome de um futuro artificial e tecnocrata.







    Nalgibeira



    É poesia infanto-juvenil para crianças e adultos ou poesia crônica de vida, ao estilo da poética de Manoel de Barros. [2] É uma linguagem oral, singela, sincera, saudosista, lírica mas não ingênua. Há um adulto que recupera a fala infantil, mas que sabe que a infância se foi, a ingenuidade se foi. Não represa amarguras, mas está ciente das perdas.


    Capurnan rememora e revive poeticamente sua infância na geografia sentimental da vida rural no mundo que visitamos muito com a literatura regionalista de José Lins do Rego ou Graciliano Ramos, ou infanto-juvenil de José Mauro de Vasconcelos.[3]


Estes são meus irmãos. 


Viviam 

Na casa antiga,

Remendada e grande,

De chão batido e janelas esparramadas.

De frente para o sol, 

Uma mata pequena, 

O curral, 

O córrego. 




É a crônica das origens a criar a tessitura dos poemas que narram vida e labutas de pai e mãe e irmãos e irmãs numa vida que está situada num dado tempo e espaço, o ontem e o campo. As tradições da vida rural ainda existem, mas o menino que veio do campo cresceu e se perdeu na vida urbana. Seu desejo (e senso de dever) agora é testemunhar o que foi vivido e nos apresentar as suas origens.


Meu pai era branco e indígena.

Minha mãe era indígena e negra.

Ele tinha olhos de saudade.

No olhar de mãe, marejava um vigor de folha seca.


[...]



Meu pai era homem da terra e de sertão. 

Forte e trabalhador, nosso pai 

Acariciava a terra, os cavalos, os horizontes de boi.

Adentrava em reza os segredos do chão.


[...]




    A narrativa poética conversa bem com a criança dentro de nós, os leitores e as leitoras adultas, que amamos e idealizamos nossa infância, não importa se sofremos, se choramos, se passamos fome e carência. A emoção nos prende pelo espelhamento, quando imaginamos nossa vida na mesma fazenda, tomando banho no mesmo rio, plantando na mesma roça. Vivemos nas cidades, até nascemos aqui!, mas somos saudosistas do campo.







Indezrima e Pavios Negreiros



    Na produção dos CDs, o poeta e cantador Antônio Capurnan se cerca de amigos, amigas, poetas, cantadores, músicos, recitadores, contadores de estórias, performáticos da voz. É uma obra coletiva por excelência, com várias participações e contribuições as mais diversas, de tradição lusitana ou de matriz africana ou de herança indígena. Várias vozes e ritmos, mas tudo está entrelaçado com poesia e melodia, com forte marca autoral.


    Vários poemas estão em forma musical em plena acepção de ritmo e melodia. A poesia de Capurnan já é melodiosa, cantante, mas agora o corpo musical caprichou. As músicas em vários estilos ora animadas, ora melancólicas tentam retratar os vários sentimentos do poeta em sua jornada de recuperação (improvável !) da infância perdida.



O tempo habitava em mim doce e comum

Na fazenda atemporal 


O Tempo [Indezrima]


...



Agora a terra ia mudando de lugar e a vida

Sob os pés foragidos e descalços dos homens de Salinas


Os Salineiros [Indezrima]





Soube depois de grande 

Que a casa onde nasci fora vendida por mãe 

E que em torno dela cresceram capim e ervas daninhas

E que portas e taramelas ruíram 

E tudo dentro ensimesmou de verde sol


Outras janelas/ Taramelas [Indezrima]




    O poeta recorre às várias referências e intertextos que despertam mais lembranças de obras clássicas de nossa literatura mineira e brasileira (e universal !) quando deixa aflorar uma intertextualidade com o conto de João Guimarães Rosa, A terceira margem do rio [in Primeiras Estórias, 1962], uma narrativa profunda, mítica, mas familiar.


A correnteza que leva a vela 

É a mesma que leva o homem 

É a correnteza com a qual o peixe 

Aprende desde cedo a navegar 


[…]



A Terceira Imagem do Rio


[Pavios Negreiros]




    Também em referências aos eventos mundiais, como sua menção à paisagem espanhola, com seus moinhos de vento, nas páginas de um Dom Quixote, ou a Guerra Civil Espanhola [1936-1939], de triste memória e inspiração para vários autores, dentre eles Hemingway, George Orwell e Javier Cercas. Além dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. [4] É o contraponto da cosmopolitana e republicana Barcelona em contraste com a conservadora e monarquista Madrid. São as forças da tradição e do progresso em antítese antes de uma síntese.


A minha alma é como Barcelona 

Uma cidade tantas e tantas vezes ocupada 

...

A minha alma é como Barcelona uma cidade sitiada 

Por moinhos de vento e alucinações de além-mar


...


Integridade na Ambiguidade 


[Pavios Negreiros]



    Referências e intertextos, mas também metapoemas, quando o Poeta se coloca na problemática, se explicita enquanto voz que expressa um recorte da realidade, integrado no coro das lavadeiras, nos cantos maxacalis, nas voltas do ribeirão, nos sambas e lundus, nas rimas e arranjos, nos choros e serenatas, sempre lá o Poeta camarada, de mãos dadas, participando e cantando, lavrando cada verso e afundando até a lama.


[]


Poeta bom vira peixe

Se enrosca 

Na trama na rede no feixe 

Poeta é pá-que-lavra 

Voa bem fundo o poeta 

[...]

Mora na boca da lavra o poeta 

Bem dentro onde a larva é a meta 

E a mata 

[...]


Inseto [Pavios Negreiros]




    Assim é um convite à festa e ao sarau, com rima e cantadoria, dialogando infância e tradição com resistência e diversidade, a obra poética e musical de Antônio Souza Capurnan, em Nalgibeira e CDs Solfejos do Querer Bem, Indezrima e Pavios Negreiros. É ler, é recitar em voz alta, é entoar uma prece, é cantarolar, é se emocionar com serenata e cair no samba.


BH



Nov23



Leonardo de Magalhaens

poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG

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Notas


[1] Cyro dos Anjos, autor de Amanuense Belmiro [1937]. Otto Lara Resende, autor de O braço direito [1963]. joão Guimarães Rosa, autor de Manuelzão e Miguilim [1964]. Olavo Romano, autor de Casos de Minas [1982].


[2] Manoel de Barros (1916-2014), autor de Menino do mato, Memórias inventadas e Exercícios de ser criança.


[3] José Lins do Rego, autor de Menino de Engenho [1932]. Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas [1938] e Histórias de Alexandre [1944]. José Mauro de Vasconcelos, autor de Meu Pé de Laranja Lima [1968].


[4] Dom Quixote [Don Quijote de la Mancha, 1606] obra clássica do espanhol Miguel de Cervantes. Ernest Hemingway, autor de Por quem os sinos dobram? [1940]. George Orwell [Eric Arthur Blair], autor de Lutando na Espanha [Homage to Catalonia, 1938]. Javier Cercas, autor de Soldados de Salamina [2001].





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