sobre Balada da misericórdia na primavera [2022]
do poeta Erivan Santana
[Academia Teixeirense de Letras ATL - Bahia]
Cantigas para a Passagem do Tempo
É preciso viver o Agora. Deixar as sombras do passado e as ansiedades pelo futuro, e se entregar ao momento presente. Superar as nostalgias do passado e as expectativas diante do futuro. Só existe o Agora, o aqui e agora. O restante já se foi ou ainda virá.
O Ontem deixa marcas no Hoje que tem as potencialidades do Amanhã. É um ciclo em eterno retorno, numa roda de construção e destruição. A mente consciente de sua condição efêmera aceita sua finitude e vive em recordações e em projetos – se lança nas possibilidades. Tanto há angústia em lembrar o tempo que se foi quanto em imaginar o futuro que se anuncia.
Em Balada da misericórdia na primavera, de pé diante do real, temos o Poeta Erivan Santana no aqui-e-agora a testemunhar e denunciar as desigualdades, as tragédias, as guerras, ao apontar para uma geração de homens ocos , hollow men, de T. S. Eliot,
Ouço vozes altas, alegres e perturbadoras
Os homens, absortos em fugazes distrações,
Não leram os versos do poeta
Deixando serem levados pelo vento
[...]
Homens ocos, vazios
Mesmo posicionados lado a lado não se sustentam
A morte lhes pinta o cabelo de branco todos os dias.
[O Café, p.17]
O Poeta sofrendo o ciclo dos tempos, fragmentado pela mente ciente, em ontem, hoje e amanhã, testemunha sua nostalgia, um inútil sentimento, apenas porque somos finitos e efêmeros, enquanto o tempo é completo na Eternidade,
As cartas de Neruda
Não chegaram a tempo
O tempo não para
Para o poeta
As rugas, as mãos
A face refletida no espelho
O trem das onze
O tempo só para
Para a eternidade
[O poeta e o tempo, p. 21]
Dentro da eternidade, nos ciclos que se sucedem, vivemos o aqui-e-agora dos nossos dramas, das tragédias, nossa época de tragédias anunciadas, de catástrofes ambientais, em Mariana, em Brumadinho, onde as vidas humanas são carregadas por mares de lama que devastam meio ambiente e famílias inteiras, para a indiferença das empresas que apenas visam o lucro.
A natureza se cansou de represar
A ambição, a avareza, o caos
O som não era do trovão
Era anúncio de morte
...
Para a Vale, quanto
A vida vale?
[Tempo Presente, p. 37]
Na passagem do tempo, o Poeta tem diante dos olhos uma sucessão de imagens, de flashes, de momentos preciosos da vida, povoada de cenas, canções, pinturas, passos de dança. Assim as imagens das artes que aliviam o peso da efemeridade, e trazem uma celebração da vida,
Por isso, Cézanne pintou
Um mergulho em tela cheia
Em cores, celebração da vida
[XI Mandamento, p. 13]
Venha como vier
Sempre do seu jeito
Debret nos espera
Com o café e a história
No canto da livraria
[Brasilidades, p. 72]
Afundado em nostalgia o Poeta revive as imagens do passado, o Verão do Amor, Summer of Love, em Londres, a apoteose dos Beatles, a Geração Beat, o Clube da Esquina, a Tropicália, os Novos Baianos, o rock psicodélico, os Mutantes, todo um espírito de época, Zeitgeist, que compõem não só o passado, mas o que o Poeta é hoje. Seu Eu-hoje, pleno, criador, está impregnado de Eu-ontem, numa reencenação saudosista.
Uma voz distante chegava até nós
Uma noite em 69
Sharif Dean, Beatles, Rolling Stones
[…]
O sonho de uma geração
Marcada pelo transe da rebeldia
Em atenção à palavra de ordem
[Uma Noite em 69]
Adentrando seus vários Eus no fluxo do tempo, o Poeta revela-se enquanto um leitor atento, com inúmeras referências às obras literárias, às sagas, às epopeias fundadoras, às/aos autore(a)s clássico(a)s e moderno(a)s, pensadore(a)s, artistas, políticos, cidades, por exemplo, Odisseia, Ilíada, Divina Comédia, Eclesiastes, Rui Barbosa, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Pablo Neruda, Mário de Andrade, Nietzsche, Kant, Bíblia Sagrada, deuses africanos, Waly Salomão, Raul Seixas, Gilberto Gil, Debret, JK e Brasília ...
São listados e reverenciados vários filmes, livros, coletivos, gerações, Beat Generation, Clube da Esquina, Tropicália, em camadas e mais camadas de intertextualidade, Assim falava Pessoa parodiando Assim falava Zarathustra, 1883, de Nietzsche, ou Vagabundos Iluminados, título no Brasil para Dharma Bums, 1958, de Jack Kerouac, ou os filmes Era uma vez no oeste, 1969, de Sergio Leone, e A Classe operária vai ao Paraíso, 1971, do diretor Elio Petri, e Último Tango em Paris, 1972, do diretor italiano Bernardo Bertolucci, e Cinema Paradiso, 1988, de Giuseppe Tornatore,…
Ou poemas com títulos de canções Como nossos pais, de Belchior, e Para Lennon e McCartney, do Milton Nascimento e Clube da Esquina, Stairway to Heaven, balada hard da banda britânica Led Zeppelin, o disco Banquete dos Mendigos, Beggars Banquet, 1968, da banda Rolling Stones.
Todos tempos, tantas épocas, tantos Eus-ontem dentro do Eu-hoje não causam aflição, mas uma completitude, um conjunto de retratos que se movem como uma película de filme, assim, cenas em movimento que passam diante dos olhos do Poeta quando ele se debruça sobre sua vida e a registra em versos, Haja poesia para saudar cada dia [Andando com Fé], esperançoso, numa crença na missão do Poeta, Cumpra o prometido, poeta / use a lâmina da palavra iluminada / E desafie a realidade […] Veja a sombra de todos os seus medos / Mas não temas, poeta [Ao poeta desconhecido].
Em suas baladas na chegada da primavera, o Poeta Erivan Santana entoa loas aos tempos perdidos, como um bardo proustiano, tratando sua vida como matéria-prima de sua Escrita, tecendo sua Poética com a fibra íntima de suas lembranças presentificadas, reforçadas com profunda esperança, Esperamos porque a poesia / Assim quis, soberana em preencher / O vazio da alma em decomposição [Por que esperamos?,p. 23]
set 22
Leonardo de Magalhaens
poeta, contista, crítico literário
Bacharel em Letras FALE UFMG
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