quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Extraindo Poesia do cotidiano cinzento -- Asfalto -- Adriano Borçari

 

 


 

 

 

Sobre ASFALTO [2021]

do poeta Adriano Borçari

[Contagem / MG]



Extraindo Poesia do cotidiano cinzento




Transformam-te anverso do sofisticado

Encontram-te no simples

Mas belo

É tudo o que, quando posto,

pode ser compreendido com simplicidade


(XXIV) Galeria de Arte, Adriano Borçari, 2022





    A Função da Poesia é uma discussão antiga. Muito foi debatido e com algumas conclusões aceitáveis a querela se acalmou. Pelo menos nesta geração. Agora a discussão é: DE ONDE vem a Poesia? De que ser subjetivo ela nasce? De que busca estética ela floresce? De que angústia existencial ela é extraída?


    Na poética de Adriano Borçari, em seu ASFALTO [2021], a Poesia brota da própria Vida – em seu cotidiano mais prosaico. O ser humano em seu dia-a-dia banal. Em casa, com a família, os amigos, indo para o trabalho, em pleno serviço, o retorno ao lar – tudo marcado numa jornada de insights, epifanias, onde o Poeta manipula (ou recicla) a linguagem para gerar um Sentido que justifique.


    O cotidiano do lar, do serviço, do boteco, do futebol, das buscas por novidades. Ou o rompimento da mesmice pelo medo da pandemia que tomou conta do mundo em menos de um ano. O poeta tem olhos para ver e coração para sentir: o mundo se mostra comum, banal e, ao mesmo tempo, bizarro. Banalidades acinzentam a vida a ponto de se perceber que o dia-a-dia que vai perdendo cor …


Pouco a pouco tudo vai perdendo sua cor, seu brilho

[…]

Mas agora que nossa confusão e medo começa a desbotar as cores

Será que conseguiremos identificar formas, gestos e ações que

nos levem a

novos caminhos?


[Vangoghless, p. 15]



    Diante do cotidiano cinzento, desbotado pela banalidade, o Poeta sente perder os contornos em sua condição de mártir do dia-a-dia numa massa de cansaço, preguiça, mal humor, devido a mesmice dos hábitos e dos ritmos, tal como uma locomotiva na mesmíssima bitola,


Por vezes o dia me põe de pé já diante do espelho

A imagem que reverbero de mim mesmo só devolve cansaço

[…]

Me arrasto pelos cômodos deixando meus rastros:

preguiça e mal humor


[Homem-bomba, p. 19]



Neste momento, sou como uma velha maria fumaça

Girando pesadamente meus pés-de-ferro sobre o trilho afim de

dar movimento

à composição


[Pés de ferro, p. 20]



    Para sobreviver dia após dia o Poeta espera ansioso pelas novidades, as flutuações que rompem os hábitos e as fadigas, assim trazendo novas sensações e novos pensamentos, como uma carícia de renovação,


Gosto da sensação de ser tocado por algo novo

Me faz crer que o hoje não encerra o ontem, é portal do amanhã

E o amanhã é como este vento

Me faz carinhos de novidade


[Novidade, p. 69]



    Nos ciclos de banalidade e de renovação, o Poeta torna-se consciente do ‘teatro social’, de uma construção ilusória e alienada da realidade, para manter tudo seguindo numa repetição, como um mecanismo de ‘inércia social’, era após era, que precisa ser atravessado pelo eu-lírico para além de sua zona de conforto.


Não ostento orgulho do teatro social

Mas não intento nem a ele, nem a minha loucura, conforto ou

pertença

Simplesmente o perpasso, atravesso

Procuro sair na noutra margem desde ilusório

Sem ter ferido e sem feridas


[Fake mente, p. 28]


    Seguindo como inércia num sem propósito, a Vida parece mais um tipo de mecanismo, uma forma de opressão que causa aflição e crise existencial, num sistema de produção, acúmulo e consumo repetitivos, em ciclos constantes de alienação, onde as mentes deixam de ser conscientes para agirem maquinalmente, como cativas de uma industrial linha de montagem.


Maquinaram os ciclos e nos tornamos máquinas

Venderam o produto destes ciclos e agora somos produtos,

mercadoria


[Aterro, p. 64]



O peito perde espaço e chora silencioso

Enquanto o resto de corpo, maquinal, executa seus afazeres


[Empório, p. 30]




Vou seguindo assim:

andrajo, vivo-morto

Mas o importante é não interromper a produção, 

a série,

a série

Essa série de rodopios encaixotados, industrializados

artificiais

[...]

A seguir assim, pereço

Mas antes, robotizo-me


[Industrial, p. 49]




    Para se encontrar, para se completar, para coordenar seus fragmentos, o Eu-lírico busca fazer a contabilidade da vida em busca de proporção, da justa medida, ou a justeza das coisas, para justificar sua existência para além da alienação e a inércia, sabendo seu lugar no mundo, sem roubar espaço dos outros, colegas nas mesmas condições.


Tento compor medida certa para analisar a vida que me toca

neste presente

Dentre diversas trocas: as físicas e as simbólicas, que estabeleço

O desafio reside em extrair a proporção exata do resultado


[Prato cheio, p. 67]




Respeito no alheio, a vez e o lugar

Não roubo espaço e nem marco territórios imaginários


[Fila, p. 12]




    Em sua consciência sempre ativa, o Poeta precisa lidar com o processo e a figura do Tempo, diante da qual somos todos submissos, arrastados pelo fluir do berço ao túmulo, do nascimento à morte, em ciclos que se sucedem, onde uma vida humana, o ‘tempo do homem’ é poeira que se espalha no ar.


Somos limo

Desinventados pelo tempo

Numa articulação que vai e volta

Hora pólvora, hora fumaça


[Tempo do Homem, p. 84]


Enxergo o tempo como uma pesada cortina

Deitando sobre as janelas de nossas vidas

[…]

Obrigado, tempo,

Pela pedagogia da finitude,

Ao escurecer minha vida afora,

Me clareou de vida dentro


[Pálpebras, p. 138]







    Como expressão de si-mesmo, o Eu-lírico tem a Palavra, Letra-Som, quando do manuseio da Linguagem, e, assim consciente de tal condição, o Autor se identifica com o Poema, onde pode condensar sua Arte, como parte de seu ser, num desejo fremente de ser ouvido,


E hoje quando me faço poema

Descarrego em mim o custo de cada sílaba


[Nota Fiscal, p. 108]



um copo cheio de mim mesmo

com minhas vozes

minhas próprias palavras

essas, que não canso de inventar

a mim.


[Prolixo, p. 100]



Queria fazer um poema

Leve como as plumas de um pássaro

Leve como sonhos distantes


[Anseio, p. 63]



para os que me leem ou me ouvem

é que a palavra se arreda pro lado

e no campo das ideias

deixa de ser palavra pra ser coisa


[Merecimento, p. 39]




    É quando estamos diante da presença dos metapoemas, quando o Poema surge do próprio fazer Poético, ao se questionar os potenciais e os limites da Poética, num mundo que padroniza e cataloga tudo, degradado ao populismo e à demagogia, como salvar a Palavra do Senso Comum? Como extrair Poesia de um mundo banalizado? É preciso dar uma ressignificação às palavras! É preciso polir e afiar as palavras até o estado de lâmina de corte – para romper a banalidade!


inclusive, em nenhuma esfera de ressignificação das palavras

[que me perdoe o poeta)

[Omissão, p. 122]




Meu pensar atavia minhas palavras

No intuito de burlar os sentidos que realmente me habitam


[Formoso, p. 80]



Já trovei meu canto com a boca cheia de vidro

Fiz das palavras lâminas a fatiar argumentos


[Asfalto, p. 10]




aquelas palavras

cuspidas como cacos de vidro


[Manso, p. 139]





    Tal consciência da condição da Linguagem deixa o Autor carente diante do/a Leitor/a, a ponto dele se perguntar sobre a possibilidade de ser lido / compreendido por outro/a, que pode ser inalcançável,


Cópias e mais cópias mimeografadas:

de mim,

por mim,

para mim

Também para você

Consegue me ler?


[Mimeógrafo, p. 74]



Minha poesia esmoleira

olha para o alto com cara de abandono esperando que caia algo,

qualquer coisa,

palavras

Mas tudo passa sem me notar

Somente eu me percebo!

Sou poeta invisível

Se não consigo nem escrever,

como serei lido?


[Mendigo, p. 135]









    O próprio Poeta é um autor-leitor, conhece a condição de quem lê e se nutre de palavras de outro/a/s, sendo um compulsivo manuseador de obras alheias, com as quais cria mais pontes e intertextos, com autores e autoras que ele mesmo cita, orgulhosamente, Adélia Prado, Carlos Drummond, Clarice Lispector… como encontramos na p. 116, o poema Divinópolis. Ou a referência ao Santo Agostinho, patriarca da Igreja Romana, e o ‘livre arbítrio’, na p. 106, Peraltice.


    Também a presença dos mitos, as mitologias, as narrativas fundadoras do vários povos, letrados ou não, assim, por exemplo, um mito grego, o de Ícaro, que ganhou de seu pai, o arquiteto do labirinto do Minotauro, um par de asas coladas com cera, a mesma que se derrete quando ele ousa voar muito alto, na loucura de querer alcançar o sol, Prefiro quando voas ao sol / derretendo suas asas e caindo em meus braços [p. 112]



    É tanta leitura, é tanta poesia, que vem libertar o Poeta do cotidiano cinzento, como ele mesmo confessa na p. 106, Peraltice,


essas traquinagens me sobrevivem

Sem elas, receio pensar somente

Em trabalho, 

e tributos,

e missais,

e deveres.

Sou mais refeito no subvertido que no posicionado




    O Poeta Adriano Borçari, autor de ASFALTO, sabe, tem consciência, de que poesia é reciclagem [ver p. 64], Mas desse lixo retiro ar para minha poesia / O aterro é um pulmão poético. E ele sabe que não precisa de explicar a poesia, Não careço explicar poemas [p. 141], como testemunha em seu belo poema Entropia Poética,



Permito-me entrega na desordem de meu pensar

Faço dele, sistema próprio!

[...]

Não careço explicar poemas

Nem me preocupo em medir a energia que empreendo na 

construção de meus

[versos





set/22




Leonardo de Magalhaens


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG




Um comentário:

  1. Livro ASFALTO é potente, muito bem escrito, profundo, e o artigo de Leonardo nos estimula a conhecer e a reler a obra de Borçari. Recomendo-os

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