terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Poesia que leva para fora da zona de conforto


 

 

 

Sobre De tanto bater com o osso,

a dor vira anestesia

[SP: Penalux, 2021]

poemas de André Giusti [1968-]



Poesia que leva para fora da zona de conforto



De tanto andar a esmo,

A distância fica curta.

De tanto bater com o osso,

A dor vira anestesia.



    A Poesia vem para surpreender, vem para nos chocar. Uma poesia sem causar arrepio ou ranger de dentes é um amontoado de palavras numa folha. A poesia não é uma anestesia, mas uma dor de dente aguda. O poema não vem consolar ou ser um conforto estético, mas um proveitoso tapa na cara.


    De tanto bater com o osso, a dor vira anestesia, do poeta carioca André Giusti, atual morador de Brasília-DF, é uma coletânea de poema, dos anos 1980 até nossos dias, com amostras de várias fases do poeta, a cada época e suas demandas. Poemas que causam choque, arrepios, mal-estar, angústia, riso histérico.


    Poemas da fase marginal, estilo poema de mimeógrafo, irônicos, eróticos, prosaicos, com cenas do cotidiano, como se fossem notícias tiradas de um jornal, ou de boletim de ocorrência qualquer. O que o poeta faz é reelaborar liricamente um evento prosaico, cotidiano. O poeta faz um ‘poema de pequenas causas’, “A chuva nos chama da calçada / com a voz perdida de mãe / querendo saber se levamos casaco.” (1990)(p. 15)


    Nos anos 1990 percebemos que o poeta passa a elaborar mais sua poética, com referências e intertextos com seus poetas e cronistas favoritos, seja Mário Quintana, seja Rubem Braga, agregando suas meditações de um jovem adulto. A passagem do tempo, a condição efêmera da vida, o fenômeno da morte. Percebemos claramente, enquanto leitores, a evolução estética do autor.


O mundo inteiro flutuava

cheio de brisa e de luz.

Sentado na praia no final do verão

me vi clarividente astro

tocando com as palmas

as portas de um sonho bom.


(Místicos, 1991, p. 17)




Por agora serão o bastante

velhas interrogações

sobre limites hipotéticos

das galáxias

e o que se destina a todos nós

após o sopro desconhecido da morte.



(O abstrato vai à praia à noite, 199, p. 18)



    O relacionamento amoroso, a busca do afeto do outro, da outra, passam a ganhar mais corpo no poema, não só pelo lado erótico, mas de convivência mesmo, de troca de experiências, mais do que de impulsos libidinosos. “o dois se beijam / se consomem / e emperram a alavanca do tempo. / Ela olha séria / Ele tem medo. / Os dois estão se amando.” (Eles dois, 1992, p. 21)


    Inquietações de jovem adulto, no mundo do investimento amoroso e do crescimento profissional, profundas e motivadoras, transbordam nos versos da fase anos 1990, com a questão da exploração do trabalho, da dedicação do jovem empregado que vende seu tempo e sua força-de-trabalho no livre mercado. “Quem paga mais para ser o lobo / que vai me jantar / na frente de todos / na sala da diretoria / na fila do cartão?” (Corporation Trade Center, 1992, pp. 22-23)


    De sua consciência o poeta tece sua poética, como superação das circunstâncias, como uma forma de resistência estética contra as forças que acabam por ‘despedaçar’ o indivíduo na vida moderna,


É fato que à vezes acordo moído

triturado

uma parte em cada lado.

Mas não me deixo levar pela

varredura pública,

e mesmo que a custa de dor e sangue

faço do dia uma arte

miraculosa

de juntar pedaços.


(Das tripas coração, 1992, pp. 24-25)


    Vida moderna que confronta o poeta como um adversário impossível de ser derrotado, contra o qual guardamos um rancor e um ódio que apenas vem a sufocar nós mesmos, ao ponto de querer dar um fim a própria existência,


Com quantas pessoas me confronto

quantas amizades não tenho

quantas inverdades escuto

quanto ódio já guardei até no sonho.

Quantas vezes me matei

sem ter me jogado lá do alto

do parapeito

do terraço

no fosso do elevador em manutenção.


(Edifício Avenida Central, 1994, pp. 31-32)


    O poeta com plena consciência de sua estética, da sua construção de linguagem, se aprofunda nos metapoemas, fase de maturidade, com as falas que falam de si mesmas para um outro Eu deslocado para a condição de Outro. Ou um desafeto, ou uma ex-amante com quem o poeta quer falar, desabafar, mas sabe que não será ouvido.


Escrever é o que resta,

posto que a poesia

é a única das forças

que ainda não lhe arrancaram.

Escrever escrever escrever,

mesmo que sejam cartas

ao primeiro ministro da Namíbia.


(O gênio da raça, 2017, pp. 59-61)



    Muitos poemas ficam mais concisos, com as palavras cuidadosamente escolhidas, e cada estrofe é um haicai, onde às vezes o título do poema tem mais caracteres que o próprio texto. E os poemas de amor e paixão ficam mais líricos e maduros. Com uma elaboração maior do que a pulsão da juventude. Mas ainda dentro do poeta está aquela essência de rebelde lírico de leitor da geração marginal, com seus desabafos e trocadilhos e palavrões. 

 






    É quando nos anos 2000 começa a abordar a ‘geração’, o pessoal que nasceu em fins dos anos 60 e viveu a juventude nos anos 80, ao som de Pink Floyd, Lou Reed e U2, lendo dos marginais e as edições da L&PM. Tendo consciência de si mesmo e sua classe social, o eu lírico se percebe produtor de textos dentro de contextos, num conjunto de encaixes e conexões, desde sua perspectiva de homem branco, heterossexual de classe média. E passa então a tecer críticas a ‘sua geração’, como faziam as bandas rock’n’roll dos anos 60.


    É o momento atual quando o poeta André Giusti, em plena maturidade, em seu impactante De tanto bater com o osso, a dor vira anestesia, faz uma radiografia da sociedade na forma de pérolas poéticas, com perspicácia e sabedoria, distribuindo ironia e sarcasmo contra os acomodados e os reacionários, os sonolentos e os conservadores, os que foram incendiários da contracultura e hoje são os ‘caras escrotos da minha geração’, hoje os tiozões do zap pregando ‘intervenção federal’. São meras ‘personas’, as máscaras que carecem de essências e vivem manipuladas pelos poderes da vez. Máscaras e messias não faltam para uma geração que já perdeu seus ídolos e seus rumos, seus ideais e suas utopias.




Naquele tempo

jovem lutava por liberdade,

não era costume nosso

defender costumes.

Naquele tempo não havia apenas Rock’n Roll all nite.

Naquele tempo também havia esperança.


(Naquele tempo, 2020, p. 78)




Leonardo de Magalhaens

poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG 

 

 

 


 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Poesia densa, direta, bruta, ponto final. TRILOGIA DO POEMA BRUTO. Lecy Sousa

 

 


 

 

 

Trilogia do Poema Bruto


Lecy Sousa


2023

 

Prefácio



        Poesia densa, direta, bruta, ponto final.



        Conhecemos o poeta Lecy Pereira Sousa como um artífice da palavra, um poeta performático que ainda não atingiu as graças da mídia. Lecy Sousa é um poeta que pensa e constrói seus poemas, seus textos, suas crônicas, como performance, ou melhor, são pensados como uma união de sons e gestos, palavras e espetáculo, assim é em suas obras anteriores, PRIMEIRAPESSOAPLURAL (2008) e Rascunhos (2015) e Poesia Fora da Curva (2017), e em Bora lá, Baudelaire, da coleção Flores do Caos, do Selo Starling, em 2022.


        Em Trilogia do Poema Bruto, Lecy Sousa, nos entrega aqui uma poesia densa, direta, sem prolegômenos, sem lero-lero, em suma, bruta. O poeta mesmo confessa que leva um ‘poema bruto’ para ‘a meiga vovozinha’ (p. 55), que o lance é mesmo ‘quebrar tabus’,

"A cidadela aguarda versos crus

Poesia de guerrilha quebra tabus." (p. 10, Parte I)



        Poesia não é só jogo de palavras, ou trocadilhos, ou rimas preciosas. Poesia começa com o jogo, o trocadilho, as rimas e vai para – onde? Pois é. Poesia não só passatempo de um homo ludens [1] , mas uma seta atirada que não sabemos onde ou quem vai atingir. Isso o poeta oferece, Poesia "onde habitam versos sem rumos" (p. 44, Parte II), que vai para onde quer, como se tivesse vontade própria, sem encaixes, rindo de si mesma,


"Esses versos que nunca se encaixam" (p. 29, Parte II)



"Poesia é rio rindo de si" (p.4, Parte I)



"Enquanto o verso se constrói

Em papel rascunho branco" (p. 7, Parte I)






            E de leitura em leitura, o poeta revela e desvela seus toques de ‘intertextos’, Intertexto quando nasce invade o chão” (p. 9, parte I), em várias referências a outros poetas, cultura pop, música, outras artes, numa teia emaranhada de intertextos, com invocações explícitas de Mário Quintana, Raul Bopp, Cruz e Sousa, "Quisera um poema sinuoso tal Cobra Norato" (p. 13) [2], numa busca de versos livres a la Whitman,


"Sonho em poema no deserto

Contanto versos aos cactos florescentes." (p. 11, Parte I)


            É um poeta preocupado com vanguardas? Com pós-modernos? Ou em busca de 'versos simétricos'?, "Será possível tal poesia?" (p. 57), ao contrário, antes um poeta irônico consigo mesmo, autor de 'poesia desclassificada', pois "que poeta é esse que se diz criativo?" (p. 30), numa total problematização do fazer-poesia, do condensar, do canalizar, num escolha constante. Não é qualquer palavra que servirá.


            É Poesia que exige imersão, concentração, dedicação, a ponto de ter que se afundar no oceano de letras, sílabas, palavras,


"Tanta imersão / Fundo tão deep /

Não há como rimar / só mar mais mar." (p.41, Parte II)






mai/22


Leonardo de Magalhaens


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras / FALE / UFMG








Notas



[1] Homo Ludens é livro do holandês Johan Huizinga, publicado em 1938.


[2] Cobra Norato, 1931, obra do poeta Raul Bopp, com tendência ao verso livre. 

 

 

sábado, 3 de dezembro de 2022

TRILOGIA DO POEMA BRUTO -- novo livro do poeta LECY SOUSA / Contagem MG

 





Saudações!


Tenho a satisfação e o prazer de divulgar o novo lançamento

do meu amigo poeta Lecy Sousa, poeta, performancer, contista,

bibliotecário em Contagem, MG. Autor do recém-lançado 

Bora Lá, Baudelaire, na Coleção Flores do Caos, do 

Selo Starling, BH / MG. Agora na aurora de 2023

com o agurdado TRILOGIA DO POEMA BRUTO pela 

editora Viseu. 

 





fonte da foto: Facebook do autor 

https://www.facebook.com/lecypereira 



TRILOGIA DO POEMA BRUTO 

uma poética sem meios termos, direta e bruta,

sem deixar de ser lúdica 






Aguardem mais sobre TRILOGIA do POEMA bruto 

e nossa resenha em breve aqui !








sábado, 19 de novembro de 2022

10 livros fundamentais -- dicas de leituras -- no canal LdeM Literatura Agora!






série 10 livros fundamentais 



Literatura Agora! 

Dicas de leituras 

poetas, editores, filósofos, professores, leitores atentos divulgam
suas listas de livros favoritos ...




10 livros fundamentais 
para Leonardo de Magalhaens






10 livros fundamentais 
para Leonardo Vieira Rodrigues 





10 livros fundamentais 
para Lecy Sousa 




10 livros fundamentais 
para Luciano Nunes vulgo Podrera 





10 livros fundamentais 
para Yendis Asor Said 





10 livros fundamentais
para Rodrigo Starling 





10 livros fundamentais 
para Robson Gurgel 





...


2022

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

2 poemas de João Diniz in O Livro das Linhas / BH, 2020

 







João Diniz


in O Livro das Linhas / BH / 2020



linha do horizonte

janela



gemidos da natureza frágil

volúpias de acrobatas tontos

fumaças do produzir aflito

abismos do desejar volátil


perigos do afirmar silente

procuras do duvidar constante

misérias do dominar humano

carências do possuir mandante


                       passam por esta janela


cenários do encontrar distante

destinos de separar amantes

desejos de atravessar limites

saudades de aproximar estranhos


                        passam por esta janela


vestígios do existir passado

promessas que hão de vir mudadas

enganos a dirigir pessoas

avanços a calcular o passo


mentiras a entreter otários

problemas a resolver no tempo

distâncias do entender vencidas

bloqueios do caminhar ousado


                         passam por esta janela







linha melódica

música



na caverna pré-histórica

                 entre fogueira e caçadas

no silêncio do mosteiro

                circulando na fé do pátio

no mercado medieval

                 no odor e temor da inquisição


                    … ali havia música


na gótica catedral

                  entre velas preces e penumbra

no palácio imperial

                   em ricos bailes comissionados

sob as pontes noturnas

                       junto com frio fábulas e fome


                         … ali havia música


no campo de batalha

                  embalando ódios e saudades

entre a garra da revolução

                   conspirando o futuro ideal

na mundana festa ébria

                    junto ao gozo dos desejos breves


                     … ali havia música


nas bodas apaixonadas

                  em ricas ou pobres danças

no sonho das juventudes

                   em seus quartos ou passeatas

nas idosas memórias

                   onde o passado é maior que tudo


                           … ali havia música


no silêncio da floresta

                    numa imaginada sinfonia natural

na nervosa metrópole densa

                    nos vendidos motores publicitários

na última horizontal vivida

                 com possíveis choros sinos e anjos


                 … ali havia música


na lembrada infância boa

                 nos folguedos e cantigas travessas

no espaço ocupado

                  marcando o ritmo orgânico do tempo

na mente silente

                  entre ideias saudades e memórias


                 … ali havia música


música que toca canta embala e cala …






in O Livro das Linhas / Caravana, BH / 2020 

 








João Diniz (BH) é arquiteto e professor, poeta e performancer.

Autor de Ábaco [2011] e Aforismos experimentais [2014].






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