IVAN
JUNQUEIRA
[RJ,
1934 - 2014]
poemas
POÉTICA
A
arte é pura matemática
como
de Bach uma tocata
ou
de Cézanne a pincelada
exasperada,
mas exata.
É
mais do que isso: uma abstrata
cosmogonia
de fantasmas
que
de ti lentos se desgarram
em
busca de uma forma clara,
da
linha que lhes dê, no espaço,
a
geometria das rosáceas,
a
curva austera das arcadas
ou
o rigor de uma pilastra;
enfim,
nada que lembre as dádivas
da
natureza, mas a pátina
em
que, domada, a vida alastra
a
luz e a cor da eternidade,
tal
qual se vê nas cariátides
ou
nas harpias de um bestiário,
onde
a emoção sucumbe à adaga
do
pensamento que a trespassa.
Despencam,
secas, as grinaldas
que
o tempo pendurou na escarpa.
Mas
dura e esplende a catedral
que
se ergue muito além das árvores.
O
PODER
Eis
o poder: seus palácios
hospedam
reis e vassalos,
messalinas,
pajens glabros,
eunucos,
aias, lacaios,
e
até artistas e ratos.
Uma
só migalha basta
à
sordícia que se alastra,
e
pronto surge uma talha
onde
o cenário é lavado
para
o próximo espetáculo.
O
poder é assim: devasta,
corrompe,
avilta, enxovalha,
do
reles pároco ao papa,
e
não há um só que escape
ao
seu melífluo contágio.
Se
alguém o nega ou o afasta,
compram-no
logo, à socapa,
a
peso de ouro ou de prata.
E
se acaso não o fazem,
mais
simples ainda: matam-no.
Tem
o poder muitas faces:
a
que se crispa, indignada,
a
que te olha de soslaio,
a
que purga e chega á lágimas,
a
que se oculta, enigmática.
Mas
são apenas disfarces,
formas
várias que se esgarçam,
por
entre véus e grinaldas,
porque
assim vertem mais fácil
o
vitríolo em tua taça.
E
tu, rei de Tule, aos lábios
leva
sempre, ávido, o cálice,
não
por amor nem saudade
de
quem se foi, entre as vagas,
de
um castelo à orla do mar,
mas
só porque, embriagado,
são
de engodo as tuas asas
e
de cobiça os teus passos,
que
vão aquém das sandálias
e
se arrastam rumo ao nada.
O poder é aquele pássaro
que
te aguarda sob os galhos.
Tudo
ele dá, perdulário.
De
ti quer apenas a alma.
Por
inteiro. Ou a retalho.
PALIMPSESTO
Eu
vi um sábio numa esfera,
os olhos postos sobre os dédalos
de um hermético palimpsesto,
tatear as letras e as hipérboles
de um antiqüíssimo alfabeto.
Sob a grafia seca e austera
algo aflorava, mais secreto,
por entre grifos e quimeras,
como se um código babélico
em suas runas contivesse
tudo o que ali, durante séculos,
houvesse escrito a mão terrestre.
Sabia o sábio que o mistério
jamais emerge à flor da pele;
por isso, aos poucos, a epiderme
daquele códice amarelo
ia arrancando como pétalas
e, por debaixo, outros arquétipos
se articulavam, claras vértebras
de um esqueleto mais completo.
Sabia mais: que o que se escreve,
com a sinistra ou com a destra,
uma outra mão o faz na véspera,
e que o artista, em sua inépcia,
somente o crê quando o reescreve.
os olhos postos sobre os dédalos
de um hermético palimpsesto,
tatear as letras e as hipérboles
de um antiqüíssimo alfabeto.
Sob a grafia seca e austera
algo aflorava, mais secreto,
por entre grifos e quimeras,
como se um código babélico
em suas runas contivesse
tudo o que ali, durante séculos,
houvesse escrito a mão terrestre.
Sabia o sábio que o mistério
jamais emerge à flor da pele;
por isso, aos poucos, a epiderme
daquele códice amarelo
ia arrancando como pétalas
e, por debaixo, outros arquétipos
se articulavam, claras vértebras
de um esqueleto mais completo.
Sabia mais: que o que se escreve,
com a sinistra ou com a destra,
uma outra mão o faz na véspera,
e que o artista, em sua inépcia,
somente o crê quando o reescreve.
Depois tangeu, em tom profético:
"Nunca busqueis nessa odisséia
senão o anzol daquele nexo
que fisga o presente e o pretérito
entre os corais do palimpsesto."
E para espanto de um intérprete
que lhe bebia o mel do verbo,
pôs-se a brincar, dentro da esfera,
com duendes, górgonas e insetos.
in
A sagração dos ossos [1989-1994]
mais
em http://www.jornaldepoesia.jor.br/ivan.html
http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet210.htm
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/ivan_junqueira.html
http://veredasdalingua.blogspot.com.br/2012/05/ivan-junqueira-poemas.html
http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/03/poemas-reunidos-de-ivan-junqueira.html
http://www.proparnaiba.com/artes/2014/07/requiem-em-memoria-do-poeta-metafisico-ivan-junqueira.html
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/07/1480359-leia-poema-inedito-de-ivan-junqueira-morto-nesta-quinta-feira-no-rio.shtml
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