Olga
Valeska
mundos
e mutações
/ Anome, BH, 2010
JEU
As
cartas estão na mesa
Rei
e rainha caindo no feltro escuro
perplexos
por
se encontrarem juntos
Olhando-se
…
Surpresos
com a dança inesperada
de
peões torres e hibiscos.
O
sol filtrado do vidro
refrata
a cor fraturada
de
cristais gelados.
(Tudo
pode se romper
em
um instante assim...)
… e
um cetro pode muito pouco
quando
o corpo treme
e
a voz se cala
em
soluço.
Sabe-se
(o
eterno louco sempre sabe)
Que
as peças se movem
a
despeito do pulsar das veias
de
algum rei.
Que
o baralho sempre cai
em
castelos improváveis
dos
dedos anilados
de
uma dama qualquer.
Qual
o domínio de uma torre
sozinha
no
tabuleiro de confeitos?
Confetes
ao alcance de mãos
(sempre
vazias)
Uma
oferenda morta.
Um
olhar que vasculha
as
copas violadas de medos
cobertos
de pó e
escaras.
Espadas
de vidro
que
teimam
em
ocultar a lâmina
lacerante
de um lamento
E
o sangue que escorre
além
da vida e da morte?
Além
do olhar
do
rei e da rainha
que,
na surpresa de serem pedras
de
um jogo alheio,
morrem
e
matam
e
imploram
por
se olharem assim.
…
CORPO
ESTRANHO
Eu
e
um corpo
que
anda corre tropeça e salta, sabe espera chama e aquece,
teme
para foge e esconde, chora sofre sangra e soluça, dói
machuca
grita e esquece, encolhe encurva encobre e sela,
desvela
vela protege e aninha, vive canta teima e ensina, dança
goza
aquieta e compreende, dá acolhe recolhe e hesita, ri
transpira
abraça e mata, trava murcha aspira e respira, deseja
treme
sonha e pede, suplica rasteja escava e enterra, cheira
escuta
tateia e engana, cega mostra revela e lambe, arranha
agarra
toca e cura, amassa rasga prende e atira, descansa esfria
estala
e destrava, beija morde abandona e ama, geme range
engasga
e cala,
prova,
come,
tem
fome,
tem
febre
e
pode até morrer sem me avisar.
…
SOBRE
LOBOS E PASTORES
a
A. Caeiro
Ele
guarda os rebanhos.
Eu
os fustigo
para
que mordam
berrem,
matem, e se
desesperem
Ele
pensa com um toque de dedos.
Eu
corto, cruel,
as
fatias entre o corpo e a mente
encurvando
astúcias
e
curtindo as certezas
dos
impiedosos
Ele
canta, de corpo inteiro,
a
realidade que nada lhe diz
Eu
despejo palavras enlouquecidas
no
fundo do meu próprio ouvido.
E
grito feroz contra rochas surdas.
Ele
sabe o sentido da vida.
Ao
sabor de passos peregrinos
ele
segue o vento...
Eu
resisto.
E
sopro contra as tempestades.
Ele
repousa.
E
eu desfruto
(inútil)
a
exaustão dos renegados.
…
NOITE
ADENTRO
ao
poeta desconhecido
Houve
um poeta
que
jamais traçou
qualquer
palavra.
Mas
compreendeu
o
movimento adormecido
de
um mangue,
noite
adentro...
Ele
desvendou
(noite
infinita)
o
gosto adocicado
da
vida e da morte.
Mas
nada reteve
no
papel.
E
eu soube esse poeta
que
amou demasiado
as
palavras,
destruiu
a violência de seus corpos
e
não enfileirou
sequer
um verso.
Agora
murmuro:
-
Um dia eu vi O Poeta.
Ele
dizia de um tempo sem realidade,
de
uma noite sem sonhos -
com
a voz suave
de
quem de fato viu.
(canto
desumano)
E
as palavras não vieram noite adentro.
E
sua voz serena se perdeu
longe
do amparo dos sentidos.
Olga
Valeska
mundos
e mutações
/ Anome, BH, 2010
Lindos adoros os poemas da Olga!
ResponderExcluirEste livro é maravilhoso! Incontáveis vezes eu o li...
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