quarta-feira, 14 de outubro de 2015

4 poemas de Olga Valeska


 






Olga Valeska





mundos e mutações / Anome, BH, 2010





JEU

As cartas estão na mesa
Rei e rainha caindo no feltro escuro
perplexos
por se encontrarem juntos
Olhando-se …

Surpresos com a dança inesperada
de peões torres e hibiscos.

O sol filtrado do vidro
refrata a cor fraturada
de cristais gelados.
(Tudo pode se romper
em um instante assim...)

e um cetro pode muito pouco
quando o corpo treme
e a voz se cala
em soluço.

Sabe-se
(o eterno louco sempre sabe)
Que as peças se movem
a despeito do pulsar das veias
de algum rei.

Que o baralho sempre cai
em castelos improváveis
dos dedos anilados
de uma dama qualquer.

Qual o domínio de uma torre
sozinha
no tabuleiro de confeitos?

Confetes ao alcance de mãos
(sempre vazias)
Uma oferenda morta.
Um olhar que vasculha
as copas violadas de medos
cobertos de pó e
escaras.

Espadas de vidro
que teimam
em ocultar a lâmina
lacerante de um lamento

E o sangue que escorre
além da vida e da morte?

Além do olhar
do rei e da rainha
que, na surpresa de serem pedras
de um jogo alheio,
morrem
e matam
e imploram
por se olharem assim.







CORPO ESTRANHO

Eu
e um corpo
que anda corre tropeça e salta, sabe espera chama e aquece,
teme para foge e esconde, chora sofre sangra e soluça, dói
machuca grita e esquece, encolhe encurva encobre e sela,
desvela vela protege e aninha, vive canta teima e ensina, dança
goza aquieta e compreende, dá acolhe recolhe e hesita, ri
transpira abraça e mata, trava murcha aspira e respira, deseja
treme sonha e pede, suplica rasteja escava e enterra, cheira
escuta tateia e engana, cega mostra revela e lambe, arranha
agarra toca e cura, amassa rasga prende e atira, descansa esfria
estala e destrava, beija morde abandona e ama, geme range
engasga e cala,
prova,
come,
tem fome,
tem febre
e pode até morrer sem me avisar.









SOBRE LOBOS E PASTORES

                                             a A. Caeiro

Ele guarda os rebanhos.

Eu os fustigo
para que mordam
berrem, matem, e se
desesperem

Ele pensa com um toque de dedos.

Eu corto, cruel,
as fatias entre o corpo e a mente
encurvando astúcias
e curtindo as certezas
dos impiedosos

Ele canta, de corpo inteiro,
a realidade que nada lhe diz

Eu despejo palavras enlouquecidas
no fundo do meu próprio ouvido.
E grito feroz contra rochas surdas.

Ele sabe o sentido da vida.

Ao sabor de passos peregrinos
ele segue o vento...
Eu resisto.
E sopro contra as tempestades.

Ele repousa.
E eu desfruto
(inútil)
a exaustão dos renegados.








NOITE ADENTRO

                              ao poeta desconhecido

Houve um poeta
que jamais traçou
qualquer palavra.

Mas compreendeu
o movimento adormecido
de um mangue,
noite adentro...

Ele desvendou
(noite infinita)
o gosto adocicado
da vida e da morte.
Mas nada reteve
no papel.

E eu soube esse poeta
que amou demasiado
as palavras,
destruiu a violência de seus corpos
e não enfileirou
sequer um verso.

Agora murmuro:
- Um dia eu vi O Poeta.
Ele dizia de um tempo sem realidade,
de uma noite sem sonhos -
com a voz suave
de quem de fato viu.
(canto desumano)

E as palavras não vieram noite adentro.
E sua voz serena se perdeu
longe do amparo dos sentidos.




Olga Valeska






                                    mundos e mutações / Anome, BH, 2010










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