Sobre Estilhaços
no Lago de Púrpura
de
Joaquim Palmeira / Wilmar Silva [2006; 2007]
(artigo
3)
Imagens
surrealistas em mil Estilhaços
Em outros dois ensaios [artigos]
sobre Estilhaços no Lago
de Púrpura [ELdeP]
abordamos o bucolismo, a aridez, a ambiguidade amorosa-agressiva, em
suma, a AgroLírica,
estilo pessoal do Autor, com flora & fauna do sertão, na secura
do cerrado, no mundo grande onde poucos sobrevivem. Daí ser uma
poética de sobrevivente, então vívida & afiada.
Agora abordaremos outras facetas
desta obra-prima, a saber, as imagens surrealistas, com suas
hipérboles & delírios, numa loucura-êxtase-xamânico em
bestiário sádico.
Há uma tessitura barroca, ou
neo-barroca, de elementos vários & díspares, Que se negam e se
complementam, em passagens líricas que partem de um drama e findam
em tom de espinho cortante. Sentimentos confessados são bruscamente
interrompidos por vociferações, por urros bestiais de um sujeito
lírico incontido, que ama & odeia sem limites.
Tratamos de um sujeito poético
estilhaçado, dissonante, contraditório, que confessa e ofende, em
confronto com um Outro que é benção & maldição, não
encontrável por mais que procurado. Uma entidade poética entre
fragmentos em busca de uma Identidade, ora lúbrica, ora xamânica.
Esta relação do Humano com a Natureza já foi tematizada por
bucólicos arcadistas ou idealistas românticos, mas nenhum chegou
perto do teor visceral
de poéticas tais como as de Lautréamont, no século 19, e Octavio
Paz, Herberto Helder e Manoel de Barros, no século 20. Aliado ao
tema Natureza & Humano há um ‘desregramento dos sentidos’
(que é almejado em Arthur Rimbaud, em verdadeiras 'estações no
inferno') e uma cosmovisão xamânica (presente na poesia tardia de
Roberto Piva).
Imagens absurdas, tons exagerados,
megalomania agrolírica, tudo a relembrar certa vanguarda que nos
acompanha quase há um século, com os delírios surrealistas feitos
Arte. A percepção de uma racionalidade insuficiente, de um Humano
cindido entre razão e intuição, levaram os vanguardistas
surrealistas a buscarem uma outra Realidade, um além do Realismo, um
proclamado Surrealismo, a congregar Lógica & Quimeras. Assim as
pinturas de Dalí, Miró e Magritte, assim as poéticas de Aragon,
Prévert e Péret.
No mais, a escrita de ELdeP, segundo
assegura o Autor, foi fruto de um automatismo, um despejar de
palavras datilografadas e laudas após laudas, em um momento de
possessão poética que nos legou um ‘poema
de um só fôlego’,
assim uma obra abertamente visceral, verdadeira Escrita com o corpo.
A vociferar versos & abscessos um ente poético que se entrega a
uma Escrita que é um martírio de agruras líricas.
Em vários trechos encontramos
certas características da escrita surrealista, pela estilística e
pela recorrência, tais como hipérboles, oxímoros, figuras
bestiais, ou fusões, algo xamânicas, de animal-humano, além da
relação sádica-masoquista com o Outro, dominado e dominador.
Em pronunciadas & afiadas
Hipérboles o sujeito poético evidencia o estado de afetada
megalomania do qual é vítima, ao vitimizar seu amado-odiado Outro,
em diálogos & embates, mas sempre dono da fala, autor de um
discurso exageradamente passional. A Natureza se submete ao seu teor
de amorosa agressividade, quando fauna & flora se curvam ao
extravasar do lirismo áspero.
“mil diamantes nos olhos” [1]
“eu faço galáxias na fonte do
desejo que me consome” [7]
“arremedos de uma noite adensa com
mil assombros” [11]
“e mais mil e um marimbondos presos
em meu umbigo” [12]
“sempre sozinho na revoada onde sou
tempestade
limo as unhas para cozer um inverno e
hibernar” [25]
Notamos também as recorrências de
figuras tais como os oximoros,
ou paradoxos, a saber, a união de contrários em antíteses,
absurdos, bem ao gosto barroco, que reflete nas colagens surrealistas
de possíveis & impossíveis (mas a lembrar que na linguagem tudo
é permitido...), que faz de EldeP uma obra mais que passional, um
longo poema pulsional, no mundo dos sentidos, onde as percepções se
confundem,
“piscoso envenenado de tanto
mergulhar na terra” [2]
“um sol aceso em noite plena / eu”
[20]
“deixar que o escuro seja meu sol
imaginário” [25]
“esta represa onde peixes nascem da
terra” [28]
“cavalos marinhos no céu” [29]
Encontramos cenas de um Bestiário
de seres fantásticos, híbridos, amalgamados, com aparências
terríficas & delirantes, enquanto símbolos do desassossego do
sujeito poético, como bem percebemos na épica trágica de um
Maldoror, alter-ego
de Lautréamont, entre o simbolismo e um proto-surrealismo, como bem
aceitam os próprios surrealistas,
“cavalo com escamas nas crinas”
[1]
“esta ema com onze penas de pavão”
[19]
“passarinhos de sabre com asas
aziagas, eu sou” [27]
Então entre seres selvagens, na
terra e no pó, nas matas e nas águas, o Humano se confunde com
animais, lembra que compartilha instintos animais, deseja entrar em
contato com as forças do mundo natural, exercitar um ritual íntimo
que muito o aproxima do Xamanismo, enquanto cosmovisão,
“coiote eu / eu hiena” [2]
“um lobo eu no escuro / um lobo eu
faminto” [3]
“todo nu tenho um sabre na lontra
que sou eu” [4]
“eu anfíbio, escavo um rastro na
memória do chão” [6]
“azulado sou este pássaro azulão
que perdi o bico/ e cala” [10]
“sou esta tarântula” ou “meu
corpo de pelicano” [11]
“cavalos selvagens, eu: um cavalo
indomável / eu sim” [16]
“sou esta novilha com êxtase de
égua no curral” [17]
“sou este corcel / eu um corço
entre avestruz e
seriemas, sou esta ema com onze penas
de pavão” [19]
“sou o fero ferido” [21] ou “ave
ferida no ermo” [22] e também “eu sou
esta ave ferida de verde”
[28]
“minha língua de lebre / viperino
sou [...]” [26]
Figura de xamã, ritualista pagão,
nativo indígena, um-com-a-Natura, com a qual o sujeito poético se
identifica, e mesmo
confessa em “índio estranho, face de espantalho xamã, calo” [8]
e também “sou esta imitação / de um deus, um xamã” [30], pois
em seu mergulho, em seus desnudamentos com Natureza e instintos, o
sujeito poético adentra um reino de irracionalismo, de imersão
mística, quando confessa seus êxtases / delírios, sinais de sua
identidade ambígua, anfíbia de animal-humano.
“nascem entre meus dedos de sonhos”
[1]
“onde um doidivano atravessa meus
ombros / e
atravessado até a espinha onde
piracemas nadam” [7]
“agora que esta noite alcança meu
êxtase” [18]
Numa relação dúbia com o Outro,
ora em dominação, ora em submissão, ou seja, alternância entre
sadismo e masoquismo, o sujeito poético tanto ama quanto detesta o
Objeto da paixão, desvairado por exigências & rejeições. As
imagens surreais servem para explicitar o desvairismo
(ainda mais que Mário de Andrade) dos afetos, como num duelo de
paixões, onde o exagero marca o território, como a dizer 'vejamos
quem é mais apaixonado aqui'. Então a oscilação entre
dominação-submissão se evidencia a cada golpe & contragolpe, a
cada avanço sobre o Outro que ataca de volta.
“eu quebrado por você sou
estilhaços” [1]
“eu que venho com um ramalhete de
espinhos na carne /
derramo lâminas e facas nos olhos
dos pés,” [2]
“sou esta vespa que transpassa tuas
coxas” [12]
“você é este fogo que me
entranha” [12]
De tal modo áspero que a relação
amorosa se clarifica aos nossos olhos como um jogo de forças, uma
'guerra de tronos' para conquistar o afeto do Outro, objeto do ávido
desejo, essencial & fundamental, e que é insaciável.
“sou eu quem levo para o mundo
profundo você
mas você que é letal como uma ponta
de punhal” [22]
“você que vem com uma manada de
gumes, lâminas” [24]
“vem você agora com este canto de
ema arisca
e faz cantigas que me alucinam nesta
noite /” [27]
“sou este verde que hei de queimar
seu corpo / eu” [30]
Então suas agruras são assim
metaforizadas em exageros de retórica surrealista, com tons de
sadismo / masoquismo, em toda uma flora & fauna agreste, de
sertão demasiadamente perigoso (como já sabia Guimarães Rosa) com
as vidas penosamente secas (como denunciava Graciliano Ramos) de tal
modo que a poesia ousa retratar figurativamente um embate selvático
de amor & ódio. Finalmente, que o/a Leitor/a suporte digerir
tamanho desassossego, ou estação infernal, de (anti)lirismo!
Maio/15
Leonardo
de Magalhaens
Fale/UFMG
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