Cotidiano
“Pode
alguém desvencilhar-se
do
cotidiano?” Eustáquio
Gorgone
Ele
se levantou cedo. Ainda mais cedo do que de costume. Era preciso
pegar o metrô das 7h40 na Estação central. O fax não
mentia: marcava o encontro com o fornecedor às 8hs no estacionamento
do shopping. Se demorasse o que acontecia? O sujeito seguiria
para cuidar de outros lucros.
Só
precisava assinar uns papéis. O resto até poderia resolver via
e-mails. Sobrava para a secretária, claro. Mas nada de deixar
trabalho acumular. Não tinha marcado um descanso, quase férias, com
sua querida? Bem que Thairine dizia que ele precisava descansar.
Jogar o celular na privada, vez ou outra.
Para
degustar o merecido descanso só bastaria cumprir os prazos,
encontrar os fornecedores nos horários, não implodir a paciência
de ninguém. Só isso. Daí ele empunhar o celular de cinco em cinco
minutos para conferir as horas.
Mas
de nada adiantou, pois o metrô passou às 7h40 e foi sem ele. Tudo
por causa do engarrafamento que reteve o ônibus no viaduto por mais
de vinte minutos. Um absurdo, mas estamos numa cidade grande, não?
Todo mundo que pode comprar um carro, vai e compra um carro.
Assim
tudo contabilizado, ele perdeu o metrô por 2 minutos e meio,
aproximadamente. Puxou o celular e ligou para o fornecedor. O homem
impaciente não poderia esperar. Mas estaria de volta às 9 hs,
certamente. Assim, o próximo metrô recebe mais um passageiro.
Aliás, que metrô lotado! Aliás, tudo anda meio lotado nesta cidade
lotada...
Diante
dele, ao lado da porta, vai uma mocinha. Vê-se que ela se concentra
num livro. Universitária? Secretária? Atendente de telemarketing?
O que ela faz na vida além de ler livros de …? livros de quê
mesmo? Ele se aproxima, olha meio torto, ela sequer repara no
vizinho. É uma livro da saga Crepúsculo, com esta capa, onde
duas mãos pálidas aninham uma maçã rubra-sanguínea, assim,
bloody-red, soa melhor.
A
mocinha que não deve ter mais de vinte anos, ele calcula. Ela de
cabelos encaracolados, meio aloirados, com orelhas pequenas,
desprovidas de brincos assim como ela está sem maquilagem. Tudo ao
natural. Ela usa uma sandália e não um tênis ou botinha. Ela está
em outro mundo, entre mordidas de vampiros juvenis e peripécias de
lobisomens adolescentes. Pelo menos o filme é assim … Nada que
acontece ao redor interessa àquela mocinha fantasiosa e que desperta
fantasias.
O
celular toca e o arranca do devaneio. O que será? Sim, é o Renan.
Diga. Claro, no metrô. Mas atrasado. Eu, atrasado. Perdi o outro.
Fazer o quê? Quando chegar lá eu te ligo, ok? Bye. E a
mocinha virava páginas e páginas e o metrô atravessava o Horto
florestal e passava túnel e sumia debaixo da terra. Em breve a
estação do shopping...
Lá
de cima, da perspectiva da estação, donde se vê a avenida lá
embaixo, ele testemunha um acidente. Até então ele não tivera
sequer tempo de ver acidentes. Sempre acontecia antes ou depois,
então via as consequências, as manchas de óleo ou de sangue, ou
sabia pelos jornais que exatamente naquela esquina um ônibus
afrontara um poste. Mas agora ele via em tempo real, ao vivo e sem
cortes.
Um
carro vem, encontra um outros próximo demais, um choque repentino, e
pronto. Ou então um transeunte incauto fora da faixa de pedestre que
sofre um atropelamento fatal ou não. Mas agora, eram as dois coisas.
Um carro, para não bater num mais próximo, desvia-se e acaba por
fechar um cruzamento. Alguém tenta passar e é atropelado pela moto
que vem logo atrás. Um acúmulo de incidentes que causam um
acidente.
Eis
a gratuidade da existência, ele pensa. Eis a morte a qualquer
momento. Somos apenas os próximos na fila. E a fila anda, uns chegam
e outros vão embora. Simplesmente. Um mero atraso de um carro, ou o
desvio de outro, o avanço ou hesitar do fluxo de trânsito e eis
alguém fatalmente arremessado sobre o meio-fio.
Ele
lembra-se de Thairine, da família de Thairine, do aconchego do lar.
Ele – ainda bem! - se dava muito bem com sogra e sogro, coisa rara,
e preferia ficar com a família de Thairine, e tal, e se a sua
Thairine sumisse? Assim, gratuitamente? Ela poderia atravessar a rua
e pronto! O fim! Não, não! Que coisas para se pensar assim logo de
manhãzinha!
E
assim os seus filhos jamais existiriam, e seus netos ficariam no
limbo, e pronto. Pelo menos os seus filhos e netos com Thairine, não?
E quem ele deixaria neste mundo? Quem ele devia amar com devoção...
Quem haveria de nascer dele e da querida... E assim tudo gratuito:
vem uma moto do nada e pronto! Adieu! Rest in
peace! Não, nada disso.
E
o acidente ali nem era fatal. A mulher – pois era uma mulher assim
de uns trinta anos – estava caída junto ao meio-fio e sendo
amparada por um policial que apareceu logo. Uma galera de outros
transeuntes curiosas logo se ajuntava. Impressionante mesmo! E ele
seguiu adiante, não ficaria a contemplar as desgraças alheias, e
seguiu a própria sombra até a passarela.
Pois
lá o esperava outra visão. Bem debaixo da passarela dois ETs se
encolhiam, dois seres encurvados, em andrajos. Seriam mesmo seres
humanos? Parecia um casal, sim, de idosos, ou ainda, envelhecidos
pela miséria. Não deviam ter mais que quarenta décadas nas costas,
mas pareciam anciãos. O homem um tanto grisalho e amassado, e a
mulher um tanto reduzida, manchada, envergonhada dos trapos que
exibia.
O
casal de mendigos esquentava as mãos diante de uma fogueira modesta
ali debaixo da passarela. Ao lado uma lata de óleo de tamanho grande
sobre tijolos enegrecidos. Seria uma sopa matinal ? O que esperavam
do longo dia pela frente? Não teriam reuniões nem agenda de
negócios. Não teriam vendas para fechar nem filhos para buscarem no
colégio. Não passariam a tarde na galeria de arte nem a noite num
concerto de rock. O que faziam com suas míseras vidas
encolhidas sob viadutos e passarelas?
Será
que eles, os mendigos, pensavam em uma vida paralela? Uma vida com
filhos, colégios, jardim florido, viagem para Miami? Que vida
paralela mais inusitada! Era um vida paralela inusitada mesmo para
ele, Renan Welerson, empregado de uma loja de peças elétricas,
cursando Engenharia, com toda uma carreira pela frente. Em Miami!
Ora, vejam!
Mas
não era uma viso? Se você não trabalhar estudar como um desvairado
poderá acabar assim: mendigo debaixo de uma passarela ! Então que
ele valorizasse sua família, sua futura esposa, e sogra e sogro, e
patrões e fornecedores, e cuidasse do jardim e da roupa de cama e
dos mantimentos na cozinha, em ordem e precaução, a degustar com
prazer e gratidão o arroz-com-feijão que ele comia tão
maquinalmente.
Ele
pensava isso, andando ao redor. Entre passarela, trânsito ruidoso,
transeuntes curiosos, buzinas apocalípticas, vendedores de balas do
tipo eu-poderia-estar-roubando-mas-estou-aqui-trabalhando. Doceiras
com lenços estampados e lavadores de parabrisas, entregadores de
peças e de botijões de gás, todos se esgueirando no amanhecer da
avenida, cada um cuidando de seus afazeres, solenemente se ignorando.
Uns
vinte passos adiante, uma senhora fazia cooper, correndo suada
e sem fôlego, no centro da avenida, a respirar o saudável monóxido
de carbono dos escapamentos. Se amparava numa árvore, parecia fazer
flexões de coxa e joelho, ao tentar elevar a perna, mas inutilmente.
Pobre senhora! Queria ela ganhar mais uns dez anos de vida? Por isso
insistia em correr pela avenida meio às névoas de fuligens?
Ao
menos Thairine corria no Parque Municipal. Pelo menos antes de cair
aquela árvore enorme a esmagar uma outra pobre senhora - que corria
para o bem da saúde! Então, fecharam o parque e cortaram centenas
de árvores podres ou quase podres, velhas, centenárias, caducas que
ameaçavam cair sobre outros incautos. E depois reabriram o parque –
mas Thairine ficara meio que transtornada, traumatizada, via as
árvores como inimigas, como toras de madeira prontas a se
precipitarem sobre sua indefesa cabecinha de mocinha correndo pelas
alamedas!
Ali
na avenida do shopping, a senhora tentava um exercício. Ali,
sozinha na manhã. Dá saltos, pula de uma perna só, estica a perna
pros lados, afasta as folhas secas, se ampara num banco de cimento,
toma fôlego, reinicia seu martírio em nome da boa forma. Afasta
outras folhas secas com os pés protegidos por um tênis de marca.
Falso, certamente. Ou da netinha? Ela afasta os gravetos ao redor,
ela prepara o espaço. Só não pode afastar os carros que passam
céleres distantes poucos metros da sua ginástica matinal.
Nisso
Renan Welerson olha o celular. São apenas 8h20 da manhã. Ele
precisa esperar até 9hs. O fornecedor assim assegurou. Imagine, por
causa de alguns minutos, você pode perder uma hora de sua manhã,
assim, em perambulações! Ele que não era de reparar em mocinhas em
metrô, ou acidentes numa avenida, ou mendigos sob passarelas, ou
senhoras idosas fazendo ginástica! Ele seguia meio às novidades do
cotidiano! Esperou quase duas décadas e meia por isso! Uma manhã
repleta de PESSOAS!
Sim,
ele vivia numa cidade, uma capital, uma metrópole, cheia de pessoas!
E não coisas, ou números, ou roupas ambulantes, ou penteados que
passam! Não, nada disso. PESSOAS, seres de carne e osso iguais a
ele! Ele um jovem de 24 translações, ou primaveras, como queiram!
Ele vai e descobre PESSOAS – oh Dio mio!
Ach, mein Gott! - percebe-se
finalmente no meio de seres as quais denominamos PESSOAS,
seres humanos, Homo Sapiens!
Então
ele viu! A mocinha no ponto de ônibus! Ela, como ele diria?, se
destacava de tudo, de todos, da avenida, do trânsito, do mundo. A
roupa? Os óculos escuros? A forma de virar a cabeça? A mão
segurando um livro? Ou seria uma agenda? Os lábios meio
descoloridos... Seria isso? Não era pálida, era antes como uma
miragem.
Lembrou
então de seu amigo Jesley. Sim, claro. O Jesley tinha descrito um
lance assim! Quando se apaixonou por uma mocinha da orquestra. Era um
concerto da filarmônica no Parque e o Jesley reclinado no gramado
teve quase um momento de conversão religiosa. Ele cismou com a loira
do violoncelo! Cismou, então deixa!
A
moça, inclinada, concentrada tocava o violoncelo, vibrava as cordas
do imenso instrumento, fazia sua função na orquestra, e o Jesley
viajava , delirava, sabe-se lá. Uma loira com jeito de ninfa, ou
fada, ou sabe-se lá que ente fabuloso! Era uma polonesa? Uma tcheca?
Ou croata? Sabe-se lá! O Jesley empolgou: era a idealização da
mulher amada.
E
não é que ele, Renan, atrasado para um compromisso por causa de um
atraso de 150 segundos, não entendia finalmente o seu amigo!
Mas não era uma devoção por uma artista, uma violoncelista, ou uma
bailarina num palco alucinado! Nada disso. Sua musa era uma mocinha
a esperar o ônibus sob a sombra da passarela do shopping!
Mas
o delírio, a empolgação, digamos, não durou muito e pela
conjunção de dois fatores além do controle de Renan, o boquiaberto
observador do cotidiano, tão ignorado cotidiano! De repente, surgiu
o ônibus da mocinha, e o encanto se quebrou: ela se levantou tão
bruscamente! Parecia acordar de um devaneio! E se atirou rumo ao
ônibus que parava alguns metros adiante.
E
no mesmo instante um carro parava ao lado de Renan. Um carro que ele
não reconhecia, por nada haver que reconhecer. Era um carro banal.
Ele sequer o vira antes! Uma voz, porém, ele identificou. Era o
Luam, da Baeta Máquinas, o fornecedor.
-Ei
Renan! Aqui! - uma buzina estrondou – O que foi? Entra aí! O
Adilson entregou o reator... A gente já resolve esse lance... O que
foi? Parece que viu fantasmas...!
Sim,
era mesmo o fornecedor. Que fala pelos cotovelos. Que aparecera
antes. Ótimo. Assim Rena deixou de ver fantasmas e regressou ao
reino da concreta banalidade.
Mai/12
Leonardo
de Magalhaens