sobre Zuns Zum Zoom [BH: Anome Livros, 2012]
do
poeta Luiz Edmundo Alves
Poética
entre o fingimento e a confissão
Fingi-dores
Na
poética, assim como em qualquer fala ou texto, temos alguém que
expressa algo sobre si mesmo ou sobre outro ser (real ou imaginário),
temos quem enuncia e quem ao qual o enunciado faz referência, assim
tecnicamente temos o sujeito da enunciação e o sujeito do
enunciado. Por exemplo no verso “Eu caminho sobre as águas”,
temos o enunciado cujo sujeito é o que diz 'eu' , mas certamente não
é o poeta, a pessoa, o sujeito da enunciação, que não é
exatamente capacitado a perambular sobre superfícies aquosas.
O
eu do poema é o autor ou não? Apenas quando o sujeito do
enunciado se confunde com o sujeito da enunciação – e,
para maior efeito, o leitor assim espera: que as dores do texto sejam
aquelas do autor. Quando o poeta diz “Sou o caminho até o céu e o
inferno”, o leitor espera que assim seja, que seja o 'eu poético'
o poeta, o 'eu autoral', ser sublime a transcender bem e mal, paraíso
e pecado, acima e abaixo do singelo leitor, sempre em busca de guia e
iluminação, a espera de visões e delírios – é para isso que
existe poeta: ver o que não vemos, fazer os desatinos que não
ousamos, vivenciar o que desejamos e tememos.
Se
o leitor não 'força' a junção sujeito da enunciação (autor) com
o sujeito do enunciado (eu lírico) sente que o poema perde efeito:
pois quem mais será este EU no poema se não o/a poeta? Ou o/a poeta
anda a simular personagens? A incorporar entidades? O poeta é
médium além de ator? Este fingidor de dores num mosaico de
palavras...
Na
folha o/a poeta, com seu disfarce de eu lírico, vem fingir as dores
que ele/ela sofre. Por outro lado, o leitor é um fingidor também.
Ele finge que a dor lida – a dor do poeta, do eu lírico – é sua
dor, e chora e geme e sofre com o poema, aquelas palavras numa folha.
É meio dramático o par – autor e leitor – pois ambos atuam numa
peça de eu sofro, vou fingir sofrer, você sofre, vai fingir sofrer
– seja lá o que for 'sofrer'...
O
autor quer provocar um efeito, usa técnica e confissão, mas não
controla o efeito sobre o leitor – que pode ir em consonância mas
também dissonância. Um poema criado para irritar alguém, pode
agradar a outro. Um poema de amor que encanta uma ilustre musa, pode
causar efeito zero sobre um ativista militante engajado nada lírico.
O
fingimento deve ser aceitável. Mais do que isto, deve ter efeito.
Fazer o leitor esquecer o fingimento. O bom poema causa efeito, não
deixa o leitor indiferente. O bom poema consegue nos comover, ou
irritar, provocar uma catarse, levar a uma outra cosmovisão.
Um bom poema pode nos converter – ao Redentor ou ao Niilismo.
Poemas que nos fazem amar e odiar, mas nunca passam despercebidos,
nunca ignorados. O poema, com seu efeito, será sempre (re)lembrado.
É
agora clássico o exemplo drummondiano “no meio do caminho”,
poema que tem admiradores e detratores, mas que, por seu efeito, não
deixa de ser relido, seja para elogios, seja para ironias. O pior
para um poema é este passar despercebido, como se não existisse,
como se jamais escrito. Uma folha branca.
Provocando
algum zum-zum-zum
Para
encher as folhas em branco de Zuns Zumm Zoom o poeta Luiz
Edmundo Alves explora certas facetas de sua visão poética ou de sua
vida pessoal em eixos que ora destacamos. A presença dos metapoemas
é esperada, o fingimento às vezes é declarado, estamos diante de
jogos de palavras. Então, eis o poeta a explicar que escreve poemas
e quais as suas motivações. A temática da vida pessoal fornece boa
matéria-prima para poemas confessionais – até longos poemas
confessionais – pois o poeta ousa um resgate dos meandros da
memória. Em ambos os eixos o poeta se entrega ao exercício de
auto-observação.
É
explícito o papel da memória e suas atuações para a paz ou para
a aflição, em dado momento de olhar para trás, para o que foi
vivido. Encontramos o poeta enquanto vítima de fluxos de memória
involuntária, tal qual um Proust em busca do tempo perdido, ao
degustar um bolo, ou emocionar-se com um solo de violino, ou
vislumbrar uma cor,
tenho
uma
memória
nos olhos,
que
às vezes ativa-se
com
uma cor, agora
estou
ativado pelo amarelo.
p.
20
tenho
uma
memória
evocada
pelas perdas
que
me embaralha as
emoções
e depois me
distribui
para o
jogo
cotidiano
p.
14
tenho
umas lembranças
coladas
em meus ouvidos que
às
vezes floram com
o
canto do bem-te-vi.
Simultaneamente
as
lembranças
afloradas:
p.
33
É
assim o poeta vitimizado pela memória involuntário, que o lança,
sem mais nem menos, do agora para um passado não-cicatrizado, numa
condição de embaraço entre o ser-agora e o
revivenciar-pela-recordação, num estado de indefinição, no qual o
eu lírico flutua entre o falar e o silenciar,
tenho
uns ferimentos que mantenho
ocultos.
Expor ferimentos fere mais.
p.
16
dentre
tantas palavras
o
q dessas palavras
dentre
tantos silêncios
n
coisas pra dizer
p.
46
Não
é fácil viver entre o falar e o silenciar, ou melhor, entre as
memórias e o esquecimento, entre o que sabemos e o que nem
gostaríamos de saber, afinal, algo vem sempre ferir, um ato, uma
palavra dita inconvenientemente, um não quando deveríamos
ter dito sim,
não
insisto: recordar e escrever
é
mesmo da ordem dos sentidos,
calar
e esquecer também.
p.
15
penso
no futuro,
penso
no passado,
naquilo
que perdura,
no
que não sei, e no
que
esqueci para me
proteger.
p.
22
Em
'esqueça-me' (p. 45) o eu-lírico, ou o poeta, é ambíguo,
quer ser esquecido, quer ser lembrado, deseja evadir-se de outro eu,
mas ser resguardado nas profundas lembranças do amor de outrora,
esqueça-me
numa rosa de prata barata,
ou
quando desejar que a semana voe,
que
o pensamento voe
[…]
hoje
que não mais me quer.
esqueça-me,
e
guarde-me em seu esquecimento.
Para
manter tal senso de localização – onde ele vive, onde ele se
relembra? - é preciso recorrer a observação de si mesmo, a
recolher os fragmentos de agora e de outrora, e imaginar-se um
indivíduo (fábula que narramos para nós mesmos diariamente). Ao
observar-se, não falta ao eu poético uma certa auto-ironia,
diante de uma figura meio risível, meio amarga. Assim é em 'cadê
meus óculos' (p. 53), onde o acessório se torna até essencial,
cadê
meus óculos?
perdi
meus óculos e,
com
eles, a nitidez das coisas.
…
sem
eles eu converso mal, distingo mal,
respiro
mal, eu mal entendo o que está ali,
o
que está lá. tá, tudo está lá e ali, sim, tudo
embaçado,
desfocado, impreciso. Eu preciso
de
meus óculos, preciso, para precisar melhor,
…
A
auto-ironia, o brincar consigo mesmo e suas limitações, está lado
a lado com o divertir-se com as palavras, que causa um efeito de
desabafo, pois é no ludismo em jogos com as palavras que o humor
lúdico do poeta se revela, segundo ele – eu poético - confessa no
poema da p. 29, vejamos,
meu
divertimento é
da
ordem do poético e
da
imaginação,
tem
o brincar das
palavras
e das
ênclises
inesperadas bem
na
palma da página.
quando
meus olhos
avançam
sobre as
palavras
eu brinco,
me
dobro em brincar.
e
se evidencia em outros poemas, que deslocam palavras não por
semântica, mas por sonoridade, por figuração na página, rumo –
muro por anagrama, ou muro – escuro por rima, ou turvo
– turvam-me por mudança de classe gramatical (adjetivo para
verbo), dentre outros processos, ou, digamos, jogos,
sem
rumo
eu
e o muro que
nos
ampara
arrisco
pulo
esse muro
e
caio no escuro
paixão
escura
mundo
turvo
turvam-me.
p.41
Ou
em listas de palavras que se evocam, ecoando umas e outras, segundo
lembram alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade, Haroldo de
Campos, Affonso Ávila, ou Affonso Romano de Sant'Anna, onde palavra
atrai palavra não pelo sentido (semântica) mas pela semelhança
ortografia, pelas arbitrariedades fonéticas e morfológicas do
idioma,
as
assonâncias
os
assuntos
as
arrivistas
os
arquétipos
as
uvas
os
ovos
os
milhões
as
migalhas
os
cântaros
as
cantoras
…
p.
48
Além
do Eu – seja o poeta ou não - a presença do outro surge como que
espelhada – i.e., em função do Eu – para objeto de percepção,
para o amor e para o insulto. Pois temos um discurso literário
autocentrado, voltado para si mesmo. O outro é a musa, é a mulher
amada – até nomeada – mas sempre em função do Eu, centro do
mundo. Então pode-se pensar mais: e há algum contexto social?
alguma política? algum protesto? Um resto de ideologia? Ou acabou-se
mesmo a fala engajada?
Os
poemas em prosa ( pp. 43, 47), claramente voltados para um outro,
dirigidos ao outro (objeto de desejo) mostram o umbigo do eu lírico
bem aflorado, pois é dele que tudo parte e para tudo se converge. O
outro é projeção, é imagem onírica. Já falamos sobre isso em
outros ensaios. O amor que o eu expressa, promete, delira, não
convence, pois sequer imaginamos a Amada além do delírio do Eu. Não
se trata aqui de romance de cavalaria, nem bardos românticos. Então
onde o eu lírico se sobressai (além dos metapoemas) ?
No
jogo, o locus da confissão
Em
Arritmia, entre a escrita e a perda, o poeta Luiz Edmundo
Alves se mostra além das convenções do sujeito lírico. São sete
páginas de denso poema em prosa, com transplante do sentir para o
escrever, em ritmo emotivo e jogos de palavras, dor e técnica
entrelaçada. É o sofrer do poeta se transmutando em lirismo. A dor
do poeta é uma dor humana, pessoal, mas também pode ser
matéria-prima para uma estética, onde se amalgama lirismo e
tecnicismo. Não só de sentimento, não só de movimentos lúdicos
se constrói o efeito poético. Mas é preciso a alquimia. Caso
contrário, o poema é um gigante com pés de barro e ferro fadado a
queda no ostracismo.
Pois
“um poeta se faz e se desfaz por um desejo de linguagem no
limite da língua. No limite da língua o poeta encontra o poema e se
faz. O poema é a identidade essencial do poeta.” assim revela
o autor, em página anterior ao fluxo lírico de Arritmia. É
uma forma de nos lembrar da condição do poeta: entre a potência e
entre a desistência. O poeta pode fazer o poema – mas será o
poema que o poeta desejava fazer?
eu
escrevi livre e infeliz. colhi e selecionei palavras, escrevi fácil
e
difícil,
certo e errado, feliz escrevi. escrevi quando tive outra
alternativa,
quando não tive qualquer alternativa no amor na tragédia
na
multidão no rumo no gesto no desamparo.
escrevi
e nem senti que tanto doeu.
Ao
escrever é que o eu lírico se encontra – para a redenção ou
para a perdição – enquanto tentativa de convergências – do
ontem e do hoje, do eu e do objeto de desejo. Mas acima de tudo,
aqui, o encontro com o outro, o Pai, aqui o Pai Ausente, que
simboliza a perda, tanto fisicamente quanto freudianamente dizendo,
quando o filho deve assumir a vida (se já não o fez antes...),
escrevi
quando perdi meu pai, quando chorei meu pai, quando
procurei
e não encontrei meu pai, quando meu pai era tudo o que eu
precisava
pra chamar de pai pai pai pai pai pai pai . ei pai cadê você
pra
me responder pra me explicar para me amparar para me parar. pai
…
Ainda
em Arritmia temos o jogos de palavras, encontramos um escrevi
no muro no namoro na moral namorada na morada, mas não é lúdico
que é o prato principal do menu. A degustação aqui exige
mais, tem exigências de outros paladares. Quiçá, o autor
demonstrasse mais conteúdos de fina culinária na primeira parte,
mais voltada para a própria poética, em metapoemas vislumbrando as
reentrâncias do umbigo. Esperamos que a próxima obra do poeta Luiz
Edmundo Alves seja um amplo e irrestrito Arritmia, não apenas
uma segundo parte, ou apêndice, não apenas para mais algum
zum-zum-zum, mas expressão de ser autoral, enquanto ser leitor,
enquanto confissão de voz humana, conscientemente poeta e fingidor,
escrevendo indignado revoltado insultado, e com raiva e
arrepiado, com plena consciência do efeito.
jan
/ 13
Leonardo
de Magalhaens
…
mais
info em
vídeo
do lançamento do livro