segunda-feira, 13 de agosto de 2012

MUTAÇÃO - conto LdeM




Mutação


dedicado ao mestre F. Kafka, autor de A Metamorfose



Antes da sessão de fotos, para a nova revista de moda, na tarde de sábado, a bela Gretchen percebeu-se voejando pelo quarto como uma pálida borboleta. Nada se notara de estranho além das asas estendidas ao teto agora baixo e dominante como um domo de claustro em estilo românico. A penumbra do aposento aumentava o efeito de cúpula e, temendo esbarrar pelas paredes, Gretchen voejava em círculos e espirais, até cansar-se, indo pousar na cadeira, diante da penteadeira e do espelho oval, onde a foto de uma jovem modelo sorria diante de uma coluna de água espumante do chafariz municipal.

Ao pousar, Gretchen lembrou-se de seu falecido irmão Gregor Samsa, que certa manhã, após longos pesadelos, viu-se metamorfoseado num estranho inseto. Gretchen fechou os olhos, e tentou acordar de seu sonho, mas apenas sentiu o movimentar oscilatório das anteninhas contra as franjas do cortinado. Pensou gritar, mas nenhum som se elevou. As asas bateram e ela voltou a voar em círculos.

Logo hoje, ela pensou. Quando preciso completar o álbum de fotos para a revista! Vou chegar bem atrasada. Mamãe não vai gostar nada disso! E nisso uma batida ressoou na porta lateral, oposta à janela agora fechada. Era a mãe de Gretchen, deveras preocupada. O que a filha tanto fazia que não saía do quarto? Precisava ficar horas se maquilando? Era muita vaidade, não?

Gretchen tentou responder algo para a mãe, mas logo descobriu que as borboletas não têm voz. Não podem latir, ou uivar, ou soltar belos trinados. As borboletas podem voar, voar, em círculos, delicadas, sobre as pétalas das flores, a sujarem-se de pólen. Assim como poderia a jovem explicar algo a sua pobre mãe? Como poderia abrir a porta de seu quarto? Sua mãe se voltava em passos arrastados, como se entorpecida pela preocupação, rumo a sala, onde se ouvia o ruído áspero das gavetas da estante.

Voejando da cômoda ao guarda-roupa, da cama ao espelho oval, Gretchen procurava um lugar adequado para pousar, mas ora se distraía com um filete de luz que caía do vidro da janela, ora se deixava flutuar numa corrente de ar que surgia no canto superior da porta, a deslizar até as bordas da janela, de onde se insinuava outra corrente rumo ao teto. Gretchen nada sabia sobre lepidópteros, senão poderia identificar seu reflexo no espelho como uma espécime da Borboleta-Monarca Danaus plexippus, com brilhante tons de laranja-amarelado oscilando ao pálido jorro de luz.

A mãe seguramente encontrara uma segunda chave da porta, pois não apenas chamara sua filha Gretchen novamente, como introduzira a chave na fechadura e logo conseguiu entrar. Não vi a filha como esperava. Atravessou o quarto, com lentidão e chegou até a outra porta. A mulher logo foi conferir se a porta estava destrancada. Teria sua filha saído por ali?

Olhou ao redor e viu uma borboleta que saía de imediato pela porta aberta. Também Gretchen olhava ao redor e sentia-se bem em voar pela sala. Ali na sala ela reconhecia o quadro do irmão fardado, o falecido Gregor, que ao menos assim impunha respeito, por seu uniforme militar e pose heroica. Pobre Samsa, morto na insignificância de um inseto ou verme. Um troço pisado sob a cama, um empecilho à felicidade da família.


Aberta a janela da sala deixava Gretchen ver o mundo lá fora. O que ela via? Apenas o panorama de Praga com as ruas estreitas ensombreadas por casas e sobrados, margeadas por telhados, cúpulas e torres pontiagudas, antes da ponte sobre o rio Vltava, de onde se via o Castelo, todo imponente e parecendo inalcançável. Gretchen só não voejou para fora devido a soberba solar que tudo inundava, e ela sabia que não poderia expor sua pele pálida aos raios bronzeantes sem receber bronca d mãe, sempre atenta aos rituais da beleza. A filha não poderia ameaçar sua beleza que agora mantinha a vida cômoda da família.

Mas Gretchen não estava prometida em casamento? Ao jovem senhor Rodolfo, um promissor advogado, que seguiria ainda uma carreira de defensor público, e – quem saberia? - um dia seria juiz de instrução, a apontar os direitos e deveres dos cidadãos, a reconhecer, entre os acusados, quem era inocente e quem era culpado. Contudo, a moça pensava, enquanto se acomodava sobre a prateleira da estante, entre um copo e um prato, em como a família viveria sem a filha querida, em como ela poderia viver com um marido tão talentoso.

Pobre Gretchen! Nem pensava que assim, nesse corpo minúsculo de borboleta, voejando entre os móveis e os lustres, pouco poderia fazer para alegrar a vida de casado do futuro marido. Como servir o jantar? Como engraxar as botas dele? Como massagear os seus pés? Como deixar-se ver no novo veste para o baile? Ó pobre Rodolfo! Ficaria sem a sua mulherzinha! A menos que ele preferisse borboletas em tons alaranjados-amarelados. Borboletas que indecisas voam da estante à mesa, da mesa ao cortinado, e do cortinado ao quadro de um jovem de uniforme.

A mãe de Gretch, deveras preocupada, pois não tem ideia de onde possa estar a filha, voltou a sala, e deixou-se cair numa cadeira. Onde andaria a filha? Terá saído tão cedo? Como ela trabalha, meu Deus! Tantas sessões de fotos! E que vestidos brilhantes! Que sandálias caras! Tomara a filha não se tornar uma vaidosa e esnobe! Mas com tanta beleza! Que seu marido não fosse um daqueles ciumentos, senão ela teria aborrecimentos... E a mãe de Gretchen alisava o vestido gasto, olhava as sandálias já usadas e pensava em voltar ao quarto e ver o que a filha guardava – não ousou pensar 'escondia' – nas gavetas do guarda-roupa.

Não foi muito longe, pois o pai de Gretchen chegava, com uma expressão matinal, entre sério e sonolento, a trazer um jornal, um pão e alguns ovos, além de um envelope, certamente uma carta. A mãe não ousou perguntar, e ele sentou-se diante do pão e do jornal, e rasgou a lateral do envelope. No envelope, jogado sobre o forro da mesa, estava o nome de Gregor. Certamente algum cliente, ou credor, que ainda não soubera do fim trágico do filho caixeiro-viajante.

Uma corrente de ar agitava o cortinado, e a jovem Gretchen, ou melhor a delicada borboleta, se deixava oscilar, enquanto acompanhava o modo indiferente com o qual seu pai tratava sua mãe, como ele adentrava e tomava conta de tudo, e como ela se mantinha encolhida, como se temesse levar uma bronca ou uma chicotada. O envelope era rasgado, a carta extraída, as sobrancelhas se enrugavam, os lábios se contraíam, os dedos firmes exploravam as letras. Sim, parece que mais um cliente ou credor que se lembrava de Gregor, o irmão falecido, aquele inseto desastrado que por pouco não arruinou a família.

Enquanto o pai e a mãe viviam em seus espaços delimitados na sala, a observadora Gretchen acompanhava as sombras projetadas sobre os móveis e o movimento do farol solar sobre as marcas de fuligem no teto. Não parecia ter pressa, até esquecera a sessão de fotos. Só se lembrou disso quando o pai, após ler a carta num só fôlego, a deixou sobre o forro e perguntou a mãe sobre a filha Gretchen. Se sabia ela que moça tinha um compromisso. Umas fotos para a revista. E se não estaria indo longe demais. Queria dizer, não estaria se exibindo muito. Claro, eram apenas roupas e poses, mas era a filha dele, ora! Não queria que zombassem dele na repartição. Os colegas são sempre uns mulherengos!

Mas a mãe de Gretchen não ouvia, já preocupada com a ausência da filha. Não fora assim, tão subitamente, que desaparecera o filho Gregor? Pois, convenhamos, ela não podia aceitar que aquela barata nojenta fosse o seu querido filho! Como poderia rastejar e viver sob os móveis como um ser repulsivo? Era um absurdo! Mas do mesmo modo desaparecia sua filha Gretchen! Uma mãe vai acordar a filha e o que encontra? Um quarto vazio! Encontra móveis, poeira, penumbra, e uma borboleta que voa, que levita, que foge, na primeira oportunidade!

O sol parecia forte lá fora, no início da manhã, mas Gretchen adoraria dar uma volta pela praça, atravessar a ponte, subir até o Castelo, ver a cidade lá de cima. Ah, poderia deixar a sessão de fotos para outro dia! E aproveitar o dia assim como aproveitava esta corrente de ar... até o quadro do irmão, muito pomposo naquele uniforme, pobre Gregor, em tão medonha metamorfose! Não, que quadro mais deslocado! Antes um punhado de flores, a refrescar o ambiente tão familiar e tão unheimlich... sim, eis uma palavra estranha... Ou então ver o sol mais de perto, além de temer seus reflexos... Ali a janela, aberta, de boca aberta, um rasgo na parede, lembrando que há céu, nuvens, árvores, rios, pontes, casario, viagem.

A mãe olhou para o cortinado e deparou-se com o oscilar da borboleta. Mas antes que pudesse se erguer e fizer algo ou fazer algo, a borboleta se cansou de ficar ali e deslizou num voo suave até o quadro de Gregor com uniforme militar. Mas algo ali parecia incomodá-la, pois menos de um minuto depois, a borboleta resolveu buscar o abrigo de um buquê de flores sobre a lareira. Mas não achou abrigo algum, pois novamente lançou-se ao voo e novamente rumo a janela. Apenas não parou, a descansar, na cortina. Passou direto e alcançou o mundo lá fora.


ago/12


Leonardo de Magalhaens



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