Mutação
dedicado
ao
mestre
F.
Kafka,
autor
de
A
Metamorfose
Antes
da
sessão
de
fotos,
para
a
nova
revista
de
moda,
na
tarde
de
sábado,
a
bela
Gretchen
percebeu-se
voejando
pelo
quarto
como
uma
pálida
borboleta.
Nada
se
notara
de
estranho
além
das
asas
estendidas
ao
teto
agora
baixo
e
dominante
como
um
domo
de
claustro
em
estilo
românico.
A
penumbra
do
aposento
aumentava
o
efeito
de
cúpula
e,
temendo
esbarrar
pelas
paredes,
Gretchen
voejava
em
círculos
e
espirais,
até
cansar-se,
indo
pousar
na
cadeira,
diante
da
penteadeira
e
do
espelho
oval,
onde
a
foto
de
uma
jovem
modelo
sorria
diante
de
uma
coluna
de
água
espumante
do
chafariz
municipal.
Ao
pousar,
Gretchen
lembrou-se
de
seu
falecido
irmão
Gregor
Samsa,
que
certa
manhã,
após
longos
pesadelos,
viu-se
metamorfoseado
num
estranho
inseto.
Gretchen
fechou
os
olhos,
e
tentou
acordar
de
seu
sonho,
mas
apenas
sentiu
o
movimentar
oscilatório
das
anteninhas
contra
as
franjas
do
cortinado.
Pensou
gritar,
mas
nenhum
som
se
elevou.
As
asas
bateram
e
ela
voltou
a
voar
em
círculos.
Logo
hoje,
ela
pensou.
Quando
preciso
completar
o
álbum
de
fotos
para
a
revista!
Vou
chegar
bem
atrasada.
Mamãe
não
vai
gostar
nada
disso!
E
nisso
uma
batida
ressoou
na
porta
lateral,
oposta
à
janela
agora
fechada.
Era
a
mãe
de
Gretchen,
deveras
preocupada.
O
que
a
filha
tanto
fazia
que
não
saía
do
quarto?
Precisava
ficar
horas
se
maquilando?
Era
muita
vaidade,
não?
Gretchen
tentou
responder
algo
para
a
mãe,
mas
logo
descobriu
que
as
borboletas
não
têm
voz.
Não
podem
latir,
ou
uivar,
ou
soltar
belos
trinados.
As
borboletas
só
podem
voar,
voar,
em
círculos,
delicadas,
sobre
as
pétalas
das
flores,
a
sujarem-se
de
pólen.
Assim como poderia a jovem explicar algo a sua pobre mãe? Como
poderia abrir a porta de seu quarto? Sua mãe se voltava em passos
arrastados, como se entorpecida pela preocupação, rumo a sala, onde
se ouvia o ruído áspero das gavetas da estante.
Voejando
da cômoda ao guarda-roupa, da cama ao espelho oval, Gretchen
procurava um lugar adequado para pousar, mas ora se distraía com um
filete de luz que caía do vidro da janela, ora se deixava flutuar
numa corrente de ar que surgia no canto superior da porta, a deslizar
até as bordas da janela, de onde se insinuava outra corrente rumo ao
teto. Gretchen
nada
sabia
sobre
lepidópteros,
senão
poderia
identificar
seu
reflexo
no
espelho
como
uma
espécime
da
Borboleta-Monarca
Danaus
plexippus,
com brilhante tons de laranja-amarelado oscilando ao pálido jorro de
luz.
A
mãe seguramente encontrara uma segunda chave da porta, pois não
apenas chamara sua filha Gretchen novamente, como introduzira a chave
na fechadura e logo conseguiu entrar. Não vi a filha como esperava.
Atravessou o quarto, com lentidão e chegou até a outra porta. A
mulher logo foi conferir se a porta estava destrancada. Teria sua
filha saído por ali?
Olhou
ao redor e viu uma borboleta que saía de imediato pela porta aberta.
Também Gretchen olhava ao redor e sentia-se bem em voar pela sala.
Ali na sala ela reconhecia o quadro do irmão fardado, o falecido
Gregor, que ao menos assim impunha respeito, por seu uniforme militar
e pose heroica. Pobre Samsa, morto na insignificância de um inseto
ou verme. Um troço pisado sob a cama, um empecilho à felicidade da
família.
Aberta
a janela da sala deixava Gretchen ver o mundo lá fora. O que ela
via? Apenas o panorama de Praga com as ruas estreitas ensombreadas
por casas e sobrados, margeadas por telhados, cúpulas e torres
pontiagudas, antes da ponte sobre o rio Vltava, de onde se via o
Castelo, todo imponente e parecendo inalcançável. Gretchen só não
voejou para fora devido a soberba solar que tudo inundava, e ela
sabia que não poderia expor sua pele pálida aos raios bronzeantes
sem receber bronca d mãe, sempre atenta aos rituais da beleza. A
filha não poderia ameaçar sua beleza que agora mantinha a vida
cômoda da família.
Mas
Gretchen não estava prometida em casamento? Ao jovem senhor Rodolfo,
um promissor advogado, que seguiria ainda uma carreira de defensor
público, e – quem saberia? - um dia seria juiz de instrução, a
apontar os direitos e deveres dos cidadãos, a reconhecer, entre os
acusados, quem era inocente e quem era culpado. Contudo, a moça
pensava, enquanto se acomodava sobre a prateleira da estante, entre
um copo e um prato, em como a família viveria sem a filha querida,
em como ela poderia viver com um marido tão talentoso.
Pobre
Gretchen! Nem pensava que assim, nesse corpo minúsculo de borboleta,
voejando entre os móveis e os lustres, pouco poderia fazer para
alegrar a vida de casado do futuro marido. Como servir o jantar?
Como engraxar as botas dele? Como massagear os seus pés? Como
deixar-se ver no novo veste para o baile? Ó pobre Rodolfo! Ficaria
sem a sua mulherzinha! A menos que ele preferisse borboletas em tons
alaranjados-amarelados. Borboletas que indecisas voam da estante à
mesa, da mesa ao cortinado, e do cortinado ao quadro de um jovem de
uniforme.
A
mãe de Gretch, deveras preocupada, pois não tem ideia de onde possa
estar a filha, voltou a sala, e deixou-se cair numa cadeira. Onde
andaria a filha? Terá saído tão cedo? Como ela trabalha, meu Deus!
Tantas sessões de fotos! E que vestidos brilhantes! Que sandálias
caras! Tomara a filha não se tornar uma vaidosa e esnobe! Mas com
tanta beleza! Que seu marido não fosse um daqueles ciumentos, senão
ela teria aborrecimentos... E a mãe de Gretchen alisava o vestido
gasto, olhava as sandálias já usadas e pensava em voltar ao quarto
e ver o que a filha guardava – não ousou pensar 'escondia' – nas
gavetas do guarda-roupa.
Não
foi muito longe, pois o pai de Gretchen chegava, com uma expressão
matinal, entre sério e sonolento, a trazer um jornal, um pão e
alguns ovos, além de um envelope, certamente uma carta. A mãe não
ousou perguntar, e ele sentou-se diante do pão e do jornal, e rasgou
a lateral do envelope. No envelope, jogado sobre o forro da mesa,
estava o nome de Gregor. Certamente algum cliente, ou credor, que
ainda não soubera do fim trágico do filho caixeiro-viajante.
Uma
corrente de ar agitava o cortinado, e a jovem Gretchen, ou melhor a
delicada borboleta, se deixava oscilar, enquanto acompanhava o modo
indiferente com o qual seu pai tratava sua mãe, como ele adentrava e
tomava conta de tudo, e como ela se mantinha encolhida, como se
temesse levar uma bronca ou uma chicotada. O envelope era rasgado, a
carta extraída, as sobrancelhas se enrugavam, os lábios se
contraíam, os dedos firmes exploravam as letras. Sim, parece que
mais um cliente ou credor que se lembrava de Gregor, o irmão
falecido, aquele inseto desastrado que por pouco não arruinou a
família.
Enquanto
o pai e a mãe viviam em seus espaços delimitados na sala, a
observadora Gretchen acompanhava as sombras projetadas sobre os
móveis e o movimento do farol solar sobre as marcas de fuligem no
teto. Não parecia ter pressa, até esquecera a sessão de fotos. Só
se lembrou disso quando o pai, após ler a carta num só fôlego, a
deixou sobre o forro e perguntou a mãe sobre a filha Gretchen. Se
sabia ela que moça tinha um compromisso. Umas fotos para a revista.
E se não estaria indo longe demais. Queria dizer, não estaria se
exibindo muito. Claro, eram apenas roupas e poses, mas era a filha
dele, ora! Não queria que zombassem dele na repartição. Os colegas
são sempre uns mulherengos!
Mas
a mãe de Gretchen não ouvia, já preocupada com a ausência da
filha. Não fora assim, tão subitamente, que desaparecera o filho
Gregor? Pois, convenhamos, ela não podia aceitar que aquela barata
nojenta fosse o seu querido filho! Como poderia rastejar e viver sob
os móveis como um ser repulsivo? Era um absurdo! Mas do mesmo modo
desaparecia sua filha Gretchen! Uma mãe vai acordar a filha e o que
encontra? Um quarto vazio! Encontra móveis, poeira, penumbra, e uma
borboleta que voa, que levita, que foge, na primeira oportunidade!
O
sol parecia forte lá fora, no início da manhã, mas Gretchen
adoraria dar uma volta pela praça, atravessar a ponte, subir até o
Castelo, ver a cidade lá de cima. Ah, poderia deixar a sessão de
fotos para outro dia! E aproveitar o dia assim como aproveitava esta
corrente de ar... até o quadro do irmão, muito pomposo naquele
uniforme, pobre Gregor, em tão medonha metamorfose! Não, que quadro
mais deslocado! Antes um punhado de flores, a refrescar o ambiente
tão familiar e tão unheimlich...
sim, eis uma palavra estranha... Ou então ver o sol mais de perto,
além de temer seus reflexos... Ali a janela, aberta, de boca aberta,
um rasgo na parede, lembrando que há céu, nuvens, árvores, rios,
pontes, casario, viagem.
A
mãe olhou para o cortinado e deparou-se com o oscilar da borboleta.
Mas antes que pudesse se erguer e fizer algo ou fazer algo, a
borboleta se cansou de ficar ali e deslizou num voo suave até o
quadro de Gregor com uniforme militar. Mas algo ali parecia
incomodá-la, pois menos de um minuto depois, a borboleta resolveu
buscar o abrigo de um buquê de flores sobre a lareira. Mas não
achou abrigo algum, pois novamente lançou-se ao voo e novamente rumo
a janela. Apenas não parou, a descansar, na cortina. Passou direto e
alcançou o mundo lá fora.
ago/12
Leonardo
de Magalhaens
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