Sobre “Menino de Engenho” (1932)
do autor brasileiro José Lins do Rego (1901-1957)
Na infância a perda da inocência
Introdução
Literatura com criança e literatura para criança
A presença da criança – enquanto tema, protagonista ou figurante - na Literatura Brasileira não é propriamente sobre criança nem para crianças. A criança não recebia qualquer foco. Os enredos giravam em torno de adultos. Assim foi até a época Raul Pompeia (1863-1895, que escreveu suas memórias dos tempos da infância) e de Monteiro Lobato (1882-1948, que popularizou fábulas e clássicos ao gosto juvenil, ao adaptar pérolas do Cânone, mas não entrou no Meu Cânone) que iniciaram um estilo que podemos atualmente denominar de 'infanto-juvenil'.
O não existir 'infanto-juvenil', na literatura de outrora, não significa que crianças não fossem leitoras (ou ouvintes) com atenção. Somente que as crianças exigem uma linguagem mais próxima do cotidiano e enredos com peripécias. Assim muitas obras densas e extensas foram 'adaptadas' – vejam as 'versões enxutas' dos clássicos “Robinson Crusoé”, “Viagens de Gulliver”, “Os Três Mosqueteiros”, “Volta ao Mundo em 80 dias”, dentre outras. O que era para adultos um ou dois séculos antes, agora é acessível aos mocinhos e mocinhas.
O narrador de infanto-juvenil pode ser um adulto a lembrar dos tempos de infância e juventude, como é o caso de “O Ateneu” de Raul Pompeia. Muitas obras memoralistas poderiam ser adaptadas ao público infanto-juvenil quando o assunto for infância – outras não, pois certamente há todo um olhar de adulto a 'julgar' a infância, e uma criança, certamente, não entenderia.
Ou pode ser uma criança – fenômeno que existia antes quando uma criança adentrava a narração ao contar um fato. Um narrador-criança que fosse interessante às crianças era mais raro. Era alguém que dizia algo a uma criança, mas esta não tinha voz. No máximo, um narrador-jovem descrevia suas vivências de criança. (Assim um “David Copperfield” ou um “Aventuras de Huckleberry Finn”, obras de Charles Dickens e Mark Twain, respectivamente.)
Em “Menino de Engenho” a narrativa não é a de uma criança – ou seja, o narrador não se identifica enquanto criança, como é o caso de Huckleberry Finn, a personagem do romance de Mark Twain. Aqui em Menino de Engenho é o Narrador, o porta-voz do Autor (já tendo 31 anos), quem se permite lembrar as cenas marcantes da infância do menino Carlos. Seria mais um exemplo de memórias romanceadas. “Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu.” (p. 33)
Menino de Engenho
A narração mostra logo que não é uma criança, mas um adulto que volta-se para o período da infância. Ele amadurece justamente com a perda da inocência. A consciência de si com a percepção da perda – a morte. Não uma perda abstrata – mas a ausência da mãe, vítima de um crime passional. O ciúme que nasce da possessão – o homem tem a mulher como um objeto pessoal. A perda da vida urbana e sob a tutela de parentes na vida rural.
Eis o drama familiar – o pai mata a mãe – o homem trata a mulher como bem, como serva (tema semelhante, o da dominação masculina, encontramos no romance “São Bernardo”, de Graciliano Ramos.) que desencadeia a narrativa – o menino não nasceu no engenho, mas lá ele se criou. Numa infância que marcou, uma vez que dissabores não faltaram. A memória é marcada pelo sofrer, por uma trilha de amarguras (como já dizia o pensador Nietzsche).
Assim como o memoralista Pedro Nava faz em “Baú de Ossos”, o Autor ao falar da infância volta aos pais, aos dramas familiares. “A minha memória ainda guarda detalhes.” (p. 36, c. 3) Ora a infância é um abrigo, um consolo; ora um palco de vicissitudes. Em ambos os casos é algo marcante. A infância não é esquecida, apagada, mas é uma espécie de 'espinho na carne', uma fase tanto idílica quanto angustiosa da vida. Sobre a infância se ergue a edificação da vida adulta. “A morte de minha mãe me encheu a vida inteira de uma melancolia desesperada.” (pp. 36/37, c. 3)
Com a morte da mãe e o internamento do pai, o menino Carlos é criado no engenho do avô. (Todo um mundo rural que será inspiração - e cenário - para outras obras do Autor.) Temos a imagem do coronelismo – que imperava no interior brasileiro – no avô, o Coronel José Paulino, que exerce funções de mando e consolo, meio juiz e meio paternalista. Tanto que os filhos dos trabalhadores logo desconfiam do neto do coronel – assim o menino da 'casa grande' não faz bons amigos. Na solidão ele tem a consciência de si mesmo.
Num mundo que revela-se ser de aflições – ao perder a vida de cidade, ao lado da mãe – o menino tem apenas a idealização, a fuga para a fantasia, “me acostumei a imaginar o engenho como qualquer coisa de um conto de fadas, de um reino fabuloso” (p. 38, c. 4) e “Minha imaginação vivia assim a criar esse mundo maravilhoso que eu não conhecia.” (p. 41, c. 5), onde a narração seria outro tipo de desabafo.
Assim, o menino da cidade vem tornar-se um menino rústico, nas terras do engenho, quase de 'fogo morto' – isto é, desativado – quando lembramos aqui do romance clássico do Autor, “Fogo Morto” (1943), com suas figuras quixotescas e espectrais, causos de assombração. Todas advindas deste mundo em 'sumiço' , com o êxodo rural no início do século 20, quando os retirantes do campo vieram 'tentar a sorte' nas grandes cidades (e somente conseguiram inchar as metrópoles). Logo percebemos as relações autoritárias na família. Lá impera a tia Sinhazinha, a conservar uma mente de sinhá escravocrata do século 19, insensível e mandona, a ponto de não causar espanto quando o narrador diz simplesmente que “as negras odiavam-na”.
Em seu novo lar, outra cena de morte traumatiza o menino. A morte precoce da frágil prima Lili vem a ser outro golpe sobre a sensibilidade infantil. A morte leva os bons e deixa os cruéis... Mas surge a figura da tia Maria – mãe da finada Lili – que se tornará uma segunda mãe para o menino, ali sempre hostilizado pela 'sinhazinha', a dama severa que não hesita em destruir a auto-estima da criança (“-Nunca vi um menino tão rude”) Rude o menino que prefere a vida livre aos estudos (“carta de abêcê”), com a imaginação solta pelos campos e recantos do engenho, “E as letras não me entravam na cabeça” (p. 47, c. 9)
Em sua nova vida ao ar livre, o menino conhece os limites do engenho, e os limites da vida social. Quem manda e quem obedece. Conhece mais o coronelismo, com a figura do coronel e seus jagunços, instrumentos da violência. Numa cena digna de sertão, o avô recebe a visita do cangaceiro Antônio Silvino que combatia os 'macacos' (isto é, os soldados da República recente), para manter as hierarquias tradicionais da vida sertaneja. E violência gera mais violência. (Todos conhecemos os episódios de violência no campo, não se trata de algo do passado, ou que existe apenas nos enredos dos romances regionalistas...)
Diante da agressividade da vida, o menino sofre por considerar-se desprotegido, o que gera piedade na tia Maria, “Ela só faz isto porque você não tem mãe” (p. 53, c. 12), incapaz de protegê-lo do sentimento de injustiça, “Aquela injustiça brutal despertava em meu coração puro de menino os impulsos mais cruéis de desforra”(p. 53). O menino logo aprende sobre a labuta com a natureza, quando o homem do campo enfrenta a seca numa dada época, e a enchente em outra. No plano do real, temos referências à grande enchente de 1875 (“a várzea ficou toda debaixo d'água com mais de um metro de lama”, p. 56) quando as forças naturais demonstram em desproporção e excesso a indiferença quanto ao ser humano.
O avô resigna-se diante da enchente, até prefere a chuva, a lama do que a secura. A lama, ao menos, fertiliza os solos, “Gosto mais de perder com água do que com sol”, p. 57) A mesma enchente que atinge tanto pobres quanto ricos. “Nós, os da casa-grande, estávamos ali reunidos no mesmo medo, com aquela pobre gente do eito.” (p. 59) Os pobres que se mostram vítimas do fatalismo, em submissão aceitando as intempéries e catástrofes, os desmandos, segundo se nota no olhar dos patrões, “Eles [a pobre gente do eito] pareciam felizes de qualquer forma, muito submissos e muito contentes com o seu destino.” (p. 59, c. 13)
É quando o Narrador (e não menino) interfere, ao comentar o quanto os submissos confundiam a desventura, o Destino com um Deus, “Mas, coitados, com que saúde e com que Deus estavam eles contando!” (p. 59, c. 13) pois, na mesma época a preocupação do menino não era sobre as diferenças sociais, antes descobrir modos de se divertir, junto aos outros mocinhos na vida rústica, “Nós, os meninos, queríamos encontrar os estragos da cheia.” (p. 60, c. 13) O drama social diante deles, mas os meninos procuram mais brincadeiras e aventuras. “Há muita miséria. Muita fome no povo. O governo está mandando mantimentos.” (p. 60, c. 13) e “O engenho e a casa de farinha repletos de flagelados.” (p. 61, c. 13)
Mas a vida continua. A vida sempre segue adiante depois de calamidades. E o menino precisa aprender a ler e escrever. Aparecem os mestres, uns dedicados, outros autoritários. O professor Dr. Figueiredo, que deixa o menino aos cuidados da esposa, a 'bela Judite', que desperta no menino outros interesses além da leitura. Até porque, na mesma época, o menino sobre as influências do rapaz Zé Guedes, já desperto para a sensualidade, para o erotismo, o que provoca curiosidade. Também os animais no cio atraem as atenções, “a promiscuidade selvagem do curral.”
A consciência do desejo ao mesmo tempo que a percepção dos limites. A autoridade do coronel está sempre presente, limitando o menino. O narrador lembra-se ainda do quanto o coronel abusava dos 'possessivos' ao descrever suas propriedades, “seu engenho”, “seus campos”, “sua propriedade”, “suas matas”, “suas nascentes”, “seu povo”, “seus gritos de chefe”; eis o mundo enquanto posse para uma classe de 'afortunados'. É a figura do coronel no imaginário (ver outras obras do regionalismo, tais como “Fogo Morto”, “Vidas Secas”, “Grande Sertão: Veredas”, “O Coronel e o Lobisomem”), aquele senhor de terras, senhor feudal, os Barões, os Junkers (como são chamados na Alemanha)
O senhor feudal – em início de século 20 – em suas andanças de proprietário, exercendo seu domínio, reproduzindo as desigualdades sociais, onde uns mandam e outros obedecem. “Andávamos muito nessas suas visitas de patriarca”(pp. 65/66, c. 16) Realmente é de causar perplexidade, esta figura patriarcal do senhor feudal em nossa época. (Os atuais ruralistas não apreciam, certamente, tal caricatura, mas mantêm o mesmo sistema de exploração)
Um dos pilares da 'ordem patriarcal' é a religião, a instituição dos dogmas, onde há um deus que manda e uma multidão de fiéis que obedecem. Uma religião de altares e oratórios, de capelas e incensos. Exteriorizações do que não é íntimo. Uma religiosidade diante da qual o avô é indiferente. Ele mesmo percebe que a única religião 'digna' de um patriarca é o poder.
O poder sobre as vidas alheias. A fé que legitima – em nome de Deus – uma exploração do trabalho alheio. Assim é a fé no feudalismo – pilar da dominação do clero – e suseranos – sobre os vassalos. (Tanto que na Rússia czarista os servos eram 'almas' negociadas pelos senhores; vide a magistral obra de N. Gógol, “Almas Mortas”, 1842) Um exemplo? O filho do coronel – o tio Juca – sujeito estudado, que viveu na cidade, mas tem como divertimento, como passatempo, o costume de seduzir as criadas do feudo. E assim perpetua-se o poder do homem branco ao subjugar as servas negras – humilhadas pela escravidão recentemente 'abolida'...
Ainda persistem as crendices populares, por exemplo, o lobisomem, como mostra boa parte da literatura popular (vejamos o 'cordel'), e o mundo desconhecido é fonte de terror. “Na minha sensibilidade ia crescendo este terror pelo desconhecido.” (p. 77, c. 20), pois a criança tende a tornar sério até o mais fantástico sonho – acreditar em Saci e Papai Noel – a ponto de sofrer para diferenciar real de ficcional. “Pintavam o lobisomem com uma realidade tão da terra que era mesmo que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma ideia vaga de sua pessoa.” (p. 78)
Esta mistura de real e ficcional é bem presente nos 'causos' da velha Totonha, contadora de histórias. A fazer referências aos seres fabulosos e lendas folclóricas. Histórias da Angola, da costa da África. E também referências às “Mil e Uma Noites” (os contos árabes que tanto fascinam os ocidentais, vide um Marcel Proust...) A velha Totonha tem um jeito todo especial de contar causos, com um modo de narrar que se apropria da fábula narrada, “E as lendas eram suas, ninguém sabia contar como ela.” (p. 79, c. 21), além de incluir coisas do vivenciado na que era fábula, “O que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos.” (p. 80)
Ao lado da casa grande ainda há a senzala, pois mantem-se a submissão diante dos senhores. A escravidão não acabou por decreto de cima-pra-baixo. Não acabou por desejo de uma princesa, ou de uma classe dirigente. Não se entrega a liberdade a alguém – a liberdade é um valor a ser conquistado. Se os escravos tivessem se revoltado e se livrado dos senhores, nossa história seria diferente. “A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pegada à casa-grande, com as suas negras parindo, as botas amas-de-leite e os bons cabras do eito.” (p. 88, c. 22) e mais adiante, nas palavras do avô, “Não me saiu do engenho um negro só. Para esta gente a abolição não serviu de nada. Vivem hoje comendo farinha seca e trabalhando a dia.” (p. 118, c. 33)
Em certos momentos o narrador é irônico – deslocado da criança que é o foco das reminiscências – diante das desigualdades sociais. Trechos assim: “a mesma alegria da escravidão”, ou “o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de bons animais domésticos.” (p. 84) o que muito aproxima o narrador (e o Autor José Lins) do narrador (e personagem) Paulo Honório do romance “São Bernardo” (1934) de Graciliano Ramos (outro nome no balaio do Regionalismo). Paulo Honório que descreve os camponeses com um desprezo seco, de linguagem rústica.
Mas os meninos filhos dos trabalhadores braçais imperam sobre os da casa-grande quando nas brincadeiras, quando mostram a liberdade para travessuras. A partir das aventuras infantis, temos as descrições de vida rural, as visitas aos engenhos – o que faz antever o narrador de “Fogo Morto”, digno clássico ao lado de “Vidas Secas” e “O Quinze”, obras de Graciliano Ramos e Rachel de Queirós, respectivamente.
Temos mais referências ao coronelismo dos senhores feudais nos sertões, onde o que não faltam são “servos do meu avô” (p. 102), o engenho Santa Rosa, do velho José Paulino, comparado com o poderio de outros donos de engenho – aquele engenho do Santa Fé, do Seu Lula de Holanda, o qual “já o conheci de fogo morto” (p. 104), eixo do enredo de “Fogo Morto” (vejam ensaio em breve)
As histórias, os 'causos' do avô são marcantes, em paralelo – e comparação – com aquelas fábulas da velha Totonha. Entrelaçam coisas não vividas, falam de mundos outros – no tempo e no espaço – e excitam o interesse do menino – que será futuramente o Narrador.
“Estas histórias do meu avô me prendiam a atenção de um modo bem diferente daquelas da velha Totonha. Não apelavam para a minha imaginação, para o fantástico. Não tinham a solução milagrosa das outras. Puros fatos diversos, mas que se gravavam na minha memória como incidentes que eu tivesse assistido. Era uma obra de cronista bulindo de realidade.” (p. 119, c. 33)
Em contraponto às descrições do mundo exterior, temos as análises psicológicas - “Pensava tanta coisa”, e “Eu me metia comigo mesmo” (no capítulo 25) – quando o alfinetar da consciência da mortalidade, que golpeia desde a perda da mãe, e depois a prima Lili. Ao se perceber doentio, um menino asmático, a fragilidade física e o medo da morte passam a ser sombras. Daí um olhar sobre si mesmo – diferente dos meninos que brincam, sadios, e não pensam na existência.
Quando fatos externos são narrados eles se encaixam numa série de dramas das lembranças infantis, ou melhor, não têm importância em si mesmos, mas antes são marcos das reminiscências. A enchente, o fogo no canavial, a servidão, tudo isso existe na medida em agride a sensibilidade do menino (ou a imagem do menino para o narrador).
Assim o que acontece lá fora só tem valor aqui dentro. A beleza da menina é beleza pois afeta a sensibilidade do menino, “a minha tenra sensibilidade”, assim a desabrochar o primeiro amor, a primeira perda amorosa. Ternura sempre lado a lado com a angústia, pois trata-se de um menino sensível (“a minha tenra sensibilidade”). É de se pensar como é possível um menino tão novo com amargura e pessimismo! Ou será o narrador no presente ao projetar tais afetos no menino, ser de seu passado?
Culpa e autodepreciação – é do menino ou do narrador? De quem é a consciência aqui? Não é o menino que narra – mas um sujeito que se observa no passado – o que viveu, sofreu, idealizou, suas frustrações.
“Pouco sabia de rezas. E esta ausência perigosa de religião não me levava a temer os pecados. Muito depois, esta miséria de sentimentos religiosos se refletiria em toda a minha vida, como uma desgraça.” (p. 130, c. 35)
Este pessimismo, os 'pensamentos ruins', a ideia de pecado – o que uma criança entende disso? Será apenas o sentimento mais tardio, quando já é o narrador? Na verdade, o menino compartilha uma certa culpa – a culpa de 'senhor' diante da pobreza dos subalternos. Quando o tio luxurioso não hesita em se deitar com as negras – e até engravidá-las – quem se sente culpado?
Por exemplo, a dicotomia entre amor e sexo, ternura e sexualidade. O amor ele experimenta com a bela menina Maria Clara (aqui um símbolo do amor platônico, casto) e a iniciação sexual ele experimenta com uma negra da fazenda. Aliás, fato comum durante a escravatura, onde os meninos brancos, os jovens senhores, se iniciavam sexualmente nos corpos das escravas negras, submissas e humilhadas. A culpa por se deitar com as empregadas transforma o sexo em algo negativo.
“O sexo impunha-me essa escravidão abominável.” (p. 131, c. 35), onde o menino (e o narrador) não vê qualquer lirismo. Apenas o sexo enquanto atividade animal, carnal, hormonal. Fenômeno de romance naturalista. Daí a mulher não aparecer de forma positiva, mas enquanto sedutora, devassa, destruidora da castidade infantil. O menino logo tem doenças de adultos, doenças de sexo. Ambiguidade entre o orgulho e a vergonha.
No despertar da sexualidade volta-se o olhar para a evidência da submissão das mulheres. Enquanto homens brancos e negros respeitam a hierarquia, a segregação, com as mulheres é diferente. Brancas e negras se encontravam iguais – submissas – na cozinha da Casa Grande. “Nas cozinhas das casas-grandes vivem as brancas e as negras, nessas conversas como de iguais. As brancas deitadas, dando as cabeças para os cafunés e a cata dos piolhos.” (p. 132, c. 36) Cenas de uma vida rural de início de século 20, com suas tradições, separações, imposições, mas aqui descrita por um olhar não-rural, mas de um menino de cidade (e atualizado pelo narrador, escritor culto), para quem o mundo rural é novidade e desafio.
O meio rural que o menino sente como um processo de 'brutalização' (ou será o Narrador que pensa assim?), com a perda de tempo útil ao ensino, ao aprendizado de alfabetos e aritméticas.
“Todos me diziam que eu era um atrasado. Com 12 anos sem saber nada. Havia meninos da minha idade fazendo contas e sabendo as operaçõs. Só mesmo no colégio. Sabia ruindades, puxara demais pelo meu sexo, era um menino prodígio da porcaria.” (pp. 138-139, c. 37)
Como 'disciplinar' o menino perdido na vida de engenho? Como iniciá-lo na vida civilizada, aquela de cidade grande? Uma solução é o colégio interno – um educandário para refrear os desejos juvenis, colocar limites nas travessuras. Solução esta que os pais irresponsáveis encontram logo,
“Recorriam ao colégio como a uma casa de correção. Abandonavam-se em desleixos para com os filhos, pensando corrigi-los no castigo dos internatos. E não se importavam com a infância, com os anos mais perigosos da vida. Em junho estaria no meu sanatório. Ia entregar aos padres e aos mestres uma alma onde a luxúria cavara galerias perigosas. Perdera a inocência, perdera a grande felicidade de olhar o mundo como um brinquedo maior que os outros. Olhava o mundo através dos meus desejos e da minha carne. Tinha sentidos que desejavam as botas do Polegar para as suas viagens.” (pp. 145-146, c. 39 )
Somente aos doze anos o menino vai para uma escola. Assim, uma nova fase na vida. A entrada para o mundo da erudição, do alfabeto, da escrita. Veremos a mesma fase sob o olhar do protagonista (e narrador) Sérgio em “O Ateneu” (1888, de Raul Pompeia, 1863-1895), citado aqui, e tema de ensaio próximo.
“-Não vá perder o seu tempo. Estude, que não se arrepende.
Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo. Aquele Sérgio, de Raul Pompeia, entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade. Eu não: era sabendo de tudo, era adiantado nos anos, que ia atravessar as portas do meu colégio.
Menino perdido, menino de engenho.” (p. 149, c. 40)
De certo modo, o Ateneu pode ser uma continuação de Menino de Engenho, pois o romance de José Lins do Rego finda quando o menino deixa o Engenho e vai para a vida escolar, tematizada no livro de Raul Pompeia. É outro mundo – não mais o mundo rural, centro da narrativa. O mundo rural ficou como uma lembrança, um relato, um livro na estante. Uma saudade amarga. Ou um quadro na parede.
nov/11
Leonardo de Magalhaens
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“Menino de Engenho” (TV Globo, 1993)
“Menino de Engenho” (filme, 1965/1970)