O Espelho
Anita passou a manhã de sábado arrumando o quarto, providenciando um lugarzinho para o espelho. Sim, o grande espelho, reclinável, com uma gaveta embutida, o amável presente de um admirador.
O grande espelho, emoldurado em madeira em adornos meio orientais, com sulcos laterais e torneios de traçados curvilíneos, imponente junto ao pé da cama.
Ela se admirava, descobria o corpo, trocava a lingerie, ensaiava um passo de desfile, encenava um ato dramático. Tudo sempre diante do espelho. A superfície espelhada tornara-se a companheira, a dona dos elogios e das censuras, diante de uma Anita cada vez mais narcisista.
Às vezes, ela julga vislumbrar vultos dentro das imagens, uma sombra, um olhar pegajoso, mas considera tudo inoportunos delírios.
Mas o olhar pegajoso, surgido das brumas do espelho, parecia ser o olhar Dele. Sim, do admirador, do servo insone de sua divina presença.
No domingo, ela até ligara para o devoto, o poeta predileto, mas ele não estava, ele sempre distante, onde estaria agora?
E Anita desejava ligar novamente. Quem sabe agora ele a estaria esperando? Reclinado, ansioso, sonhando, junto ao telefone?
Mas a mãe de Anita não era nada gentil. Tal uma madrasta malvada, deixara a Cinderela sem telefonar e sem sua tão amada e odiada internet. Como poderia agora saudar os amigos virtuais e os corações on-line?
Encolhida na cama, ela esperava as lágrimas, mas o peito frio e os olhos secos não seriam capazes de tal confissão. Ela era mais forte do que todos, e mais sábia. Ela tão emocional e mesmo tão áspera.
Não percebeu o olhar que atravessa espelhos e distâncias, viajando na pele amorenada, nos cabelos de ébano, nos olhos entreabertos, entre a consciência e o sono.
Não notou quando toda uma face emergiu da superfície prateada, toda uma caricatura de devoto, toda um máscara de amoroso devoto.
Devotadamente se aproximou e beijou os pés desnudos da Deusa adormecida.
Ele sentiu o despertar fascinado daquela tão frágil, ele despojado de roupas e sem disfarces. Toda a nudez do devoto flagelado, todas as feridas expostas por amor. O vulto esguio do Senhor do Sono.
Ela, a Anita de nossos sonhos, sugou um beijo dos lábios espelhados, tal o Lago diante de Narciso, tal Psiquê nos braços de Eros. Um beijo, apenas. E ela crendo estar num sonho, ainda. Doce delírio, este sonhar, maravilhosa loucura, este delirar!
O devoto aos pés da Deusa, e a devoção de suas carícias, seus beijos ardentes, a percorrerem seu peito e volteios da orelha, e recônditos da nuca. Lábios deslizando nas cascatas dos cabelos, luzidios e caudalosos.
Leves mordidas nos mamilos arrepiados, leves lambidas nas feridas abertas, saliva e suor nas fendas do corpo e da alma. Desejo invadindo reentrâncias, desejo penetrando lacunas, lascívia desbravando meandros, arrepiando a frágil pele dos sonhos, dos orgasmos impensáveis, dos delírios impronunciáveis.
Até que nos ápices da loucura, cavalgando nas brumas de glória douradas e espumosas, junto à Deusa e às Virgens Guerreiras, passos suspeitos se aproximam dos aposentos e uma presença, jamais solicitada e aceita, se pronuncia, não antes do jovem amante, devoto e espelhado, mergulhar novamente na superfície refletora de imagens e íntimos desejos.
Abr/05
Leonardo de Magalhaens
e é simplesmente o mergulho no perfume da heresia, a exalar o espelho d´água do cosmos
ResponderExcluironde nos estrelamos, anita que somos.
saudades de ti, poeta.
meuabraço,
delamancha