Literatura e Mercado
Literatura é Mercadoria?
O que é Literatura? O que é produto? O que é mercadoria? Questões que assombram as Ciências Humanas. Assombram os pobres literatos.
É possível vender-se uma narrativa? É possível comprar um visão de mundo? Compra-se livros, não enredos, não testemunhos. O livro é mesmo mercadoria, é algo feito para vender. Algo que foi produzido, teve gastos para ser produzido, e quem produziu quer vender com uma margem de lucro.
Mas não falamos de livros, e sim de Literatura. O que é importante na Literatura? A quantidade ou a qualidade? Ter muitos autores é ter boa literatura? Um certo país A ter dez prêmios Nobels e outro, B, apenas um – esta cota estatística define que o país A tem melhor Literatura que o país B ?
A quantidade de feiras, bienais, congressos, etc, todos estes eventos definem que temos uma boa Literatura? Divulgar muito e quem vai avaliar, selecionar, peneirar ? O próprio mercado editorial? Os críticos acadêmicos? Os críticos-resenhistas de jornais? Os críticos de plantão?
Ou então a literatura enquanto um universo fechado, coisa para eruditos, acadêmicos, para pós-doutores em literatura e linguística. Literatura enquanto um universo para iniciados que desprezam neófitos e amadores. Literatura en2quanto um universo autoreferente – metalinguístico – a gastar páginas para falar sobre... literatura!
Enquanto a literatura é vista enquanto universo auto-referente – segundo os estruturalistas, os pós-modernistas, os adeptos do nouveau roman – a escrita perde o status de testemunho da vida cotidiana, aquele desejo dos escritores realistas que viam a literatura enquanto testemunha das mazelas sociais. A 'pós-modernidade', com seu esvaziamento ideológico – opa, outra ideologia! - apenas serve aos interesses dos poderes constituídos, às Elites.
As mesmas Elites que se sentem seguras, pois se antes a literatura era veículo de crítica, de contestação, de testemunho, hoje é apenas um adorno ficcional, uma fantasia escapista, num universo autocentrado de retórica, semiótica, sintaxe, desprovido de ação sobre o mundo – deixa de re-pensar o mundo através da literatura para se fantasiar outros mundos.
Daí o sucesso de fantasias pós-modernas – bruxinhos, vampiros, magos, aliens, etc – que desviam a atenção dos leitores para outros universos e não mais focalizam a vida alienada nas metrópoles, não mais reinsere o cidadão no jogo político, no cenário social, para reafirmar sua cidadania enquanto participação, enquanto detentor de informações.
O leitor pós-moderno sabe o nome de todos os personagens de uma série épica de 7 romances – mas desconhece os vereadores, os juízes da comarca, em suma, os donos do poder. Sabem tudo sobre os feitiços do bruxinho – mas nada sabem sobre as mistificações dos políticos corruptos locais.
Literatura é Mercadoria
Para as editoras, sim, literatura é igual a dólar, lucros e cotação na Bolsa. Para as feiras, as bienais, os congressos, que geram publicidade, atraem turistas, não importa muito a qualidade, mas o retorno financeiro – pois, afinal de contas, dinheiro foi investido, alguém patrocinou, alguém espera o lucro.
Nos Estados Unidos, percebemos o quanto a cultura é um mercado voraz. Tudo é aproveitado. Quando um autor lança um best-seller (ou seja, livro na lista dos mais vendidos) não apenas os livros são vendidos. Há toda uma marca registrada em jogo. Livros , músicas, filmes, animações, séries televisivas, brinquedos, bonecos das personagens, jogos eletrônicos. Ou seja, todo um merchandising de produtos gerados para o consumo supérfluo. Tudo é aproveitado. Livro é apensa mais um item na lista de vendas.
Seja best-seller de bruxinho juvenil, ou vampiro universitário, ou contos-de-fadas high-techs, tudo é vendável, é feito pra ser vendável. O filme aumenta as vendas dos livros, os livros aumentam as vendas dos jogos eletrônicos, tudo gera lucros para a indústria cultural. Existe para o lucro em série.
E os autores realmente se pautam por objetivos estéticos? Ou entram n embalo das vendas? O autores realmente escrevem? Pois autor que segue os eventos – feitas, bienais, etc – acaba por não ter nem tempo de escrever...
A questão da 'segmentação de mercado' é explícita quando autores escrevem apenas para um determinado público consumidor – de acordo com a demanda. As editoras investem num tipo de leitor – esoterismo, novelas, culinária, etc – e somente produzem livros para aqueles que tipo de público.
Temos, assim, autores para jovens, ou para esotéricos, ou para GLS, ou para cristãos, ou para fãs de duendes e bruxinhos, ou de vampiros teenagers e cavaleiros medievais com espada laser. Autores que ganham com a auto-ajuda (ajudam eles mesmo, claro) ou receitas culinárias. Tem mercado consumidor para estórias de aliens vegetarianos? Então logo aparece um autor especializado em escrever enredos mirabolantes com os tais aliens vegetarianos.
Literatura NÃO é Mercadoria
A Literatura está além do livro para aqueles que escrevem, realmente escrevem, artisticamente, e não para os que fingem escrever, ou escrevem como fiéis ghost writers pagos pelo poder editorial.
Ao artista, enquanto esteta, interessa mais a qualidade do que a quantidade, pois ele/a é guiado/a por critérios estéticos e subjetivos que estão além do objeto-livro. O livro é apenas o suporte material de uma ideia.
Ao verdadeiro escritor a literatura é um testemunho e ao mesmo tempo um exercício de imaginação, um retrato do cotidiano e ao mesmo tempo uma superação do comum através de uma forma artística de expressão.
A verdadeira literatura não está nas estantes nem nos eventos mas onde autores e leitores se encontram diante de um livro aberto – ou blog acessado. A literatura seria o conjunto dos textos em si-mesmos numa perspectiva de contexto (tanto aquele do autor quanto aquele/s do/s leitor/es) e de expressão autoral.
A literatura é obra artística, não deve ser confundida com o produto livro. Produto este que gera trabalho e renda para revisores, diagramadores, ilustradores impressores, editores, distribuidores, burocratas da cultura, etc. Produto que se justifica enquanto houver demanda.
Se o livro, a coisa, é produto – tem preço do papel, tinta, impressão, e o serviço agregado de todos os profissionais antes citados – e é comercializado para abater os custos e até gerar lucros, a literatura enquanto texto só tem valor estético, não de uso. A literatura não visa a utilidade segundo critérios mercadológicos, preocupado com o produto livro.
Perguntam-me, às vezes, por que ainda não publiquei textos de minha autoria. E respondo: 1/ não tenho recurso para arcar com os custos da publicação; 2/ se tivesse, eu hesitaria em lançar outro produto no mercado. Seria até incoerente de minha parte, uma vez que desconfio do mercado e desprezo o sistema capitalista de produção de mercadorias.
Afinal, vender várias edições de um livro pode significar marketing pesado ou capa chamativa, não exatamente qualidade estética do texto em si mesmo. É a edição, a brochura ou encadernação que está à venda, não o Texto – este pode ser copiado, xerocado e distribuído, tal como faziam os poetas marginais da 'geração mimeógrafo', que aboliam a Indústria Cultural. Como? Os autores se aproximavam dos leitores, e dispensavam os intermediários.
Quando a literatura é um testemunho, é um espelho ficcional do vivenciado, quando se permite uma crítica dos padrões e inércias sociais, em suma, quando é útil ao artista e à plateia, além da Estética, a literatura foge ao imperativo de mercadoria, a arte literária passa a ser um valor compartilhado, criando laços artísticos, e até afetivos, entre as várias vozes da criação, para mudar, senão o mundo, ao menos as vidas diretamente envolvidas na vivência literária.
Na ânsia de retratar a realidade – a vida cotidiana, com suas banalidades e padronizações – segundo aspectos estéticos (forma & conteúdo; figura & fundo), a ficção literária repensa a vida re-configurada, e, no contraste, percebemos melhor o vivenciado.
Em suma, escrever sobre o mundo é repensar o mundo e a condição do/a Autor/a no mundo, no quanto se pode ser livre e o quanto se é determinado por contextos (que vão emoldurar o texto!), e o quanto se pode escapar (ou flutuar acima) do contexto – pois muitos artistas rompem com o contexto, tornam-se 'extratemporâneos' – vide o exemplos de Nietzsche e Kafka – somente compreendidos uma geração depois.
O artista não vai criar a partir do Nada – há uma vivência, uma época, um espaço – que fornece elementos para a Escrita. Diante da Indústria Cultural só o artista pode criar um simulacro, enquanto imagem direta ou fantasia, enquanto imagem invertida. Pode descrever sua época, seu país – ou pode transitar por outra época, outro país, a criar imagens da alteridade, dos mundos possíveis, o que poderia ter sido, o que ele/ela esperava – as expectativas e frustrações.
A livre criação pode confirmar o mundo do vivenciado ou pode refutá-lo, desconstruí-lo, ao criar mundos alternativos, universos paralelos, utopias e distopias, elementos fantásticos, mitológicos, folclóricos, em suma, pode recombinar, refundir, reinterpretar peças do 'mundo concreto' na tessitura ficcional do texto literário.
É esta tessitura em si, com seus valores estéticos intrínsecos, que deve ser observada, analisada, comparada; e não em função de um contexto, uma época, um panorama social, caprichos autorais, todos estes elementos extraliterários, em segundo nível, e muitas vezes inacessíveis.
A Arte visando o mercado, a obra de arte enquanto produto/mercadoria, eis o que presenciamos na modernidade de forma cada vez mais industrial. Fato já analisado por Walter Benjamin no ensaio “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutividade Técnica” (1936) que mostra o quanto o modo de produção capitalista – fordista, taylorista, toyotista, etc – adentra o universo artístico, que passa a aceitar obras feitas em série como se fossem embalagens de leite em pó. (A crítica à Arte-produto, à arte-padrão também foi feita de modo artístico – ou anti-artístico, ou parodístico, por iconoclastas tais como Salvador Dalí, Marcel Duchamp e Andy Warhol.)
Acontece que a comercialização desonra a arte, apenas acelera o processo de alienação, com a superficialidade da produção em série, padronizada e de fácil digestão. A Arte perde o status de um olhar sobre o mundo – um olhar crítico e iconoclasta – e torna-se um mero enfeite para o mundo luxuoso de alguns – e então se completa o que os capitalistas desejam: a mercantilização de todas as atividades humanas. Coisa já prevista por Karl Marx, em “Manifesto Comunista”. A burguesia não hesita em comercializar tudo, até a própria alma (isto é, se a tivessem...)
Sendo mais um produto, mais uma mercadoria, a Arte (aqui, mais especificamente, a Literatura) perde a autonomia. Os literatos passam a depender de mecenas, políticos, religiosos, burocratas, para conseguirem verbas (não apenas leis de incentivo à cultura)para editarem seus livros, atualizarem suas homepages, realizarem eventos, lançamento. O literato assume uma condição de bobo-da-corte, nada mais.
Quanto à autonomia da arte, o poeta romântico alemão Heinrich Heine dizia, “Sou a favor da autonomia da arte; ela não deve servir de criada nem à religião nem à política. Tem seu objetivo em si mesma, como o próprio mundo.” (in: SAFRANKI, Rüdiger. Romantismo – uma questão alemã, 2010.)
A Arte precisa ser autônoma, mas não desligada do contexto, não ser alienada. Pois deslocada do contexto, a Arte é apenas um jogo estético, uma atividade inútil, fenômeno em segundo plano – expressão necessária para os artistas e fonte de renda para os negociadores da arte.
No mundo da pobreza e da miséria, o poeta esteticista (ou parnasiano, ou nefelibata) é um abstrato devoto de uma arte culta e elitista. Ele não é capaz de compreender os poetas populares, p.ex. da literatura de cordel, mais espontânea e não acadêmica. O poeta erudito é muitas vezes um conservador. Um romântico conservador. Pode até ser anticapitalista, mas não é progressista. Tem consciência social, mas se alia às idealizações estéticas, o mundo abstrato. Preferiria viver numa idade média idealizada. E justamente contra estes que se levantam os poetas realistas, os poetas socialistas.
Porém, a Arte apenas engajada também é indesejada, posto que cede espaço às questões não-estéticas. O problema dos revolucionários: a falta de bom gosto, isto é, apreciação estética. (Aliás, coisa que nem os burgueses possuem.) A plebe no poder aboliria o Hino Nacional - uma peça sinfônica, resquício da nobreza - e colocaria no lugar uma canção de axé, baião ou de funk carioca. É o problema de um socialismo nivelado por baixo é a abolição da cultura 'culta', erudita, e não a ascensão do povo até a erudição.
Tanto os parnasianos quanto os realistas-socialistas, tanto os esteticistas quanto os engajados, tem todo direito a expressão, mas ambos os grupo se prendem a questões limitadoras, as obras de arte não alcançam um status atemporal e de qualidade. Aliás, poucos autores conseguem atravessar séculos, a seduzir os leitores, a transmitir suas mensagens. Pois quanto mais limitada um obra – seja no tempo, ou na estética – mais difícil é para ser 'digerida' em outra época e outra visão estética. São as obras ditas 'datadas'.
Aqui, defendemos a livre expressão. Tudo pode ser publicado – até obras de Sade e Nietzsche, até Hitler e Stálin – tudo precisa ser permitido nas artes – até a anti-arte, a poesia-coisa, a música breganega, o funk sexista, pois a limitação da expressão é sempre constrangimento, coação, motivos para 'santas' inquisições, seja de católicos ou crentes, Direitas ou Esquerdas, que perseguem as expressões ditas não-convenientes, até 'subversivas'. As 'inquisições' não hesitam em estabelecer seus índices de livros proibidos.
Livre-expressando – não para o mercado, certamente – a Literatura (ou literaturas, em pluralidade) frutifica(m)-se na miríade de vozes – narrativas, cosmovisões de personagens, testemunhos de época – que valem enquanto ficções da realidade, ou concretizações da fantasia, tanto intratextual quanto extratextual. Não basta ser uma estória ou testemunho fascinante, precisa também ser bem escrita, com enredo internamente convincente. E não basta ser bem escrita, é preciso dizer algo, revelar algo, tirar o véu das obviedades e fazer repensar o Eu – e o Nós – lançados no mundo.
Ago/11
Leonardo de Magalhaens
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sobre a Indústria Cultural em
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