Sobre “Uvas Verdes” (Anome Livros, 2009)
crônicas de Luiz Edmundo Alves
Crônicas líricas desabrocham no cotidiano
A Crônica
Enquanto narrativa curta feita de impressões e considerações sobre assuntos da vida cotidiana, a crônica, no formato que entendemos hoje (antes tratava-se de 'crônica' de feitos heroicos, de soberanos, reis ou sobre as viagens), vem a se destacar no século 20, com o advento da imprensa escrita, com a ampla circulação de jornais no mundo, e no Brasil.
Os leitores recebiam junto com o breakfast, o desjejum, um jornal com notícias e pequenas doses de literatura no formato crônica. Fatos do dia a dia com um olhar mais irônico, com estética mais literária, ainda que conservando algo de jornalístico. A crônica se exibia enquanto produto dúbio, um mestiço. Texto com recursos literários e o teor leve (e descartável) do discurso jornalístico.
Os assuntos mais diversos eram encontrados nas crônicas. Eventos sociais, obras literárias, decisões políticas, catástrofes, em suma, tudo era tematizado em textos curtos, convenientes aos leitores superficiais e apressados. Afinal, literatura é coisa de gente para quem pouco valor tem o dito 'time is money', é gente que não quer enriquecer.
Mas as crônicas não eram superficiais, antes atuavam como uma espécie de 'introdução ao assunto', um preâmbulo de conversa amiga, para que depois aqueles que passassem a apreciar literatura pudessem degustar bons livros. Justamente muita gente começou a apreciar as obras literárias graças aos textos das crônicas.
Assim foi um sucesso. As crônica destacaram muitos autores de outros gêneros, além de consagrar autores novatos, dedicados antes à escrita em jornal. Muitos autores se mostraram. Assim temos crônicas de Manuel Bandeira, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rubem Fonseca, também, numa segunda geração, Mário Prata, Luís Fernando Veríssimo, Lya Luft, Affonso Romano de Sant'Anna, Arnaldo Jabor, Adriana Falcão.
Levantamos aqui um destaque para o último nome citado, uma interessante cronista atual: Adriana Falcão, autora do curioso “O Homem que só tinha certezas” (2006), que mescla um certo lirismo a doses de ironia diante dos fatos mesquinhos do cotidiano. A paixão, a perda, os desencantos, a auto-piedade. Eis os temas prediletos da autora. Daqui a pouco falaremos mais sobre isso.
Mais sobre o gênero 'crônica'
Uvas Verdes
Temos um volume de crônicas sobre o cotidiano e a literatura, ou a literatura no cotidiano, ou o cotidiano literário, como queiram. Tudo misturado. Não há um desejo autoral de ordenar por assunto. Esta ordenação cartesiana é mais uma 'ideia' do crítico, criatura ordenadora par excellence. (O crítico é o médico-legista da arte. Disseca as obras para rotular as vísceras, ou componentes estéticos...)
Podemos destacar em “Uvas Verdes” algumas temáticas, ou eixos temáticos, que possibilitam uma leitura mais atenta da obra. Temáticas que merecem um momento de reflexão (e/ou ironia) por parte do autor, o poeta e fotógrafo Luiz Edmundo Alves que já lançou por meio do selo Anome Livros duas outras obras que merecem leitura: “Na Contra Luz” (2002) e “Fotogramas de Agosto” (2005).
Temáticas que interessam ao leitor na medida em que deslocam um olhar ao universo autoral (não apenas para um biografismo) ao apresentar algumas perspectivas (e contradições) na condição do literato que observa outros literatos, quando a literatura fala de … literatura.
Obras & Autores
Temos o autor que fala de autores, até ao biografismo, que desvela os bastidores da criação literária, de uma geração a outra, em panoramas de época, em retratos algumas vezes sentimentais, outras vezes irônicos de ícones da literatura.
É um olhar que encontramos em outros contemporâneos. Vejamos, p.ex., o mineiro Ronaldo Werneck, autor de “Há Controvérsias”, recheado de crônicas sobre o cotidiano e sobre o fazer literário – tanto a escrita quanto o escritor. Nomes e sobrenomes se amontoam como uma pilha de inventários sobre uma mesa de burocracia – o que significam? Nomes autorais? Ora, a literatura não se faz de autores, mas de textos. Fala-se tanto do(s) autor(es) quando devia-se falar do(s) texto(s)... Mas as crônicas sobre literatos são até divertidas (enquanto os literatos, bem, eles já perderam a graça... deixaram isso para os hodiernos humoristas do stand-up comedy...)
links para Ronaldo Werneck
Pois o autor Luiz Edmundo Alves sabe diluir considerações, altamente pessoais e personalísticas, ao longo de várias crônicas, onde aborda a poesia e o fazer poético. Em “Paixão e Poesia” tece divagações psicanalíticas sobre arte e desejo, criação e sublimação, o erótico desviado para o estético. … A arte enquanto desvio do erótico? Mas não seria erotizar a vida através da Arte? Certo, mas não vamos discutir psicanálise aqui. Deixemos este desconforto aos profissionais.)
“Tomando esse conceito freudiano, a Arte é a sublimação perfeita. Fazer poesia é sublimar, é depositar energia em uma outra utopia.” e também, “Ainda hoje a Poesia está associada ao mundo sensível, ao 'mundo das paixões', ao desgoverno das emoções.” (p. 8)
Considerando-se isso, neste sentido o significado de poesia está mais próximo daquele de Rimbaud, “o desregramento de todos os sentidos”, que nada mais é do que o ideal dos poetas do Sturm und Drang alemão, quando os pré-românticos exaltavam a emoção acima da razão, esta tão querida dos classicistas e iluministas.
Ainda em exaltação, a crônica “Gertrude Stein” ressalta o contexto , isto é, época, “Boa parte da história da arte moderna, especialmente pintura e literatura, passa pela Paris do início do século XX.” (p. 9), mesmo que considere traços de biografismo, a origem e genialidade de cada um. As amizades possíveis e impossíveis, os encontros e desencontros, tudo é detalhe de um painel de época, uma “geração perdida” (“Lost Generation”) ali pós-Primeira Grande Guerra, a incluir Stein junto a Hemingway (autor de “O Sol também se levanta”) e Fitzgerald (autor de “O Grande Gatsby”). Todos autores egocêntricos e ambiciosos. Imaginem a guerra de egos.
Em “Aventuras de Adão Ventura” encontramos o poeta da negritude enquanto figura do poeta humilde, o palestrante que ajuda a montar o palco e a aparelhagem de som. “Adão já era poeta respeitado e premiado, autor de diversos livros, advogado do serviço público. Entretanto nada disso impedia que fosse sempre humilde e cortês com todos.” (p. 14) Parece que humildade e cortesia é sempre exigida do poeta, não que ele/ela escreva bem. Também não se considera um bom poeta, com voz e estética própria, mas se é o 'pobre' poeta, ou o poeta negro ou poeta índio, ou poeta latino-americano, hispânico. É a questão dos 'estudos culturais', ou Escola do Ressentimento (como a denomina o scholar Harold Bloom) que dá ênfase não ao quesito qualidade, mas se o/a autor/a é branco ou mestiço, rico ou pobre, aristocrata ou plebeu, classe média ou excluído.
“Madeleines com chá de tília” é a crônica onde o olhar investiga o universo proustiano, com reminiscências de uma memória caprichosa que seleciona e exuma fatos do passado, como um arquivo de relíquias rearranjadas arbitrariamente. E outros autores que re-trabalham o tema 'infância' (ou antes: 'lembranças da infância') Não a infância, mas a memória. Temos a memória ou é a memória que nos tem? Voilà! Eis uma boa questão.
Por que alguns fatos ficam registrados nos 'corações e mentes'? E outros se desvanecem no tempo e no espaço? Para resguardar as emoções , além de amostras do bom-gosto, o autor se rende à mania de listas. Um ou outro rol de livros e objetos culturais que povoam as lembranças afetivas, que centralizam a identidade do ser. (Do tipo, 'Quem sou eu? O colecionador de bens cultuais') Assim é na crônica “Listas e Livros que fazem o coração bater mais forte” como uma espécie de manual ou catálogo de livros/álbuns/loucuras que se deve ler/ouvir/fazer antes de morrer.
A crônica “Rosa no redemoinho...” rememora e re-contextualiza o autor dos sertões místicos das gerais, o médico e diplomata, criador-destruidor de vocábulos e léxicos, sintagmas e morfemas, nas horas vagas, João Guimarães Rosa (1908-67), revisitando as influências do criador de Riobaldo na cultura após os 50 anos da publicação de “Grande Sertão: Veredas” (1956).
Mas o autor não hesita em confessar 'certo ceticismo' com relação à fortuna crítica do gênio mineiro de Cordisburgo, diante da proliferação de teses e outros academicismos, enquanto Rosa continua um tanto distante da cultura popular, a mesma que tanto serviu de influência para o plano de fundo da obra. Parece que os acadêmicos sequestram o 'clássico' Rosa...
Também no tema sertão, temos a presença do cineasta da 'câmera na mão e uma ideia na cabeça', o baiano Glauber Rocha (1939 - 1981), em “Glauber vulcão de Vitória da Conquista”, dono de um estilo que revolucionou a época (com o 'Cinema Novo' nos anos 1960), mas que seria deslocada hoje (o que prova que em alguns casos a obra de arte é mesmo datada, tem um contexto histórico, e um peculiar sentido dentre deste contexto)
O que não impede de Glauber ter dito algumas verdades, que incomodam até hoje algumas mentes pouco tolerantes, a saber, os poetas nefelibatas, os estetas, os adeptos da 'arte-pela-arte', os que desprezam a política (e deixam o poder na mão dos que se 'interessam' por política), os que desprezam a arte engajada, em suma, os bons e velhos conformados de cada geração.
Triste, mas é verdade, ao se constatar que “O Estado é mais forte que o Poeta” , quando, num poder político autocrático, os poetas e os literatos são os primeiros a sofrerem o exílio. É também verídico que “A História é feita pelo povo e escrita pelo poder.” Um poder que se diz emanar do povo, mas que o povo desconhece. Antes se o clamor popular incomodar, o governo pode querer simplesmente... 'destituir' o povo.
Na crônica “Mário Faustino” relembramos a presença crítica que elevou sua voz na aurora do Concretismo entre nós, e atacou e desancou alguns bons literatos, apenas para ver-se bem precocemente recolhido ao túmulo. Mário Faustino preocupava-se (digamos demasiadamente) com um conceito de poesia (coisa que sabemos não existir) e por isso tinha dificuldades em entender as novidades. O problema, hoje, nem é saber o que é poesia – antes, é saber o que NÃO é poesia!
Alves aqui até reconhece o trabalho de Faustino, mesmo com os exageros. (Entre estes o fato de não considerar o talento de um Paulo Mendes Campos) “Em qualquer caso a leitura era mesmo crítica, eventualmente cruel, apontando bons e maus versos. Obviamente são leituras polêmicas e muitas não se sustentaram historicamente.” (p. 83)
“Adágio para o Silêncio romance de Luís Giffoni” é uma tentativa de resenha (não crítica literária) sobre a obra homônima do escritor mineiro Luís Giffoni, autor de “Os Chinelos da Raposa Polar”(20020, coletânea de contos, alguns interessantes (por exemplo, “Sonho Sem Destino”, como um pesadelo de Hoffmann ou Poe). Mas tratam-se de narrativas curtas sem pretensão. Lembram Luiz Vilela e até Dalton Trevisan, mas sem o mesmo brilho (entenda-se: brilho pelo estilo simples, despojado, límpido; pois ninguém mais escreve contos ao estilo de Machado de Assis ou Mário de Andrade)
No gênero romance, entretanto, Giffoni não convence. O romance exige muito do autor. E os autores são algo meio preguiçosos – ou não têm talento. Ou então vivem de palestra em palestras, ou frequentam feiras de livro. Sobra pouco tempo para escrever, então... Escrevem porque o editor pediu, e adiantou uma grana.
Na crônica releva-se o elogio ao novo romancista – que não se sustenta 'esteticamente', pois Giffoni pode até escrever bem, mas não convence. Aliás, pouca gente 'convence' hoje em dia, em época de predomínio da indústria cultural, tanto lixo publicável e publicado, que sobra pouco tempo para lermos as pérolas (onde elas estão, hein?)
a crônica na internet em Tanto
Outra resenha? Temos “Afrodite de Isabel Allende” como resenha de livro da escritora chilena, célebre com seu genial “A Casa dos Espíritos” (“La Casa de los Spíritus”, 1982), que tematiza a tentativa de socialismo democrático no Chile, nos anos 1970, e que acabou numa sangrenta contra-revolução apoiada pelos 'democráticos' Estados Unidos. A autora Isabel Allende é realmente uma voz autêntica no mar de medíocres que povoam a literatura hispano-americana atual (pois o Eduardo Galeano anda sem fôlego nos últimos tempos e o Gabriel García Márquez nada criou de novo desde o realismo-mágico ...)
Continuemos. “Biografias e Jornalismo” trata sobre os bastidores do jornalismo no Brasil, ao resenhar livros de Fernando Morais e Ruy Castro, além do televisivo Pedro Bial, sobre os nossos pioneiros da comunicação. Outro literato que abordou os bastidores jornalístico e literários – mais especificadamente de Belo Horizonte, Minas Gerais – é Humberto Werneck, autor de “Desatino da Rapaziada”, 1992, obra que lança um olhar de documentário, simples e irônico, sobre os nossos literatos. Os bastidores dos primórdios da nossa mídia impressa, da nossa mídia falada, em suma, da nossa indústria cultural.
Continuam as resenhas. “Balzac” é sobre o autor do ciclo de romances “A Comédia Humana” (1829-47), o Honoré Balzac ambicioso retratista verbal da sociedade francesa do início do século 19, num corte de cima a baixo, a englobar nobres, burgueses e proletários.
Já a crônica “Camus” lembra a importância do filosófico romancista francês-argelino Albert Camus (1913-1960) com a importante (e essencial) questão do suicídio, ou antes, 'a vida merece ser vivida?', o quanto somos cúmplices de um mundo de absurdos? “O absurdo é um sentimento, enquanto queremos encontrar no mundo ordem e razão e só encontramos desordem e irracionalidade. Como a vida é absurda. Como um inesperado fato cotidiano pode mudar os destinos, nos levando a matar, ou morrer.” (p. 97)
Sobre a escrita, sobre a criação literária
Em “Pasárgada, a busca” encontramos uma referência – ou intertextualidade – ao poeta modernista Manuel Bandeira e seu universo paralelo, o paraíso pessoal e privativo chamado 'Pasárgada', que tem emocionado tanto os outros poetas igualmente nostálgicos, cada um com sua Pasárgada idealizada, desejada, ocultada. Cada um com sua fórmula da felicidade, da satisfação, da realização pessoal. Numa época de individualismo claro que cada um vai imaginar o paraíso ao seu bel prazer. O paraíso ao desejo do consumidor, encomendado e entregue à domicílio.
Mas o mais interessante é o final. Enquanto cada dia me convenço que o inferno é aqui (pois 'o Haiti é aqui'?) e que somos o 'inferno' uns dos outros, quando cada um corre atrás de seus próprios interesses, a aceitar o outro desde que o outro se 'encaixe' em nossos interesses, pois bem, o autor acha justamente o contrário, a ponto de desistir da procura. Pois se convence que o Paraíso é aqui. Isto é ou não é otimismo? Mais otimista só mesmo o Cândido de Voltaire.
link para “Vou Para Pasárgada”
mais poemas de M Bandeira
meu ensaio sobre o “Cândido” de Voltaire
As crônicas “Arte cura?” e “Poesia” abordam sucintamente o fenômeno poético-lírico, numa leitura bem pessoal. Não se trata de tese ou teoria. Antes as constatações nascidas da própria práxis literária (considerando que poesia é literatura, conceituação não é aceita por muitos...) Qual o valor da Arte? Tem utilidade? (Ainda mais num mundo burguês utilitarista e funcionalista...)
A poesia não vem a ser um consolo ou torre-de-marfim. Não resolve os problemas nem paga as contas do mês. A poesia é mais uma espécie de desabafo. Mas, um momento! A Arte não é mero desabafo – é mais uma questão de estética. De ordem na desordem , de razão na emoção. Afinal, o autor escreve quando a febre passa... ('O poeta é um fingidor', etc) Esta contradição – falar sobre a emoção já sem a emoção – está presente em toda obra – escrita, pintada, representada, etc. O artista não vive sempre em transe criativo, afinal tem uma vida cotidiana para (sobre)viver e suportar. Precisa pagar os impostos e colocar o lixo pra fora...
Algo precisa despertar no Artista o desejo criativo – seja uma indignação, uma paixão, uma perda, etc - só depois o Autor se ocupa com a Obra. E poderá se realizar na criação, se identificar com a obra. 'Quem sou eu? Sou o autor A do romance X.' O Autor tem valor, assim, a partir da obra. (O contrário é patético: vou ler o romance X porque é do autor A ...)
“Fazer poesia não afasta minhas angústias, nem traz minha felicidade. Mesmo assim vivo, e viverei, momentos inesquecíveis com a poesia. A vida é surpresa, é a constante possibilidade do inimaginável. O que seríamos sem as contradições da Arte e de nossa própria existência?” (p. 68)
Estilo é coisa de somatórias. É amálgama de educação e intuição. Não basta ser um Jean Genet, pois foi preciso que o ex-presidiário tivesse contato com a escrita genial de um Marcel Proust. Pronto! Reinventou-se a pólvora. A intuição e o talento de Genet foram acesos pelo contato com a Escrita. Então ele se percebeu fecundado. Assim é o poeta.
Não basta fazer pós-doutorado em Teoria da Literatura se não tiver talento, e não basta ter talento se não se aprimora ao ler os clássicos (ou, se não der, leia ao menos Fernando Pessoa, que já está de bom tamanho...), em suma, não basta ter intuição, não basta ter erudição. Intuição e conhecimento precisam dialogar, precisam copular.
Falemos das crônicas “Livros I” e “Livros II”, onde se demonstra que o bom escritor é um bom leitor. O escritor escreve os livros que gostaria de ter lido. ('Ah, não existe este livro? Então vou escrevê-lo!') Mas antes de escrever é recomendável que o escritor dê uma olhada no que já foi escrito. (Tem gente escrevendo 'originalidades' as quais Whitman já escreveu mais de cem anos antes...) É preciso – e é sensato – que o autor se considere em dívida com os autores de ontem, com os ícones, com as estátuas de bronze nas praças. Podemos arriscar uma linha sem pensar em Drummond, Nava e Rubião?
“Os livros são como tijolinhos que ajudam na construção de nosso imaginário, de nosso intelecto, de nossa linguagem.” (p. 79)
A criação literária surge como um diálogo entre autores – os mortos e os vivos, os vivos entre si. Assim seria resumir o 'dialogismo' de Bakhtin. Seria assim mais fácil entender a intertextualidade (não quer dizer 'plágio', entendam bem), quando nem dado texto encontramos pistas, indícios, de outros textos. Uma voz alheia habita o meu texto. A emoção de outro – veiculada pela linguagem, compreensível ou não – é canalizada para a minha própria emoção. Eu também posso chorar a morte de Lenora. 'Never more!'
“A emoção afogada na pressão cotidiana e recuperada pelas lembranças, pelos sonhos, e pelo desejo (ou pela falta dele). Os grandes livros são feitos dessas emoções, que podem ser moldadas e relatadas pela linguagem. Eis a Literatura.” (p. 79)
Ainda na temática Arte / Literatura temos “Concretismo” sobre a última vanguarda do século 20, o movimento concretista após a Segunda Guerra Mundial (assim como tivemos o Modernismo – a saber, Futurismo, Dadaísmo, Cubismo, Surrealismo – após a Primeira Guerra Mundial), num clamor que pretendia uma releitura da poesia enquanto expressão verbivocovisual, isto é, a poesia enquanto palavra, sonoridade e objeto visual. A poesia escrita, falada e desenhada. Uma ressignificação da criação não mais segmentada, mas integrada.
“Obviamente a controvérsia foi grande e a poesia brasileira passou muito tempo se debatendo entre ser ou não ser concretista. Muitos poetas se sentiram pressionados: era a morte do lirismo na poesia? Outros chegaram a pensar que aquele fosse o rumo definitivo da poesia, até surgir outro movimento que proponha novos conceitos.” (p. 103)
A “Poesia Voa” seria uma espécie de 'profissão de fé'? “A poesia continua me proporcionando momentos de beleza.” (p. 106) Onde a arte poética seria uma forma de sobreviver diante da monotonia do cotidiano. Aliás, um cotidiano também tematizado nas crônicas. A poesia seria transmitida entre os poetas, ou apesar dos poetas. A poesia nada mais que se utiliza dos poetas? Mas o poeta aqui suporta os poetas. (Ainda não foi afetado pelo nojo, pela náusea diante dos que se utilizam da poesia...) “Gosto de olhar o poema na página, gosto de ler poesia na solidão. Mas gosto de falar e de ouvir poesia, gosto de gente.” (idem)
O Cotidiano
Aqui, nesta temática, podemos comparar com outros autores da crônica, que adoram falar sobre o nosso cotidiano. Rubem Braga e Fernando Sabino são clássicos. Atualmente, destacamos o olhar da cronista-contista-roteirista Adriana Falcão, com uma sensibilidade e ironia que estava faltando.
Uns links para Adriana Falcão
Sobre a vida na cidade, sobre os lugares e emoções, temos a interessante “Lugares Afetivos” (ver Pedro Nava, o memoralista, nosso Proust, com seu conceito afetivo de 'geografia sentimental') onde os lugares ganham significação (ou sentido) a partir dos sentimentos que geram no olhar do sujeito. Uma paisagem carregada de subjetivismo... A padaria da infância, o barzinho onde explodiu o primeiro beijo, o bosque das brincadeiras juvenis, o quarto da empregada, a praia do verão passado, não importa, tudo é visto com outros olhos. O que parece apenas um banco de praça pode ter sido o cenário de uma declaração de amor.
Mas, sem dúvida, marcante é a crônica-conto “Na poltrona ao lado”, que podemos comparar, no estilo, com os ótimos (e afiados) diálogos de um Luiz Vilela, ou de um Luiz Fernando Veríssimo. Um diálogo que segura tudo, que cria o cenário de tudo, que sugere tudo. [Depois de fechar o livro é esta crônica que me acompanhou o dia todo.] Não só o enredo – fantasias com desconhecidas em viagens são lugar-comum – mas a fineza, a classe, a sutileza com a qual o texto nos conquista. Simples, mas envolvente. Acontecerá algo entre o viajante e a jovem desconhecida? Uma urdidura de sedução? Uma cena de sexo debaixo do edredom? Um beijo caliente a premiar a expectativa dos leitores? Como é que é? … O lance é mesmo ler a crônica.
Uns links para Luiz Vilela
Uns links para Luís Fernando Veríssimo
Leve e prosaica é também a crônica “Namorados”, sobre o desejo, o sexo, a sedução, enfim, tudo aqui nos atrai desde a puberdade, todo um mundo de descobertas. É difícil se interessar por tal tema e ser original. Amor, sedução, sexo tão temáticas universais e demasiadamente desgastada por mil contos, romances, peças de teatro, etc etc etc
O mesmo quanto a temática de “Nostalgia”, com um certo o olhar para trás, que está conosco desde um prosador como Montaigne – que resolveu falar sobre si-mesmo – e passando por Almeida Garrett, por Virginia Woolf, por Marcel Proust, e nosso Pedro Nava. O próprio autor reconhece isso (“a nostalgia é um tema recorrente”). É difícil ser original e convincente nessa temática. É o velho enigma. Por que temos nostalgia de uma coisa e não de outra? Por que algo é retido na memória enquanto mil outras são apagadas? Por que temos saudades de X e não de Y? O que nos prende ao passado? E se perdêssemos a memória – ainda seríamos nós mesmos?
Falemos de algo original. A máquina de escrever que datilografa suas memórias! A crônica (ou conto fantástico) aqui em “Memórias de Eugênia”, com algo de Kafka e Rubião, ao estilo ‘crônicas de uma máquina de escrever saudosista’! Realmente algo surreal o grau de autoconsciência – e de ciúme recolhido – desta máquina de escrever. (Ah, que saudades da minha olivetti branco gelo...) E se os objetos tivessem consciência? O que diria o meu aparelho de barbear? O que diria a minha cama? O que saberia o meu criado-mudo? Hein?
Pena que o autor não desenvolva mais pérolas neste estilo. “Memórias de Eugênia” (e o diálogo de “Na poltrona do lado”) são os textos mais destacáveis aqui. Significa que lembrei dos textos depois de fechar o livro. Algo que deixa um inquietar, um desassossego. Um suspense. A moça ao lado vai me beijar? A máquina de escrever vai se perder em inconfidências? Eis algo que a verdadeira literatura faz.
Mas parece que o autor prefere a tematização da própria obra, em “Fotogramas de Agosto em agosto”, em “O professor, o aluno e o mouse”, “Uvas verdes ou entressafra e colheita”, “Tapinhas nas costas”, “A nau Tanto”, ou seja, fica a falar sobre si mesmo, sobre a própria obra e perde o rumo. Estava indo tão bem... O próprio autor falar sobre a própria obra é algo difícil. Ora parece auto-elogio, ora falsa modéstia... Falta deslocamento crítico, em suma.
O autor se achar interessante é um problema. Pois a obra é que deve ser interessante. Mas não vamos culpar o autor de “Uvas Verdes”, ele sabe muito bem o que faz (Ele sabe que “eis o sentido da vida: a obra”). Esperamos que no próximo ele desenvolva mais o texto e não os metatextos, os textos sobre o texto, e deixe essa lida para os críticos 'dissecadores', os críticos pedantes, os críticos acadêmicos, os críticos camaradas.
“Uvas Verdes” vale a leitura pela constatação do poder da própria leitura, não pela obra em si mesma. Mostra antes a busca pela literatura – ou seja, alguém se esforça para abraçar a literatura – como uma forma de consolo, de dar sentido à existência sem-sentido, a existência do estar-aí, jogado no mundo, como dizia um amargo Heidegger, sem missão nem carma. Apenas aí, igual entre iguais, confiando no cartão de crédito e no cheque especial.
Vale nem que seja pela constatação, na crônica “Tempo fechado”, dos motivos que movem o autor, a insistência em escrever, em reler, em publicar, em submeter-se à crítica. Quais as gêneses da pena de Luiz Edmundo Alves? O que provoca o autor? (E, por extensão, o que provoca a criação? O que provoca o leitor? O que provoca a crítica?) “Provocado pela falta de sentido e de poesia em nosso cotidiano. Provocado por essa busca, sem bússola, de uma tal felicidade.” (p. 76)
set/11
Leonardo de Magalhaens
Mais links
textos de Luiz Edmundo Alves
críticas sobre as obras do Autor