quarta-feira, 2 de março de 2011

sobre A Infernização do Paraíso - de Rodrigo Leste




Sobre “A Infernização do Paraíso
(Mano a Mano, BH, 2010)
do poeta e ator Rodrigo Leste


“O paraíso está longe, o inferno aqui dentro”


Um Preâmbulo histórico


Vivemos numa nação que tem tudo para ser rica, próspera, desenvolvida e auto-suficiente. Não se trata de uma ilha, não tem um clima único, não é limitada por inimigos em potencial. Não sofre com terremotos, furacões, tufões (ainda que enchentes e deslizamentos sejam comuns e trágicos). Tem uma variedade incrível de ecossistemas e riquezas minerais. Tem acesso fácil  às fontes e montanhas, é farta de chapadas e planícies, e é banhada pelo mar.

Na época do 'achamento' esta terra chegou a ser considerada o 'Paraíso' terrestre. Haviam lendas na época sobre uma terra paradisíaca onde o homem era livre e as riquezas brotavam do chão. O trabalho não era tortura e o prazer físico era livre de culpa. Então os navegantes, advindos da vetusta Europa, começaram a achar que devia ser por 'estas bandas.'

Quando encontraram nativos nus e festivos, e uma quantidade exorbitante de riquezas vegetais (pau-brasil) e minerais (ouro, diamantes), os europeus ajoelharam-se em lágrimas crendo-se no próprio Éden terrestre, no que restou da felicidade num mundo tão decrépito – aliás, por obra do próprio ser humano.

E o Brasil prometia. Vastidão de terras, fartura, clima tropical, povos vencíveis. Várias nações disputaram isso aqui – vieram franceses, holandeses, espanhóis, ingleses – até que os portugueses conseguissem carregar essa 'mina de ouro' para o trono lusitano. Dominar através de um imperialismo cruel, um colonialismo perverso, eis a decisão dos soberanos de Lisboa.

Dividido, fragmentado, rasgado, subjugado por capitanias, províncias, governos-gerais, este país tornou-se gradativamente num paraíso assombrado, num paraíso infernizado, onde a ambição do lucro – através da exploração mais abjeta e burra – conseguiu sugar a fartura da terra ao mesmo tempo em que empobrecia o povo.

É que nada ficava aqui a ser distribuído para o bem-estar coletivo. Nada disso! Tudo era embalado e embarcado nas naus de Sua Majestade rumo a Lisboa e, de lá, rumo a Londres. Sabemos. Era um negócio. Leva quem paga mais. E nesse jogo os brasileiros sequer eram consultados. Os luso-brasileiros que faziam as negociatas formaram uma camada de 'homens-bons' que dominavam o comércio e sufocavam os interesses  do resto do povo - eis uma característica nacional que pouco mudou nos últimos 500 anos.

Para dominar um povo, nada mais fácil do que dominar a Elite deste povo. A ambição da Elite – ao dominar o próprio povo – faz o resto. É assim que os britânicos dominaram a África do Sul, a Índia, a Birmânia, o Egito, o Sudão; é assim que os franceses dominaram metade da África e a Indochina; e os norte-americanos hoje dominam o Oriente Médio.

A transformação do Paraíso em Inferno foi um dos principais temas nos escritos do historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda – autor de obras essenciais tais como “Raízes do Brasil” (1936) e “Visão do Paraíso” (1959) – a indagar como uma terra tão promissora virou este país explorado e avacalhado, decepção para todas as gerações conscientes.

Este é também um dos temas centrais na obra “A Infernização do Paraíso” do poeta e ator Rodrigo Leste, que indignado não poupa esforços para denunciar as explorações – evidentes e ocultas – que minam o nosso destino. O que é a exploração e como se processa. Quem lucra e quais são as vítimas da exploração. Qual deve ser a atitude do Poeta diante da exploração.

O tema – ou o conteúdo – desta obra está acima de qualquer crítica. É de fundamental importância a presença e a voz ativa dos poetas e dos literatos que se preocupam com questões sociais – ao contrário de se elevarem em 'torres de marfim' ou 'cultivarem as flores do próprio jardim' – o que gera apenas uma poesia individualista, egocêntrica e alienada.


Uma vez elogiado o conteúdo – ou a mensagem – vamos nos concentrar na Forma, na Estética, do que se pretende 'poema' Infernização. Terá o Poeta alcançado uma forma ideal para divulgar suas ideias? Terá alcançado êxito em  se expressar de modo a comover os leitores? Onde a Arte e onde a Mensagem devem 'operar' em consonância? A Poesia veicula algum 'conteúdo' além de si-mesma?



Lirismo e Descompassos



É inquestionável que o Poeta tenha algo a declarar. A preocupação de veicular um conteúdo é evidente desde a capa, desde o título (cujo subtítulo é “Mina de Morro Velho: As Vísceras Douradas da Maldição”), como uma espécie de acusação, ou desabafo referente a exploração do homem pelo homem, e a exploração da Natureza pela ambição humana.

É justamente sobre os descaminhos  do ouro que eu quero falar” é a introdução ao assunto: saberemos mais sobre os processos de exploração e vitimização referentes ao garimpo e suas mazelas às populações. Há todo um trabalho de pesquisa e seleção de informações, além de uma 'narração' indignada por parte do eu-lírico.

Na tentativa de 'narrar' o drama e de forma o mais 'poética' possível, cria-se uma tensão entre o 'narrativo'  e o 'lírico', notamos um descompasso entre forma e conteúdo, estética e tema.

Se o tema / conteúdo / mensagem merece nota 10, com toda uma patente indignação diante da exploração do homem pelo homem, da exploração da natureza pelas atividades humanas visando lucro – uma indignação de cidadão consciente, portanto – a forma poderia ser antes prosa ou drama do que poesia ...

Não é poesia – poderia ser prosa, conto ou crônica – a manter o mesmo nível de conteúdo. As partes mais líricas podem ser apontadas – ao mostrarem recursos de ritmo e sonoridade – segundo notamos nas páginas 25, 34, 38, 39, 42, 53 a 55, 63 a 67, 69, 71 e 72. É poético justamente quando o 'jogo de palavras' – com suas 'figuras de linguagem', em recursos de metáforas, enumerações, alegorias, descrições, metonímias - ressalta-se sobre o que é dito, por exemplo em

Tatuagens de fogo
me acompanham pelo resto da vida
(p. 25)


ou

As botas bandeirantes
esmagam o orgulho dos carijós,
goianás, guarachués, bororós,
cataguás, caxinés e outras tribos
que viviam nestas montanhas.
Contra a pólvora, o chumbo e os canhões,
seus tacapes, lanças e flechas
pouco podem.”
[...]
(p. 39)

ou ainda

“Meu corpo era
feito de gigantescas
e altivas montanhas
adornadas por exuberantes matas.
Úmidos vales banhados
por caudalosos rios.
Fontes e olhos d'água
brotavam
em todas as partes.
Já fui perfeita,
sagrada comunhão
de espírito e matéria.
(p. 64)


A Estética não pode se curvar aos imperativos da Mensagem – nem poetas panfletários assim fizeram. Basta ler Maiakóvski, Brecht, Neruda, Ginsberg, Cassiano Ricardo, Drummond de Andrade, F. Gullar, Moacyr Félix, para citar alguns. A poesia não pode abrir mão de ser 'poética' para servir a um dado conteúdo. O inverso é aceitável - que o conteúdo seja adequado ao formato poético. (Enquanto a prosa aceita qualquer conteúdo, até o lírico)

A narratividade, o tom jornalístico – a citar locais, datas, nomes, cifras, fatos, dados outros – em-si é prosaica, e consegue destruir o possível lirismo a nascer da 'escolha das palavras'. Não havendo métrica nem rima, nem ritmo, nem 'escolha de palavras' não há qualquer lirismo.

(Nesta minha leitura, é patente que considero os mesmos parâmetros que J. L. Borges usou para ler “Canto General” (1950, no Brasil: “Canto Geral”) de Neruda, onde o argentino argumenta que o chileno perdeu o foco poético ao desejar veicular conteúdo, no caso uma historiografia das agruras da América Latina)

O gênero mais próximo que artisticamente poderia se prestar à semelhante conteúdo é a Literatura de Cordel. Em suas formas mais coloquiais, para fácil compreensão dos leitores/ouvintes e fácil composição do autor, o Cordel abre espaço para um estética poética que se permite narrar. Seria uma versão simplificada – não inferior! - às Epopeias de outrora. (Que aliás nasceram de uma oralidade, de uma tradição de poemas-canções transmititdos de geração a geração, através de bardos, aedos, músicos-poetas)

A estética do Cordel aceitaria o 'tom narrativo' – o que resguarda um aspecto de épico – que o conteúdo de Infernização apresenta, e daria uma forma – os versos de 7 sílabas, as estrofes com 6 (ou 7) versos, os padrões de rimas AABCCB ou xAyAzA. O Cordel abrigaria em sua forma um conteúdo narrativa 'contido' e 'disciplinado'.

(Sem esta 'represa' em versos, teríamos os 'versos longos' - vide a estilística 'verborrágica' de Walt Whitman e de Ginsberg, e de Fernando Pessoa-Álvaro de Campos - ou a 'prosa poética' - vide Baudelaire, Rimbaud, Lautreámont, dentre outros.)

A quebra do ritmo – o que cria uma 'fala solta', logo prosaica – é um dos motivos da ausência de poesia – ainda que um verso, ou um conjunto de versos, ainda resguarde 'poeticidade'. O uso de 'versos brancos' não segue regras de métrica ou rima, mas de Ritmo – ou então se dispensa o versos e escrevemos em 'poema em prosa' ou prosa poética (o lirismo passa ao contéudo e a 'escolha das palavras', em redes de significantes-significados)


Dramaticidade entre poesia e prosa


Ousamos sugerir: semelhante conteúdo se adapta mais a crônica ou drama – havendo personagens – pluridade de eus-líricos. Se crônica, há a voz do narrador a apresentar os personagens. Se drama, os personagens se apresentam no ato discursivo. Ambas as técnicas são encontradas em Infernização.

Vejamos, nas páginas 21 e 22 temos uma voz que se localiza no tempo, “Estou no ano de 1814 e em seguida se mostra um 'coletivo', “Somos escravos / Trabalhamos na lavra [...]”, na página 23 temos a voz do chinês (que pode ser o mesmo de 1814...) - “Sou chinês / Chego neste fimdemundo / trazido pelos ingleses.”

Também a voz do índio “guerreiro carijó” (na p. 38), “paramentado e pintado pra guerra”, depois a voz do mineiro que se intoxicou, “Estou na UTI de um hospital” (pp. 47 a 50). Há o depoimento de uma senhora idosa (pp. 62-67) que pode ser lido de duas formas - conotativa ou denotativamente – ou seja, a velhinha é um vítima, ou ela é uma figura alegórica para a Mãe-Natureza.

Já fui rica, meu filho, / muito rica.” é o que discursivamente é razoável para um ser humano, o que não é em “Meu corpo era / feito de gigantescas / e altivas montanhas / adornadas por exuberantes matas.” ou “Arrancaram tudo de mim; / minhas matas viraram carvão, / a cal calcinou minhas células.”

Temos a voz narrativa que se dirige aos leitores e aos poetas que inspiram referências (“Sim, Dantas Mota” ou “É, Drummond,...”), uma voz que tenta dar 'coerência' ao conteúdo textual que é feito de uma 'colcha de retalhos' tecida na pluralidade de vozes – as vítimas reais e potenciais da 'infernização do paraíso'.


O que mostra que a dramaticidade tem todo um potencial aqui para reformular a poesia ou dela se desfazer. O drama não precisa ser em verso, não preciso ter métrica e rima. Ainda que grandes dramaturgos – Shakespeare, Molière, Gil Vicente, Wilde, Beckett, etc – tenham usado (e abusado) da fala poética em seus dramas. O que estranha ao 'bom senso' da plateia – ainda mais hoje em dia – é que as personagens se amem e se odeiem em versos, e nós – seres comuns - não falamos em versos!

Por outro lado, a dramaticidade em si-mesma não é necessariamente lírica. Podemos registrar dramas anti-líricos – ou por tratarem do cotidiano ou por serem mesmo 'iconoclastas'. A Dramaticidade lírica já foi fartamente estudada, afinal 'autores clássicos' não faltam.

Entre a prosa e a poesia, o drama mantem-se em 'equilíbrio instável'. Talvez seja essa um dos pilares do fascínio: dramatizamos um pouco do que somos (prosaicos) e do que desejamos ser (líricos). Vivendo entre a 'realidade' e as expectativas, tentamos nos localizar através de personas outras (ou 'máscaras'), onde podemos ora se emocionar com a figura de Quixote – pois somos algo quixotescos – ora se comover com um Hamlet – pois somos um pouco Hamlet também.

(Também talvez isso explique o fascínio dos heterônimos de Fernando Pessoa: com suas personas poéticas ele cria um híbrido poesia-drama, cada poema a fala de um personagem de uma peça que chamaríamos de “Vida das Múltiplas Pessoas de Pessoa”. Temos o caipira lírico em Alberto Caeiro, o médico classista em Ricardo Reis, o engenheiro futurista em Álvaro de Campos, o burocrata meditativo em Bernardo Soares...)

As vozes das testemunhas compõe o dramático em “Infernização do Paraíso” e salvam a obra. Se não é exatamente poética, ela passa o 'recado' nos sensibilizando com as vozes plurais: quem realmente sofreu, que foi vitimado. O Poeta – que sabemos ser ator e contista – perdeu a oportunidade de escrever uma peça dramática ao estilo Nelson Rodrigues (ou Dias Gomes, ou Suassuna,  a depender do quão 'alegórico' ele pretenda ser). Mas aqui – não há dúvidas – trata-se mesmo da 'vida como ela é'.


jan/fev/11



Por Leonardo de Magalhaens




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