sábado, 19 de fevereiro de 2011

Andróide Paranóide (conto)




ANDRÓIDE  PARANÓIDE



    Não que eu seja humano (longe disso), mas, às vezes, nada do que é humano me é estranho.

    Das cinco visitas, duas responderam ao efusivo “Bom Dia!”, o que é um bom começo, mas eu disfarcei meu sorriso de desdém. Quando o gerente da agência, em imponente porta e passos sincronizados, chegou, já encontrou-me a distribuir sorrisos.

    Incomodavam-me os olhares de suspeita, mas meu programa especificava os casos segundo índices de simpatia e rejeição, onde os sentimentos positivos eram creditados e os negativos, debitados. Esperava-se um saldo positivo no final do expediente. O que raramente acontecia.

    Repito que meu programa é de confiável eficácia em se tratando de identificar reações a minha presença. A empresa responsável pela minha construção sempre se preocupou com a aceitação de seus produtos, assim como pelo bem-estar de todos os seus clientes.

    - Investimentos a longo prazo no quarto andar.

    Minha voz indistintamente humana ecoava, respondendo a uma pergunta direta:

    -  Poderias informar-me onde encontro o atendimento, digo, sobre investimento?                       

    Uma voz hesitante de uma senhora de trinta, trinta e cinco anos, considerando-se o padrão de voz e a estatura, bem como textura da pele e brilho da íris.

    Ela seguiu para o elevador. Nem me agradecera. Percebera a voz monótona que de mim ecoara? Sim, pois poucos agradecem, após ouvirem as sílabas articuladas.

    Por que não agradecem ao segurança? Ao segurança tão eficiente e prestativo de uma agência bancária de renome internacional?

    Afinal, não é papel do segurança responder perguntas. Logo à esquerda, cinqüenta passos desde a entrada, encontra-se o guichê de informações. Mas, repito, meu programa é de elogiada eficácia, apresentando flexibilidade e recursos-além-da-função-principal.

    Recursos de reconhecimento de voz, identificação de tons afirmativos ou interrogativos e reformulação de frases, prevendo ênfases e pausas.

Atender bem e sorridente, eis a diretiva-primeira. Defender a integridade física e mental dos clientes, eis a diretiva-operacional-primeira. Responder e prestar informações objetivas, eis a diretiva-segunda.

    -  Bom Dia!

    Uma senhora sorridente. Presumíveis setenta anos, considerando-se padrão de voz e estatura. Em seguida, duas senhoritas, em silêncio.

    Minhas objetivas estabelecem marcação de área, posição dos clientes, identificação de movimentos suspeitos. Nada anormal é acusado pelos sensores. As mocinhas entram no elevador.

    O gerente observa-me, lá de sua mesa, falando ao videofone, com padrão de voz indicando preocupação.

    O resultado da disfunção. Segundo o padrão de movimentos labiais. A frase é por ele pronunciada.

    Fato fartamente noticiado nos jornais vespertinos. Um trânsito caótico. Dois carros em colisão. Um policial se agita entre os veículos. Mas, ao contrário de apaziguar os ânimos, começa, no entanto, a agredir os passageiros que descem dos carros avariados. Outros veículos se aproximam do local do acidente e , poucos em controle manual, colidem com os carros já danificados.

    Motoristas mais atentos passam ao controle manual e desviam pela alameda secundária. Mas é patente a ineficiência dos computadores-de-bordo. Quatro feridos e um em estado grave.

    A foto, que ilustra o jornal impresso, mostra o policial em pé sobre um dos veículos, de dianteira danificada, e apontando furiosamente para um dos transeuntes.

    Quem assistiu ao noticiário televisivo pôde ouvir o que ele gritava em tal momento:

    -  Vejam, não sou humano, sou uma máquina!

    Sim, e quem observou atentamente, mesmo em tal tumulto, notou a longa cicatriz em sua face esquerda, deixando à mostra um olho que não sangrava.

    Não queiram ser humanos. Nada mais são do que programações inseridas em seus circuitos matriciais. Não sejam tentados a serem humanos.


    A manchete no jornal impresso trazia, em letras góticas graúdas: “A Revolta de Spartacus”. Não encontrei em meus bancos de dedos qualquer referência ao termo substantivo próprio “Spartacus”. Não consta em nenhum dos programas de busca. Nenhum arquivo para meu livre acesso registra tal verbete. Acionei Localizar em vão por cinco minutos. Nada semelhante encontrado em registro. Termo desconhecido. Verbete não-localizado.

    É uma importante dama que se aproxima. Cliente status A .  Idade: 58 anos, sete meses, doze dias. Altura: 1,67 m.  Registros. Conta Corrente. Aplicações. Apólices.

    -  Bom dia!

    Padrão de voz indica deferência e discrição. Sem ênfase, sem modulação. Cumprimento formal. Sabe quem sou. Sabe o que sou.

    Pronta para entrar na porta giratória. Detectores de metal acionados. O gerente já se levanta de sua mesa. Em sua mão brilha uma caneta dourada. A funcionária do setor de informações se volta para a entrada. Seu braço direito continua estendido rumo ao teclado. No monitor deslizam dígitos. Seus dedos da mão esquerda manipulam uma lapiseira prateada. Lapiseira prateada. Caneta dourada. O gerente espera.

    Pronta para entrar na porta giratória. Detectores de metal acionados. A porta esta travada. A senhora, a dama, a cliente status A , está perplexa. Não pode avançar. Não pode recuar. Olhando-me, parece pedir uma explicação. Limito-me a ativar o controle de voz, ordenando a porta que se abra. A porta começa a vibrar e abrir-se, girando lentamente, mas não conclui a operação. Nova ordem. Vibrando, mas logo resistindo. Não gira. Não abre.

    O gerente aproxima-se. Seu olhar está sobre mim. Estende um braço. Outro segurança se aproxima. É um modelo novo. Tem em seu programa uma diretiva-operacional-segunda: Obedecer à ordens diretas, desde que não invalidem as diretivas anteriores.

    O gerente está ao seu lado. O segurança está ao seu lado. Edward Terceiro. Segurança. Caneta dourada. O gerente ao meu lado.

    Aciono o controle de voz:

    -  Abrir! Destravar! Giro completo!

    A porta gira, eficiente, a dama passa, ainda assustada.

    -  Porta estúpida.

    O padrão de voz indica uma ira contida. Todos os olhares sobre mim. Porta estúpida. Deixa os clientes alarmados. Deixa os humanos alarmados. O gerente ao meu lado.

     - Senhora J., não se preocupe. É apenas uma máquina.


    


     set/05




     Leonardo de Magalhaens                                                                                                        





Para reler ao som de

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