Conto
Um
bom vizinho
(ou:
Um filho de Deus)
1
Pretendo, neste curto relato, narrar
a vida e as memórias de um homem excepcional. É com coração
entristecido que falarei do nosso vizinho, o Sr. Veiga, cujos
funerais se deram ontem. Ele conosco conviveu por duas décadas,
depois de viúvo, aos cinquenta anos.
É uma história triste e, ao mesmo
tempo, de esperança. Um vizinho que nunca nos deu motivo para
reclamação, lá no pacato terceiro andar, tendo que suportar os
tumultos festivos dos andares acima.
O Sr. Veiga perdeu sua saudosa
esposa Carmem, quando ela completaria cinquenta anos. Foi um caso de
tumor que começou no seio. Quanto a ele, o homem tinha passado há
pouco tempo do meio século.
O casal se conheceu lá nos anos 70,
época do regime fechado no Brasil. Ele era um estudante de Direito,
porque o pai assim desejava. Sim, ele foi ser estudante de Direito e,
para contrariar o pai, foi fazer amizades na esquerda católica.
Um bom católico, o Sr. Veiga. Nas
missas toda semana e nas campanhas do agasalho. Recebia os romeiros e
fazia as rezas com os devotos. Era mais amigo do sacristão do que do
Padre.
Foi tudo seguindo assim por um tempo
(cinco anos?) até que ele conheceu uma colega caloura. Carmem
começava o curso deslumbrada com o mundo da faculdade. Não se
enturmava bem, mesmo observando os estudantes.
Depois os grupos de estudantes se
dispersavam, ora subindo para a Praça, ora descendo para o Parque.
Ela esperava o ônibus em frente ao edifício Maletta. O mesmo ônibus
no qual embarcava o Sr. Veiga. Na época, o bacharelando Valdo P.
Veiga.
As conversas com Carmem aconteciam
entre a Augusto de Lima e a Assis Chateaubriand, onde Carmem descia.
Ela era delicada e belíssima. Uma beleza não deslumbrante ou
insinuante, mas de um carisma sossegado.
2
Três anos depois e estavam noivos.
Boas famílias e boas propriedades. Bairros entre a Floresta e a
Sagrada Família. Mas só uma coisa desagradou ambas as famílias: a
de Veiga era tradicionalmente católica, enquanto a de Carmem era de
protestantes ou reformados, ou, como dizemos, evangélicos.
Os evangélicos na época eram raros
e pouco apareciam. Eram chamados de 'os Bíblia ', pois andavam
engravatados e com a Bíblia volumosa em mãos. Pareciam mesmo exibir
a Bíblia ...
Católicos iam pra missa de roupa
cotidiana e não se acompanhavam com suas Bíblias. Aliás, a Bíblia
do Sr. Veiga ficava no quarto com a página aberta nos salmos. Vez ou
outra, ele até lia um ou outro salmo do Rei Davi. Mas ele nunca se
imaginou andando por aí com um Livro Sagrado...
Tanto o Sr. Veiga quanto a esposa
eram fervorosos na fé cristã, mas a Sra. Veiga era bem mais. Quando
eles se casaram, ela tinha se formado, mas nunca exerceu a profissão.
Ela então ficou por conta dos afazeres domésticos... E, com tal
perfeição, que o Sr. Veiga nada falava dentro de casa. Só quando
elogiava!
Muito apegado a esposa, o Sr. Veiga
a acompanhava até os cultos, na praça Raul Soares. Nos primeiros
dias, ficava na praça contemplando os arbustos globulares e a fonte
luminosa. Mas depois se acostumou a entrar no templo reformado.
Dona Carmem também acompanhava o
marido até a missa, uma vez por semana. Mas o Sr. Veiga nada tinha
de devoto, então às vezes deixava passar duas semanas. Ou
acompanhava algum feriado santo. Só Páscoa e Natal eram comemorados
em família. Que aumentou logo: dois filhos e uma filha.
Aconteceu que o Sr. Veiga mais
participava dos cultos do que das missas e ele abriu o coração para
a fé reformada e a sola
scriptura. Passou a ler a
Bíblia que ficava empoeirando no quarto. Salmos e Provérbios e
Eclesiastes e os Evangelhos.
Em pouco tempo o Sr. Veiga estava
batizado na igreja reformada, para desgosto da tradicional família
católica. O pai conservador foi o que mais se sentiu ofendido. Nas
poucas visitas, o patriarca dava mais atenção aos netos do que ao
casal...
O tempo passou e o Sr. Veiga esqueceu
os feriados santos e as novenas e as preces aos santos e santas. Não
tinha mais imagens da Virgem Maria. Continuava reverenciando a
mãe de Cristo, mas, agora evangélico, não demonstrava.
Sr. Veiga, um homem pacato, um
crente que não discutia religião. Ele se sentia zonzo com tanta
confusão e tanto conflito entre os cristãos. Quando aquele pastor
pentecostal chutou uma imagem de Nossa Senhora, em plena rede de TV!,
o Sr. Veiga passou mal, e fez questão de pedir desculpas aos amigos
católicos.
Numa geração em que meus avós
estavam ouvindo Tropicália ou Jovem Guarda, ou Novos Baianos ou
Clube da Esquina, o Sr. Veiga e dona Carmem ouviam música sacra ou
hinos gospel,
canto gregoriano ou cantatas. Não tinham vida social fora do
ambiente religioso. Não bebiam vinho nem no Natal. Vez ou outra
algum programa de TV, mas geralmente preferiam o rádio. Passaram
assim a vida.
Assim, o tempo passou. Na sua
carreira de funcionário público, o Sr. Veiga criou os dois filhos e
as filhas. Um virou advogado mesmo, até reconhecido. Outro, foi para
as Exatas, é hoje um professor universitário de matemática. A
filha estudou artes plásticas, passou um tempo no Rio de Janeiro e
lá namorou e casou com um jovem de Copacabana. Duas vezes por ano,
ela passava uns dias em Minas com a família.
A vida seguiu passando da aurora ao
poente. Até que subitamente a doença da dona Carmem. Foi um choque
total na família. Os custos com tratamento esvaziaram os tesouros do
casal e o nível de vida nunca mais seria o mesmo. Gastaram com
remédios e casas de repouso. Novas dívidas sobrecarregaram o
funcionário público.
Então o inevitável aconteceu e a
dona Carmem repousou na paz do Eterno. Ela descansou cercada pelo
carinho da família reunida. Só o Sr. Veiga não se recuperou e caiu
numa depressão.
3
A melancolia do Sr. Veiga o fez se
afastar dos cultos efusivos e festivos da igreja reformada. Ele não
tinha mais contatos com os amigos católicos, mas vez ou outra,
entrava na Catedral e ficava na penumbra. Ele tinha saudades dos
cantos gregorianos.
Mas, no íntimo, ele sabia que não
seria mais um bom católico. Imagens e estátuas nada mais lhe
comunicavam. As rezas repetitivas não o atraiam. Só sentia arrepios
com o refrão,
"Pois a Sua Misericórdia dura
para sempre!"
O Sr. Veiga não seguiu mais os
cultos, e nem voltou às missas. A vida de antes estava selada no
túmulo com a esposa. O Sr. Veiga jamais se casaria novamente.
Mas sendo homem de fé, ele não se
desesperou. Não sabe como aconteceu, mas logo frequentaria outro
culto religioso, no mesmo bairro, por convite do melhor colega na
repartição, e um amigo próximo nas necessidades.
Rubem, um bom amigo do Sr. Veiga. No
velório, em momento solene, pude conhecê-lo. É também funcionário
público aposentado. Família numerosa. Já foi missionário no
Caribe.
Foi na igreja adventista, com o
colega, e depois amigo, Rubem que o Sr. Veiga encontrou uma paz.
Virou sabatista, isto é, guardava o dia do sábado, e não mais o
domingo dos católicos e reformados e pentecostais. E passou a seguir
uma dieta alimentar controlada. Com certeza, eis o motivo de sua
saúde de ferro. Ele não morreu de doença, mas de uma fatalidade.
O Sr. Veiga sempre se lembrava da
falecida esposa. Em com os familiares e amigos, nas poucas vezes em
que se reuniam. Ainda mais quando deixou sua casa, no bairro onde
morou por três décadas, e apareceu aqui no terceiro andar.
O vizinho mais calmo e mais
tranquilo do prédio. Pelo menos uma vez por mês recebia os filhos.
A dona Clara, do segundo andar, indicou uma diarista para cuidar da
limpeza do apartamento.
O Sr. Veiga seguia do trabalho para
casa, e da casa para a igreja. Durante uma década foi esta a rotina
do nosso vizinho. E foi assim até a sua aposentadoria.
O que aconteceu? O Sr. Veiga passou
a ficar mais em casa e deixou a barba crescer. Um calmo e pacato
ancião é quem a gente encontrava no elevador. E o Sr Veiga comprava
livros e mais livros. Eu na portaria podia ver os envelopes e
encomendas. Até livros em hebraico!
Descobrimos que o Sr. Veiga nem mais
frequentava a igreja. Começou a criticar a igreja. E a evitar
companhia dos irmãos de outrora. O que acontecera? Uma desavença
teológica? Uma ofensa pessoal? Não sabemos. O Sr. Veiga não
falava muito de si mesmo. Quando falava dele mesmo é quando se
lembrava da vida feliz com a dona Carmem.
Não saberia dizer como, mas o Sr.
Veiga descobriu que a família da mãe, seu lado materno, tinha
ancestral de origem lusitana judaica. Século 18, judeus católicos
no interior das Minas.
Guardador do Shabat
e das leis Kosher,
o Sr. Veiga começou a se chamar Ben Avraham e se converteu ao
judaísmo. Continuou fiel ao Messias de sua vida inteira: somente não
era mais Deus Encarnado. O Messias é o filho de Deus, não a Segunda
Pessoa da Trindade. Seguia unido a
Torah numa mão e a Nova
Aliança na outra. Nova Aliança?
Foi numa tarde, no jardim, diante do
prédio, que o Sr. Veiga me explicou esta de Nova
Aliança. Tratava-se do
nosso Novo Testamento. Com um olhar judaico (não ortodoxo…) que
acredita no Jesus ou Yeshua como o Messias (que, portanto, já
veio...). Nada de trinitarismos, agora o Messias era a imagem pura do
Adam Kadmon,
Homem Perfeito Enviado pelo Eterno.
Eu ouvia atentamente. Ele falava com
pausas, muitas pausas. Misturava hoje com ontem, duas décadas atrás,
falava dos filhos como crianças, não se apercebia que estas
crianças agora eram adultos com suas próprias crianças. Sua mente
não se atualizava, viajava mais e mais no tempo. Não saberia dizer
o que leu de manhã nos jornais, tudo se esfumaçava. Mas lembrava do
dia da formatura. Ou do dia em que conheceu sua esposa.
Homem das antigas, o Sr. Veiga é
contra o aborto e contra o casamento gay,
mas se diz de esquerda. Na minha época ser de esquerda era lutar por
justiça social, nos sindicatos, melhor os salários dos
trabalhadores. Conhecíamos os freis e os sacristãos, pessoas
sinceras que cuidavam das obras de assistência. Lá aconteciam as
reuniões, quando se formou o Partido dos trabalhadores. Hoje é essa
pouca-vergonha. Corrupção, dentro e fora do governo, e parada gay,
e campanha a favor do aborto. É isso ser de esquerda? Por isso meus
netos agora vestem a camisa da direita.
Homem sempre calmo, o Sr. Veiga só
perdia a paciência, às vezes, quando apareciam os netos e as netas.
É que ele implicava com bebidas e cigarro. E principalmente com as
tatuagens: Que isso era coisa de gente sem noção, sem rumo na vida.
Essas crianças aí sujando a pele! E acham que é arte! Ele ficava
boquiaberto diante dos jovens com os piercings
e dos alargadores de orelhas!
Não era sempre que o Sr. Veiga
queria prosear. Geralmente ficava sentado, de manhã ou de tardinha.
Trocava umas palavras cordiais com o zelador ou o porteiro. Nunca foi
visto com celular. Claramente desconhecia internet com seus memes e
zaps
e tictocs.
De cinema só lembrava dos filmes religiosos. Os Dez
Mandamentos. Jesus de Nazaré. Ben-Hur.
Foi ao teatro poucas vezes, quando
estudante. Uma das peças era uma adaptação de Rei
Lear, drama familiar na
realeza. Obra de um certo bardo Shakespeare. Gostava de livros
religiosos, com certeza são a maioria em sua estante. Mas também
livros de histórias de detetive, de preferência da autora mestra
Agatha Christie. No mais, jornais e revistas que ele apenas folheava,
quando entediado. (O neto pretende doar todos os itens para a
Biblioteca pública ou o centro cultural da regional.)
Com o tempo aconteceu que o Sr.
Veiga perdeu todos os amigos. Pouco contato com os vizinhos de outro
bairro, pouco contato com parentes. Os que eram cristãos o evitavam,
e ele não vencia a desconfiança dos judeus ( alguns aqui do bairro,
mas a maioria ninguém da família conhecia...), de modo que só se
encontrava com um outro estudante messiânico. Um dos poucos que
o ouviam com atenção (além de mim) era o amigo Rubem. Mas logo
estavam em desacordos sobre a essência do Messias.
Sim, sem amigos, o Sr. Veiga tinha
um irmão, seu amigo Jesus. Lá no banco do jardim, ele explicava as
várias visões sobre o Messias. Para uns, Um rabino, um profeta,
para outros, um espírito perfeito, ou o Deus Encarnado. Daí as
tantas interpretações e seitas e heresias. Para o Sr Veiga, Jesus
ou Yeshua era um Irmão, o filho de Deus, manifestado entre nós,
pobres mortais. Yeshua é meu Mestre e meu Irmão, aquele que é ,
para nós, o modelo da Compaixão e da Caridade.
Uma fase na solidão, realmente. Até
descobrir uma sinagoga meio judaica e messiânica lá perto do
Mineirão. Passou a ficar os sábados, ou Shabat, fora. Seus filhos o
procuravam no sábado, mas nunca que o encontravam. Acharam tudo
estranho. Coisa de velho, né? Manias de aposentado... Isso passa.
Mas não passou. Até o seu
acidente, o Sr. Veiga foi este exemplo de homem cristão com vestes
judaicas, e longa barba branca. As crianças do condomínio o
chamavam de Papai Noel. Ele ignorava. Sempre dizia que o Messias não
nascera num dezembro de inverno no norte. Que Messias Yeshua nascera
ou em setembro ou em outubro em
Sucot.
Sucot?
Então ele calmamente explicava que era a Festa de Tabernáculos, que
os judeus faziam cabanas para lembrar o tempo nômade no deserto. E
que faziam mesmo cabanas nos quintais e garagens!
Tudo muito interessante, mas os
vizinhos achavam inusitado e excêntrico. Acho que ele até queria
fazer uma cabana lá no jardim. Eu era síndico na época e,
gentilmente, expliquei que não seria possível etc
O Sr. Veiga ficou cabisbaixo,
murmurando, mas acho que não se magoou. Que ideias ele tinha! E
pouco falava com os vizinhos. Sempre cordial, sempre foi educado. Mas
não dialogava mais. Não queria convencer ninguém... Só ser
deixado em paz.
Paz que desejamos que ele tenha
agora no repouso do Altíssimo. Uma fatalidade o levou do nosso
convívio. Uma queda na escada, como sabem. A triste manhã em que
desceu a escada... Sabemos que idosos não devem descer tantos
degraus… Vertigem, desequilíbrio.. Por que ele não teve paciência
para esperar o elevador? Não sabemos.
Em memória do nosso vizinho, homem
digno, e de saudosa lembrança, redigimos este Obituário para os
amigos e as amigas do condomínio, e igualmente para os familiares e
amigos da família. O Sr. Veiga não era um cristão ou um judeu. Mas
um homem temente, digno de ser chamado um
filho de Deus.
Nov 24
Leonardo de Magalhaens
poeta,
contista, crítico literário
Bacharel
em Letras FALE / UFMG
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