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Conto
O Aposentado
I
Antes e depois de aposentado, sim, é assim que se divide a vida do professor Júlio Sezar, ex-funcionário público e agora empreendedor. Não de sucesso, mas empreendedor.
Vida sossegada de funcionário público, professor de escola pública, burocrata em repartição da Prefeitura, cumpridor de deveres e filantropo em ações de caridade, Júlio Sezar imaginava uma vida ainda mais sossegada nas suas quase 7 décadas depois de deixar a rotina dos horários de expediente.
Casado com a também professora Dolores, servidora também aposentada, o tranquilo Júlio Sezar não esperava mais do que uma vida nova, de novos hábitos e horários, com sossego e bem-estar familiar.
Nos primeiros meses até que a nova vida foi tranquila: acordar mais tarde e mais tempo sob as cobertas. Era umas férias estendida. Mas horários de almoço e banho e janta eram os mesmos. Não sentia falta do transporte público, mas lamentava a ausência dos colegas e das colegas entre causos e crônicas.
Tempo passou entre jornais e novelas, programas de auditório, vez ou outra nas missas de domingo, ou visitas aos filhos, um advogado e o outro empresário. Este, o mais novo, que deu a ideia ao pai: abrir uma empresa. Cuidar de textos, revisão, trabalhos acadêmicos, tradução de obras técnicas ou literárias. O filho mais velho poderia indicar alguns clientes. Que tal?
Foi assim que Júlio Sezar começou seu negócio. Uma sala num prédio de escritórios, na avenida central, poucos quarteirões da faculdade de Economia, uma impressora e dois computadores, máquina de xerox e scanner, pacotes de folhas e formulários... e dois ventiladores.
Tudo começa bem e até a esposa ajuda com algumas horas de digitação, mas logo precisam de alguém para se dedicar em horário integral, revisando e digitando, operando xerox e scanner, de modo que recolheram currículos e indicações até chegarem numa das filhas de um cliente do advogado da família.
Otimista como sempre foi, o aposentado, agora empresário, Júlio Sezar não hesitou em conseguir empréstimos para maiores investimentos e melhorias no escritório. O primeiro ano passou rápido entre estudantes e trabalhos para editoras independentes.
-- A vida começa aos sessenta...
II
No segundo ano, segue a crônica, veio a inauguração da copiadora num shopping de rua, com mais um funcionário. Cópias, encadernações, apostilas para cursinhos, tradução para literatos da cena local, novos clientes e uma nova rotina.
Rotina logo vira parte da vida do mesmo jeito que foi a vida toda. Quem sempre tem rotina, sem rotina não vive. E na nova rotina o aposentado ficava pouco tempo em casa, justamente o contrário do que imaginava. E do queria a também aposentada esposa que passou a vida toda sem ver o marido. Só um alô ou uma breve discussão na hora de dormir.
No terceiro ano, ampliação da copiadora com duas funcionárias, uma delas só para cuidar do caixa. E novos planos para novos clientes e novos funcionários. Ano que vem outra copiadora. Por que não?
Lucro chegava mais, mas sempre menos que os juros de empréstimos. E sempre pouco tempo e rotina mais rotina e repetindo rotina. Sossego e bem-estar não aparecia.
E a mesma tecnologia que era funcional e amiga passava a ser cúmplice da concorrência. Livros inteiros copiados e disponíveis em arquivos digitais em qualquer celular. Os estudantes só copiavam em papel o essencial para as provas. E novos clientes preferiam tradutores de inteligência artificial.
III
Planilhas após planilha, Júlio Sezar descuidava da também aposentada esposa e pouco visitava os filhos, que começavam a sentir a falta do pai, o funcionário público sossegado.
-- E eu que achava que agora a gente ia viver a nossa vida...
Cópia após cópia, rotina e agonia, antes da festa de 70 anos veio o primeiro infarto. O que evitou a primeira briga feia do casal. Uma semana sob observação e atenção. Filhos e netas foram abraçar o aposentado num raro momento de sossego.
Em longo período de descanso, o filho mais novo passava na copiadora para ver o movimento, sendo os olhos e a voz do pai. Os lucros caindo e os problemas subindo. Só sossego que não aparecia.
Não piorava aos poucos. Era perder mais clientes e assim algum funcionário precisava passar no RH. Revisão e tradução era pouca, só xerox para estudantes e transeuntes, professores e pais de alunos.
Quando voltou para a copiadora, Júlio Sezar não imaginava o tamanho do rombo. Contratou um contador, dispensou a funcionária do caixa e outra digitadora. Manteve as máquinas de cópias e scanner. Desistiu de ampliações. Dívidas e juros se empilhavam. Os filhos negociavam com bancos e agiotas.
Então decidiu acabar com o negócio antes de falir de vez. Desmontar tudo ou passar o escritório? Novamente o filho mais novo ajudou o pai aposentado. Conseguiram um empresário interessado. Nada de edição e tradução. Seria só copiadora e com alguns artigos de papelaria e uns bibelôs. A transição foi feita. O segundo infarto foi evitado.
Semana passada a família foi reencontrada na missa de domingo e Júlio Sezar apresentou filhos e netas antes de seguirem para um almoço no Mangabeiras. Estava feliz por encontrar o sossego de aposentado. Não esquecia sua meteórica carreira de empreendedor. Até se orgulhava. Mas lamentava a rotina que vem após a rotina.
-- Hoje voltei para uma carreira que negligenciei a vida inteira: ser um pai atento... e agora um bom avô. O senhor saiba: não há maior empresa do que a família.
Agosto 25
LdeM
Escritor, crítico literário
Bacharel em Letras FALE / UFMG
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