Conto
Onde o seu tesouro, aí o seu coração
Missa de sétimo dia do pai da Patrícia. O Sr. Pacheco era gerente numa empresa de embalagens. Quase um sócio. Pessoa muito respeitada no ramo. Por pouco não foi meu sogro.
É que quase que a Patrícia foi minha noiva. Minha melhor amiga no colégio e na faculdade, aí rolou um namoro de mais de um ano. Mas aí ela conheceu o Maciel. A Patrícia logo abriu o jogo. Eu fiquei chateado, mas entendi. Voltamos a ser amigos. Até hoje ela continua casada com o Maciel. Ele é advogado.
Sou amigo da família. Por isso é que convivi muito com o Sr Pacheco assim como hoje em dia visito a Patrícia e o marido uma vez por mês para um chá e pra falar dos velhos tempos.
Pois é. Difícil acreditar que o velho Pacheco morreu. Foi de repente. Coisa de derrame, sei lá. Não sou médico. Foi um choque pra família. Ele estava na varanda, entre as plantas e as gaiolas , e, ao voltar para a sala, teve um mal súbito, quase desmaio, e se deitou no sofá. Não se levantou mais.
A Patrícia me contou como foi. Chorando, se apoiando no marido Maciel. Ela continua linda, preciso confessar. Mesmo com mais de 40 e transtornada pelo sofrimento.
Lembro muito do Sr. Pacheco, que me levava para verdadeiras tours pela casa em construção. Mostrava a varanda, a garagem, a sala de TV, até a escadinha pro sótão.
E mostrava os móveis novos e ar-condicionado, além da nova geladeira e uma churrasqueira. Tudo escolhido pelo olhar atento do proprietário, que ainda se aconselhava com decoradores.
Sim, pois a decoração era de expert. Cortinas combinavam com móveis que combinavam com o piso. Os banheiros tinham suítes com acesso em imensos guarda-roupas.
Tudo o que o Sr. Pacheco ganhava na vida, honesto e prestativo, ele gastava com a casa. Um casarão digno de lord, de gentleman, com dois andares, garagem e sótão. Dois carros do ano. Um dele, e o outro da esposa. Tempos depois, um terceiro carro, o da Patrícia.
Sim, posso me lembrar do brilho no olhar, dos gestos de adoração, do orgulho de proprietário, a cada cômodo e descrição. Materiais, madeira, cerâmica, gesso, revestimento, etc
Patrícia achava o pai meio exagerado. Eu achava que ele estava certo, ora. Queria uma casa confortável e trabalhava para isso. TV de última geração, DVD, ar-condicionado, tudo de qualidade e elegância. Pena que na estante não tinha um livro, sequer uma agenda ou uma Bíblia. Não se via um único livro na casa toda.
E a cada mês e a cada salário e a cada aumento e a cada décimo terceiro, a casa ia aumentando e se avolumando e se adensando de coisas e aparelhos e anexos. Novo telhado e ampliação da garagem e aumento da escadaria. E novo portão eletrônico.
E toda vez que eu ia lá, ali no quarteirão de cima, buscar a Patrícia para uma balada, o velho Pacheco me levava pela casa a apresentar, emocionado, as novidades e ampliação e decoração e vantagens. Sofás novos para combinar com cortinas novas. Até uma mesa de sinuca o homem tinha comprado para a sala de TV, que parecia um clube de endinheirados. Num canto, bem suprido, um barzinho com bebidas e amendoim japonês.
Pois é. Quem imaginaria que o velho Sr. Pacheco morreria antes de ver a casa pronta? Sim, pois ele planejava trocar as grades da frente e aumentar o muro dos fundos. E trocar novamente o telhado e colocar aqueles painéis solares. O velho não parava mesmo.
Morreu o velho Pacheco. Tenho certeza, pois fui ao velório. Lá a Patrícia chorando sem parar. Depois teve a missa de sétimo dia. Família meio católica. Tradicional. Que o Pacheco descanse em paz.
Mas posso jurar por estes olhos que leem e por esta mão que escreve que, ontem mesmo, de noitinha, ao passar pelo casarão, ali no quarteirão de cima, vi o Sr. Pacheco lá na varanda, a contemplar sua obra, de braços cruzados, com ar de proprietário.
Jul 24
LdeM
poeta, contista, crítico literário
Bacharel em Letras FALE / UFMG
BH MG
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