Conto
O gerente e o mendigo
I
A vida prega peças. Não tenha dúvidas. Pode acontecer com qualquer um. Pois aconteceu com o Roberto quando seguia para o motel com Adelaide Maria, sua amante. Chegou na BR e, antes do Shopping, deixou fechar o sinal, passou direto e, de repente, atropelou Fabio da Silva, um andarilho.
O que uniu três pessoas tão diferentes e distintas num destino assim trágico? Ao som de uma MPB, eis Roberto todo animado com as coxas morenas de Adelaide Maria e... passou o sinal. Um corpo surgiu do nada, na margem da rodovia, e se abateu contra o para-brisa.
Por que, por que comigo, meu Deus? Agora Roberto se lembrava de Deus. E também da esposa Laura e dos filhos Beto Jr e Raul, dois pré-adolescentes.
Adelaide Maria deu um grito, mas não desmaiou. O carro parou bruscamente. Se ele acelerasse, passaria esmagando o homem moreno ali no capô do carro de marca japonesa. Desligou o rádio e olhou ao redor.
Luzes piscantes…. Placas, nomes, setas, proibições… Faróis cegantes… Moitas e ramagens lançando sombras na pista...
Seria boa ideia parar ali e prestar socorro? E chamar polícia e ambulância? E se o homem fosse um delinquente, um foragido? E se Laura ficasse sabendo? E os meninos? Vergonha e vergonha.
Adelaide Maria já queria ir embora. Desaparecer no nada. Todo o tesão já era. Ela estava matando aula na faculdade (ela queria ser advogada...) em plena noite se sexta-feira. Sextou, né, querido! Vem me ver....
Para a esposa Laura, o gerente Roberto inventou problemas de agenda e reunião na sexta-feira... Senão o pessoal marca para sábado... aí é pior né...
Mas de onde aparecera aquele mendigo moreno e sujo que destruiu aquela transa de sexta-feira? De que caminhos obscuros ele surgiu na rodovia na entrada do shopping? Será um anjo disfarçado de gente? Uma provação divina?
Dia de bonança e dia de tempestade. Tem dia em que brilha raios e ecoa trovoadas e nem uma gota de chuva. Tem dia que você nem percebe e está tudo molhado.
II
O mendigo não estava morto. Com a cabeça contra o para-brisa, ele seguia desacordado. Roberto não sabia o que fazer. Olhou para o céu por um impulso. Nenhum olho o olhava.
Roberto chamou um carro para Adelaide Maria. A moça de repente ficou muda de pedra. Então melhor que ela seguisse logo para o apê no São Pedro.
E depois ligou para Laura, outro gesto automático. Explicou brevemente que acontecera um acidente na rodovia. Alguém atropelou ali um mendigo. Laura não deu muita atenção. Hora da novela. Se ele dissesse que ele é que tinha atropelado.....
Um carro chegou para levar a pobre Adelaide Maria. Ela nem olhou pros lados. O homem no carro por aplicativo era um moreno sem cabelos. Não perguntou nem olhou. Estando atrás não deve ter visto o corpo ali na frente.... Boas noites e sumiram na noite de sexta-feira.
Roberto ficou ali com o mendigo ou andarilho ou peão de obra... vá se saber. Olhou nos bolsos.... uns trocados e papel rasgado e identidade borrada. Uma foto desbotada. O homem fora batizado Fabio da Silva. De onde? De BH? Não. De Betim.
Mas na camiseta do homem estava uma estampa de uma loja do Barreiro. Será que ele viera desde lá? Enquanto pensava, Roberto puxou e carregou o homem... tão magro tão raquítico... até o carro... nos bancos de trás.... desacordado.
Alguém teria que chamar a polícia ou levar o cidadão até um hospital.... até ao Santa Efigênia.... uma viagem. Descer tudo aquilo que ele subira há pouco. E que trânsito!
Sextou e com drama. Roberto resolveu levar o homem para um hospital. Fazer uma caridade de Bom samaritano. Roberto, o bom cristão. Ele não era?
O homem desacordado não cheirava bem. Suas roupas não eram de todo sujas mas longe de serem limpas. Pode ser que ele tenha trocado as roupas sem um banho antes.... um banho só de sábado ou domingo…
III
O homem chamado Fabio da Silva só acordou quando passaram a Contorno e seguiam para a zona hospitalar. Numa freada num sinal vermelho, o homem gemeu e acordou. O quê? Onde estou?
Roberto parou perto de um ponto de ônibus e desceu para abrir a porta e falar com o estranho. Você estava desmaiado na BR.... Estou levando você ao hospital.
Desmaiado? Fui é atropelado? Quem me atropelou? O homem Fábio da Silva se sentou com dificuldade. Dor de cabeça e dores nas pernas. Com o susto, e o impacto, parece que mordeu a língua.
Roberto começou a desanimar com aquele impulso de chegar ao hospital. Teria que dar nome e explicação. Por que se envolver? Por que não deixar o tal Fabio da Silva ali na parada de ônibus?
O homem se ergueu para sair do carro e Roberto nada fez para impedir. Ali em plena Avenida Brasil, no meio da noite de sexta-feira, ele precisaria se livrar daquele homem pária na cidade e no mundo.
Vindo de onde e voltando indo para onde? O homem chamado Fabio da Silva estava andando, com uma outra pausa, desde o Barreiro. E o homem seguia até o Shopping. E depois voltaria? Andava assim em círculos ou à deriva?
Fabio da Silva estava ali cabisbaixo e com dor de cabeça. Roberto fechou o carro e perguntou se Fábio aceitava uma notas para pagar um ônibus. Um lotação vinha chegando. Fábio acenou negando. Nem olhou para o ônibus lotado que chegava. Pessoas se levantaram. Ao lado, uma propaganda de cerveja.
Quem era Fabio da Silva? Quem era Roberto? Um andarilho e um gerente se encontravam no trânsito da cidade grande. Ali, numa parada de ônibus na Avenida Brasil, não sabiam como desatar este nó…
Roberto queria deixar as notas no bolso do andarilho e sair dali o quanto antes. Fabio da Silva nem sequer lamentava seu destino. Por que ainda vivia? Por que ainda sofria naquela cidade? De onde viera aquele homem de carro chique ? Ele é que teria atropelado? Por que não passou logo por cima?
Fabio da Silva queria andar. É o que ele fazia bem. Sem rumos. De Betim a Contagem. Da Cidade Industrial ao Barreiro. Do Barreiro ao Shopping. E depois voltar....
Outro ônibus passou e Roberto só queria ir embora. Teria que inventar uma bela história para Laura. Chegar tarde e à toa. Lembrava-se de Adelaide Maria indo embora no carro por aplicativo.
Hora de ir embora. Fique com Deus. Roberto se ouvindo dizendo. Aí foi a vez de Fábio da Silva olhar com visível desagrado. Seu olhar dizia Que Deus? O Deus que me abandona? O Deus que deu a você este carro? Afinal, no vidro estava um adesivo Presente de Deus.
Outros adesivos. Guiado por Deus. O sangue de Jesus tem Poder. Sou de Jesus. Até parece que o Criador é sócio de concessionárias.... O gerente não pensava muito nisso. Tinha trabalho... trabalha muito... um bom emprego... bom salário. Merece um carro assim. Ou não? Deus traz a prosperidade.
Para o cidadão sem lar, chamado Fabio da Silva, Deus era um injusto. Dava carro para uns e casebre de papelão para outros. Deus injusto? Não. Deus não havia. Roberto via que o homem não tinha crenças. Nem posses nem ambição. O andarilho não tinha onde cair morto. Por que não aceita as notas?
Roberto sentia vergonha de seu carro. E de suas mentiras de sexta-feira. E de quarta-feira. E tantos outros dias. Quanto tempo ele mentia? Quantas noites nos braços de Adelaide Maria? Uns seis meses? Sim...
Quando Roberto olhou para o lado o homem chamado Fabio da Silva não estava mais lá. Outras pessoas seguiam na alameda. Qual delas seria o andarilho? De súbito, passou um ciclista…. Luzes e postes e anúncios… Parecia um cenário de filme.
Roberto decidiu não ir atrás. Tinha feito o que podia. Fabio da Silva continuaria andando e andando. E a cada passo mais próximo da Contorno e do Belvedere e do shopping e do anel rodoviário e do Barreiro.
Roberto ligou o carro. Lá dentro o cheiro de suor e roupa molhada. Agora percebia que o limpador de para-brisa estava torto. Precisava deixar o carro numa oficina. Dar uma geral. Passaria o fim de semana em casa com a família. Nem pensaria em ligar para Adelaide Maria.
Abr24
Leonardo de Magalhaens
poeta, contista, crítico literário
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