terça-feira, 28 de novembro de 2023

Nalgibeira e Solfejos do Querer Bem : Poesia e cantoria em busca da infância perdida


 

 

 

Sobre Nalgibeira e Solfejos do Querer Bem 

Livro e CDs de Antônio Souza Capurnan 

Contagem MG 2023




    Poesia e cantoria em busca da infância perdida



    Introdução


    Depois de dois e meio de espera, finalmente, temos em mãos o livro e CDs lançados pelo professor, poeta e cantador Antônio Rodrigues de Souza, ou Antônio Souza Capurnan, com sua riqueza poética nutrida da fala e da cantoria popular. Trata-se do livro de poesia infanto-juvenil Nalgibeira e os CDs Indezrima e Pavios Negreiros juntos no Solfejos do Querer Bem. Poesia e cantigas e madrigais e lundus e sambas e toadas para testemunhar a manifestação cultural popular.


    Antônio Souza Capurnan é autor consagrado por obras tais como Flores no Pote (2002) e Valsa Mínima (2015) com seu estilo baseado numa linguagem popular que lembra um poeta Manoel de Barros e um cronista Olavo Romano. Vozes que espelham as falas populares que estão presentes na vida interiorana. A voz do campo vem falar poetica e musicalmente nos lábios do homem (educador, intelectual) que desbrava a cidade grande, o mundo de asfalto e aço.


    A literatura mineira é tecida com as tensões entre a vida do campo e a vida da cidade. Grupos se retiram do campo para a cidade e se mostram deslocados: querem entender a vida urbana e ao mesmo tempo conservar as tradições rurais. É o que move a literatura nossa das Minas desde Cyro dos Anjos e Otto Lara Resende e Guimarães Rosa até Olavo Romano.[1]


    A poética de Toninho Capurnan é uma tradição e um resgate das cantigas e toadas da roça, das resistências de indígenas e negros, de aldeias e quilombolas. É uma expressão lírica de recuperação do tempo perdido e um protesto contra a destruição do ontem, carregado de afetividade, em nome de um futuro artificial e tecnocrata.







    Nalgibeira



    É poesia infanto-juvenil para crianças e adultos ou poesia crônica de vida, ao estilo da poética de Manoel de Barros. [2] É uma linguagem oral, singela, sincera, saudosista, lírica mas não ingênua. Há um adulto que recupera a fala infantil, mas que sabe que a infância se foi, a ingenuidade se foi. Não represa amarguras, mas está ciente das perdas.


    Capurnan rememora e revive poeticamente sua infância na geografia sentimental da vida rural no mundo que visitamos muito com a literatura regionalista de José Lins do Rego ou Graciliano Ramos, ou infanto-juvenil de José Mauro de Vasconcelos.[3]


Estes são meus irmãos. 


Viviam 

Na casa antiga,

Remendada e grande,

De chão batido e janelas esparramadas.

De frente para o sol, 

Uma mata pequena, 

O curral, 

O córrego. 




É a crônica das origens a criar a tessitura dos poemas que narram vida e labutas de pai e mãe e irmãos e irmãs numa vida que está situada num dado tempo e espaço, o ontem e o campo. As tradições da vida rural ainda existem, mas o menino que veio do campo cresceu e se perdeu na vida urbana. Seu desejo (e senso de dever) agora é testemunhar o que foi vivido e nos apresentar as suas origens.


Meu pai era branco e indígena.

Minha mãe era indígena e negra.

Ele tinha olhos de saudade.

No olhar de mãe, marejava um vigor de folha seca.


[...]



Meu pai era homem da terra e de sertão. 

Forte e trabalhador, nosso pai 

Acariciava a terra, os cavalos, os horizontes de boi.

Adentrava em reza os segredos do chão.


[...]




    A narrativa poética conversa bem com a criança dentro de nós, os leitores e as leitoras adultas, que amamos e idealizamos nossa infância, não importa se sofremos, se choramos, se passamos fome e carência. A emoção nos prende pelo espelhamento, quando imaginamos nossa vida na mesma fazenda, tomando banho no mesmo rio, plantando na mesma roça. Vivemos nas cidades, até nascemos aqui!, mas somos saudosistas do campo.







Indezrima e Pavios Negreiros



    Na produção dos CDs, o poeta e cantador Antônio Capurnan se cerca de amigos, amigas, poetas, cantadores, músicos, recitadores, contadores de estórias, performáticos da voz. É uma obra coletiva por excelência, com várias participações e contribuições as mais diversas, de tradição lusitana ou de matriz africana ou de herança indígena. Várias vozes e ritmos, mas tudo está entrelaçado com poesia e melodia, com forte marca autoral.


    Vários poemas estão em forma musical em plena acepção de ritmo e melodia. A poesia de Capurnan já é melodiosa, cantante, mas agora o corpo musical caprichou. As músicas em vários estilos ora animadas, ora melancólicas tentam retratar os vários sentimentos do poeta em sua jornada de recuperação (improvável !) da infância perdida.



O tempo habitava em mim doce e comum

Na fazenda atemporal 


O Tempo [Indezrima]


...



Agora a terra ia mudando de lugar e a vida

Sob os pés foragidos e descalços dos homens de Salinas


Os Salineiros [Indezrima]





Soube depois de grande 

Que a casa onde nasci fora vendida por mãe 

E que em torno dela cresceram capim e ervas daninhas

E que portas e taramelas ruíram 

E tudo dentro ensimesmou de verde sol


Outras janelas/ Taramelas [Indezrima]




    O poeta recorre às várias referências e intertextos que despertam mais lembranças de obras clássicas de nossa literatura mineira e brasileira (e universal !) quando deixa aflorar uma intertextualidade com o conto de João Guimarães Rosa, A terceira margem do rio [in Primeiras Estórias, 1962], uma narrativa profunda, mítica, mas familiar.


A correnteza que leva a vela 

É a mesma que leva o homem 

É a correnteza com a qual o peixe 

Aprende desde cedo a navegar 


[…]



A Terceira Imagem do Rio


[Pavios Negreiros]




    Também em referências aos eventos mundiais, como sua menção à paisagem espanhola, com seus moinhos de vento, nas páginas de um Dom Quixote, ou a Guerra Civil Espanhola [1936-1939], de triste memória e inspiração para vários autores, dentre eles Hemingway, George Orwell e Javier Cercas. Além dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. [4] É o contraponto da cosmopolitana e republicana Barcelona em contraste com a conservadora e monarquista Madrid. São as forças da tradição e do progresso em antítese antes de uma síntese.


A minha alma é como Barcelona 

Uma cidade tantas e tantas vezes ocupada 

...

A minha alma é como Barcelona uma cidade sitiada 

Por moinhos de vento e alucinações de além-mar


...


Integridade na Ambiguidade 


[Pavios Negreiros]



    Referências e intertextos, mas também metapoemas, quando o Poeta se coloca na problemática, se explicita enquanto voz que expressa um recorte da realidade, integrado no coro das lavadeiras, nos cantos maxacalis, nas voltas do ribeirão, nos sambas e lundus, nas rimas e arranjos, nos choros e serenatas, sempre lá o Poeta camarada, de mãos dadas, participando e cantando, lavrando cada verso e afundando até a lama.


[]


Poeta bom vira peixe

Se enrosca 

Na trama na rede no feixe 

Poeta é pá-que-lavra 

Voa bem fundo o poeta 

[...]

Mora na boca da lavra o poeta 

Bem dentro onde a larva é a meta 

E a mata 

[...]


Inseto [Pavios Negreiros]




    Assim é um convite à festa e ao sarau, com rima e cantadoria, dialogando infância e tradição com resistência e diversidade, a obra poética e musical de Antônio Souza Capurnan, em Nalgibeira e CDs Solfejos do Querer Bem, Indezrima e Pavios Negreiros. É ler, é recitar em voz alta, é entoar uma prece, é cantarolar, é se emocionar com serenata e cair no samba.


BH



Nov23



Leonardo de Magalhaens

poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG

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Notas


[1] Cyro dos Anjos, autor de Amanuense Belmiro [1937]. Otto Lara Resende, autor de O braço direito [1963]. joão Guimarães Rosa, autor de Manuelzão e Miguilim [1964]. Olavo Romano, autor de Casos de Minas [1982].


[2] Manoel de Barros (1916-2014), autor de Menino do mato, Memórias inventadas e Exercícios de ser criança.


[3] José Lins do Rego, autor de Menino de Engenho [1932]. Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas [1938] e Histórias de Alexandre [1944]. José Mauro de Vasconcelos, autor de Meu Pé de Laranja Lima [1968].


[4] Dom Quixote [Don Quijote de la Mancha, 1606] obra clássica do espanhol Miguel de Cervantes. Ernest Hemingway, autor de Por quem os sinos dobram? [1940]. George Orwell [Eric Arthur Blair], autor de Lutando na Espanha [Homage to Catalonia, 1938]. Javier Cercas, autor de Soldados de Salamina [2001].





LdeM

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Poesia se faz com expressão e experiência - Obra de Hyeda de Miranda MG

 


 

 

Sobre 30 Anos de Poesia e Arte

da autora Hyeda de Miranda Campos

[Rio Vermelho, MG, 1974-]



    Poesia se faz com expressão e experiência



    Introdução


    Não force o poema a desprender-se do limbo”, ou seja, sair do nada, escreveu o poeta mineiro e brasileiro e universal Carlos Drummond de Andrade em seu belo poema “Procura da Poesia”. Para escrever poemas não basta ter belas palavras “tiradas de um estado de dicionário”. Não basta dominar um léxico ou articular bem as palavras. É preciso extrair da experiência a substância da Escrita, como fez um Marcel Proust ou um Pedro Nava.


    Poesia se faz com experiência, observação, labuta, competição, esforço e superação. Poesia não prova nada e nem quer ser prova de algo. A poeta, o poeta, visionários, fazem da vida a matéria da Escrita e deixam a Obra como testemunho. É preciso viver o dia-a-dia, labutar seriamente, desbravar o “grande sertão” (que é perigoso!… segundo Guimarães Rosa) O que faz a Poeta? O ofício e a labuta da criação poética…


    O poema é a pintura que a Poeta, o Poeta, arautos, deixam para os olhos e ouvidos e mentes, como uma aquarela que se baseia em tonalidades de sentimentos, tecidos de emoções que precisam ser expressadas. A Escrita então surge como um quadro pintado num equilíbrio de sentir e pensar, usando sons e palavras e não misturas de tintas e cores.







    A Obra


    Em sua obra de maturidade, 30 Anos de Poesia e Arte, a autora Hyeda de Miranda Campos, natural de Rio Vermelho, MG, vem apresentar sua Escrita tecida com experiência, ao abordar os diferentes aspectos da vida, a vivida e a idealizada. A autora não se preocupa com julgamentos alheios, com críticas e críticos, mas entende que a Poesia vem como arte e missão. É preciso sentir e escrever, dominar a arte, sem julgar, sem rotular, sem classificar em gavetas da razão e da teoria.


    O que é poesia? Quem pode dizer? "Quem há de julgar a poesia? / Classificá-la, rotulá-la... / Dizer se é quente ou fria?" [“Poesia aos Quatro Cantos”, p. 44] Em tons de sentimento e razão, a Poeta Hyeda de Miranda vem pintar sua poética, assim apresentada tal qual uma aquarela diante dos olhos (e ouvidos) dos leitores e leitoras, com a missão da Poeta de "colorir o mundo",


Lá vai o poeta / Gênio maltrapilho

E sua poesia de fome / Suicídio e exílio.


[...]


Espalhando poesia / E colorindo o mundo

O ofício do poeta / É ser mesmo um vagabundo.


Poeta de rua / Como o cordel mais popular 

Que rima luz e trevas / Sem nunca se cansar.


Vai gritar poesia na feira / Pintar uma tela com todas as cores 

Dançar a dança da vida / Malabarista de grande dores.


[“Aquarela”, p. 22]



    A Poesia então vem agir no mundo, não apenas situar numa página de livro ou cartaz / mural numa parede, mas como função de expressar uma visão individual de mundo, de um ser de emoção e razão, daí seu valor. É uma resposta ao "poesia pra quê?" e ao "poesia tem valor?" como um declarar de princípios: poesia não tem "valor de mercado", mas de expressão.


"Poetas não têm relógios / Por isso são tolos 

Tolos e livres / Dos limites e consequências do tempo.


Poetas não têm patrimônio

Senão sentimentos 

Sentimentos sem sentido 

Sem nenhum valor no mercado."


[“Poe$ia”, p. 43]



"O poeta quer mudar o mundo / É lunático

Patético / Exótico!"


"O poeta quer pegar a estrada / Armar o circo

Pintar a cara / Abrir as cortinas"


[“Outra Vez”, p. 36]









   Expressão de sentimentos e de experiências, é assim a Poesia como um olhar sobre a pluralidade do mundo, e a Poeta é uma figura observadora, registradora de sensações, de várias vozes que disputam a atenção, povoando as ruas e telas e redes sociais, pediam nossas reações de amor ou ódio. Todas e todos querem atenção e a Poeta está aí para ver e ouvir e relatar.



"Meu mundo é feito de vozes" [“Vozes”, p. 46]


"Nossos olhares renasceram mais profundos

Capazes de ver além das aparências separatistas.

Agora a natureza sopra vida!"

[“Releitura”, p. 45]




    Como surge a Poesia depois da emoção e da observação? A Poesia se manifesta como uma "explosão", um súbito existir como um jogo de pensar e sentir e articular palavras. Numa revelação metalinguística de um complexo tecido de algo-lá-fora e algo-aqui-dentro, onde a consciência tenta estruturar e equilibrar exterior e interior, e, no meio disso, criar um objeto de expressão -- seja pintura, seja teatro, seja música, seja poema.


Cada obra é uma explosão / Como no princípio 

Mergulha-se no caos / Para a criação 


[...]


E a poesia é luz / Fogo de um milhão de sóis 

Alienígena, alienada ... / Alucinógena! 

Cometa sem rota / Que na poeira do cosmos 

Entre idas e voltas / Quer ser Terra, quer ser Lua, 

Ser de Saturno o anel / Espalhar-se por toda Via Láctea...

Universo de papel !



[“Big Bang”, p. 25]



      Assim nesta viagem poética com Hyeda de Miranda Campos, em sua obra 30 Anos de Poesia e Arte, podemos alcançar outros planos de leitura, nutrindo mais e mais o desejo de experimentar a Poesia, de conhecer vida e obra, de subir no palco e participar do mundo plural da Escrita, que fala da vida e da própria Escrita, ao expressar a condição feminina e a humana, aprendendo e testemunhando, vivendo dia a dia, verso a verso.





Out / Nov 2023






Leonardo de Magalhaens

poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG