Sobre De tanto bater com o osso,
a dor vira anestesia
[SP: Penalux, 2021]
poemas de André Giusti [1968-]
Poesia que leva para fora da zona de conforto
De tanto andar a esmo,
A distância fica curta.
De tanto bater com o osso,
A dor vira anestesia.
A Poesia vem para surpreender, vem para nos chocar. Uma poesia sem causar arrepio ou ranger de dentes é um amontoado de palavras numa folha. A poesia não é uma anestesia, mas uma dor de dente aguda. O poema não vem consolar ou ser um conforto estético, mas um proveitoso tapa na cara.
De tanto bater com o osso, a dor vira anestesia, do poeta carioca André Giusti, atual morador de Brasília-DF, é uma coletânea de poema, dos anos 1980 até nossos dias, com amostras de várias fases do poeta, a cada época e suas demandas. Poemas que causam choque, arrepios, mal-estar, angústia, riso histérico.
Poemas da fase marginal, estilo poema de mimeógrafo, irônicos, eróticos, prosaicos, com cenas do cotidiano, como se fossem notícias tiradas de um jornal, ou de boletim de ocorrência qualquer. O que o poeta faz é reelaborar liricamente um evento prosaico, cotidiano. O poeta faz um ‘poema de pequenas causas’, “A chuva nos chama da calçada / com a voz perdida de mãe / querendo saber se levamos casaco.” (1990)(p. 15)
Nos anos 1990 percebemos que o poeta passa a elaborar mais sua poética, com referências e intertextos com seus poetas e cronistas favoritos, seja Mário Quintana, seja Rubem Braga, agregando suas meditações de um jovem adulto. A passagem do tempo, a condição efêmera da vida, o fenômeno da morte. Percebemos claramente, enquanto leitores, a evolução estética do autor.
O mundo inteiro flutuava
cheio de brisa e de luz.
Sentado na praia no final do verão
me vi clarividente astro
tocando com as palmas
as portas de um sonho bom.
(Místicos, 1991, p. 17)
Por agora serão o bastante
velhas interrogações
sobre limites hipotéticos
das galáxias
e o que se destina a todos nós
após o sopro desconhecido da morte.
(O abstrato vai à praia à noite, 199, p. 18)
O relacionamento amoroso, a busca do afeto do outro, da outra, passam a ganhar mais corpo no poema, não só pelo lado erótico, mas de convivência mesmo, de troca de experiências, mais do que de impulsos libidinosos. “o dois se beijam / se consomem / e emperram a alavanca do tempo. / Ela olha séria / Ele tem medo. / Os dois estão se amando.” (Eles dois, 1992, p. 21)
Inquietações de jovem adulto, no mundo do investimento amoroso e do crescimento profissional, profundas e motivadoras, transbordam nos versos da fase anos 1990, com a questão da exploração do trabalho, da dedicação do jovem empregado que vende seu tempo e sua força-de-trabalho no livre mercado. “Quem paga mais para ser o lobo / que vai me jantar / na frente de todos / na sala da diretoria / na fila do cartão?” (Corporation Trade Center, 1992, pp. 22-23)
De sua consciência o poeta tece sua poética, como superação das circunstâncias, como uma forma de resistência estética contra as forças que acabam por ‘despedaçar’ o indivíduo na vida moderna,
É fato que à vezes acordo moído
triturado
uma parte em cada lado.
Mas não me deixo levar pela
varredura pública,
e mesmo que a custa de dor e sangue
faço do dia uma arte
miraculosa
de juntar pedaços.
(Das tripas coração, 1992, pp. 24-25)
Vida moderna que confronta o poeta como um adversário impossível de ser derrotado, contra o qual guardamos um rancor e um ódio que apenas vem a sufocar nós mesmos, ao ponto de querer dar um fim a própria existência,
Com quantas pessoas me confronto
quantas amizades não tenho
quantas inverdades escuto
quanto ódio já guardei até no sonho.
Quantas vezes me matei
sem ter me jogado lá do alto
do parapeito
do terraço
no fosso do elevador em manutenção.
(Edifício Avenida Central, 1994, pp. 31-32)
O poeta com plena consciência de sua estética, da sua construção de linguagem, se aprofunda nos metapoemas, fase de maturidade, com as falas que falam de si mesmas para um outro Eu deslocado para a condição de Outro. Ou um desafeto, ou uma ex-amante com quem o poeta quer falar, desabafar, mas sabe que não será ouvido.
Escrever é o que resta,
posto que a poesia
é a única das forças
que ainda não lhe arrancaram.
Escrever escrever escrever,
mesmo que sejam cartas
ao primeiro ministro da Namíbia.
(O gênio da raça, 2017, pp. 59-61)
Muitos poemas ficam mais concisos, com as palavras cuidadosamente escolhidas, e cada estrofe é um haicai, onde às vezes o título do poema tem mais caracteres que o próprio texto. E os poemas de amor e paixão ficam mais líricos e maduros. Com uma elaboração maior do que a pulsão da juventude. Mas ainda dentro do poeta está aquela essência de rebelde lírico de leitor da geração marginal, com seus desabafos e trocadilhos e palavrões.
É quando nos anos 2000 começa a abordar a ‘geração’, o pessoal que nasceu em fins dos anos 60 e viveu a juventude nos anos 80, ao som de Pink Floyd, Lou Reed e U2, lendo dos marginais e as edições da L&PM. Tendo consciência de si mesmo e sua classe social, o eu lírico se percebe produtor de textos dentro de contextos, num conjunto de encaixes e conexões, desde sua perspectiva de homem branco, heterossexual de classe média. E passa então a tecer críticas a ‘sua geração’, como faziam as bandas rock’n’roll dos anos 60.
É o momento atual quando o poeta André Giusti, em plena maturidade, em seu impactante De tanto bater com o osso, a dor vira anestesia, faz uma radiografia da sociedade na forma de pérolas poéticas, com perspicácia e sabedoria, distribuindo ironia e sarcasmo contra os acomodados e os reacionários, os sonolentos e os conservadores, os que foram incendiários da contracultura e hoje são os ‘caras escrotos da minha geração’, hoje os tiozões do zap pregando ‘intervenção federal’. São meras ‘personas’, as máscaras que carecem de essências e vivem manipuladas pelos poderes da vez. Máscaras e messias não faltam para uma geração que já perdeu seus ídolos e seus rumos, seus ideais e suas utopias.
Naquele tempo
jovem lutava por liberdade,
não era costume nosso
defender costumes.
…
Naquele tempo não havia apenas Rock’n Roll all nite.
Naquele tempo também havia esperança.
(Naquele tempo, 2020, p. 78)
Leonardo de Magalhaens
poeta, contista, crítico literário
Bacharel em Letras FALE / UFMG
.