sobre Enlevo [2020]
obra poética
do poeta Adriano Borçari
[1974-]
Poesia extraída do drama cotidiano
Temos na obra Enlevo de Adriano Borçari uma poesia nascida de divagações, digressões, meditações sobre o cotidiano, sobre o viver em família, sobre os poucos momentos felizes da vida, sem rebuscamentos de erudição ou citações de mitologias ou devaneios místicos, como podem imaginar os beletristas da poesia enquanto construto complexo. Às vezes a Poesia está mesmo é no mais simples.
O Poeta está em busca de paz, de posicionamento no mundo, na consciência de ser parte de algo, estar no lugar certo, cumprir suas potencialidades, não desperdiçar tempo e energia com inutilidades. Ter a consciência de ser um elo numa enorme cadeia, de ancestrais e de futura prole,
Volto a ver, o que o avô outrora viu
Antes dele, tantas gerações
Pavimentaram caminhos inconclusos que hoje percorro
Até a beira de meu existir
[In finito, p. 14]
É a busca de pertencimento que leva o Poeta às indagações, as antigas e novas, de ser no mundo, de ser num grupo, de pessoa, um indivíduo e um cidadão num coletivo, numa sociedade, de desiguais, de privilegiados e de miseráveis,
Mas se não pertenço à manada a qual se referiu Zé Ramalho
A quem pertenço?
Qual grupo componho?
Pois não estou entre os favorecidos
Nem tampouco à margem!
[Dança das engrenagens, p. 16]
Sua consciência de lugar no mundo conduz o Poeta a uma percepção de ciclo cósmico a partir de pequenas constatações, de que tudo é movimento, tudo se move, tudo fluindo como um rio, rumo a uma Infinidade, ou Eternidade, aqui e no futuro, como sucessão de agoras,
Mas sempre em movimento
Neste movimento, de contornos aos obstáculos
Visita velhos caminhos e encontra outros novos
Entretanto, sempre fluindo de volta
[Rio cheio, p. 20]
Daqui, de dentro do efêmero
Me esgueiro para alcançar um novo olhar
Na esperança de mirar algo
Que não se meça:
Nem pelos segundos
Nem pelos cifrões
..
A luz se faz trevas
O novo envelhece
..
Só então,
Me abandono no Eterno
[No eterno, p. 24]
O abandono ao Eterno lembra Carlos Drummond de Andrade no poema ‘Eterno’ em sua Antologia Poética, Eterno / E como ficou chato ser moderno. / Agora serei eterno. // Eterno! Eterno! / O Padre Eterno, / a vida eterna, / o fogo eterno. O poema de Drummond de Andrade vem mostrar a relação do indivíduo consciente com a Divindade, o Eterno que habita dentro e lá fora, no microcosmo e no macrocosmo, como revela seus versos de fé,
Mas a inteireza do Mistério,
Do que não se pode ver, nem ouvir, nem tocar
Mas que ao fechar os olhos
Olhar para dentro e só ver Aquele: Eu Sou!
[Fé, p. 34]
O Poeta tem a consciência de ter a palavra como uma revelação, desvelar de si mesmo, um aprofundar-se para melhor conhecer-se, e sua posição no Cosmo e sua existência num ciclo de vicissitudes,
Assumo-me, desnudo-me
Frente e verso.
Encontro no aparente, cansaço.
Uma lombeira existencial dos altos e baixos.
[Paz, p. 38]
Até ele vem sua consciência de uma vida de classe média entre muros e grades, pois aqueles que detêm bens se defendem daqueles que não têm posses, deixando uma paisagem de segregação, com condomínios parecendo mais aquelas fortalezas medievais, como uma nova Idade Média dividida entre nobres e plebeus,
Somente muros
Cercas elétricas e concertinas
Até onde o consumo nos levaria?
Mais grades mais muros
Daqui d'onde escrevo
Carandiru da classe média baixa
[Mar de concreto, p. 46]
Para dar novo fôlego existencial aos seus poemas temos os registros de cenas da vida familiar, com observações simples e profundas, como pequenos flashes de um microcosmo, nos fins de semana no abrigo do Lar,
Respiro fundo
Encho a alma de vida
Da vida que partilhamos
Essa é a nossa casa
Fazemos de cada momento, nosso, inteiro
[Mais um sábado, p. 59]
Nossa sala, nosso lar
Amo estar aqui
Seguro sou que isso é paz!
Vivo a vida, vivo o dia
Hoje é domingo
[Domingo, p. 79]
Em contraponto temos relatos de verdadeiros absurdos da existência em figuras inusitadas que conformam a banalidade do absurdo, que pode aparecer a plena luz do sol, e deixa aquele desconforto a produzir epifanias, que se explicitam nos versos, mais sobre si mesmo do que julgamento de absurdos alheios,
Diante dos absurdos que hoje encontro
Sabedor de que assim me fiz
Só me resta ser grato
Por me desfazer e refazer
Da absurda condição de produzir absurdos
[Duelo do absurdíssimo, p. 63]
Em tais oscilações de dentro e fora, micro e macro, consciência e efemeridade, vida comum e absurdo, o Poeta Adriano Borçari tece sua obra poética Enlevo de versos simples e confessionais, deixando pérolas nas entrelinhas que um/a leitor/a atento conseguirá pescar com um esforço de concentração. O caso é se teremos tempo para tal numa vida pós-moderna de constantes turbulências e mil distrações.
ago / 22
Leonardo de Magalhaens
poeta, contista, crítico literário
Bacharel em Letras / FALE / UFMG
by LdeM
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