sobre Vagem de Vidro [Brasília, 2013]
de Salomão Sousa (1952-)
Poesia adensada de muitas falas
Andar entre livros é salutar e prazeroso. São descobertas a cada passo, novas linguagem, e novos estilos a cada volume aberto, a cada parágrafo digerido, a cada verso degustado.
Descobertas que desvelam novos olhares de novos autores que deixam sua marca estilística na obra poética do novo século. Encontramos autores que tiveram vida longa e obra condensada em três ou quatro volumes, ou um livro magistral que resume tudo; temos autores que morreram cedo e deixaram obras como amostra do gênio que poderiam ter sido, e temos autores com extensa produção, cuja leitura ocuparia sem devida boa parte da nossa existência.
Assim um von Schiller, um von Goethe, um Victor-Hugo, um de Balzac, um Thomas Mann, um Hermann Hesse, um Drummond de Andrade, um João Cabral de Melo Neto, um Ferreira Gullar, um Antonio Miranda [1], grandes autores por serem grandes leitores, atentos e vorazes, e assim um Salomão Sousa, com vários títulos com sua autoria, desde final dos anos 1970. Vivendo entre livros, nos corredores de estantes e volumes convidativos, pronto para acessar letras e linguagens, outras épocas e universos.
Assim a obra Vagem de Vidro [2013] enquanto exemplo de leituras acumuladas, intertextualidade, metaliguagem em muita erudição. De faro, podemos adentrar os mundos da mitologia greco-romana, ou das narrativas bíblicas, com soberanos egípcios, ou reis babilônicos, e também poetas renascentistas, primeiras utopias, e até agências de espionagem. Eis aqui uma Obra a completar uma década e merecedora de uma leitura atenta.
Os temas sobre os quais se dedica os poemas densos de VAGEM DE VIDRO são os mais variados. As preocupações do Autor são muitas, desde a condição humana a metafísica, desde a vida rústica a correria nas cidades, desde as figuras mitológicas aos labirintos do dia-a-dia. Sem mencionarmos os metapoemas... Aqui faremos alguns recortes, destacando alguns em lugar de outros. Longe qualquer possibilidade de tratar aqui de todas as cores e as nuances do arco-íris.
É a partir de imagens selecionadas do cotidiano, em flashes e polaróides, cuidadosamente recortados e colados que o Poeta apresenta a nossa condição, ou melhor, a Condição humana, sempre diante de algo lá fora, cercado de mercadorias e promessas, entre os direitos e os deveres,
O homem deixa cair collants, pisa nas golas
e em ruído a bateria e a tampa do celular
– o camelô auxilia-o a remontá-lo
Volta atrás para completar a lista
estojos sapatilhas estopa toucas
Acresci escovas rendinhas grampos
aos sacos que deixo na casa da ex-nora
O homem passa em frente ao tribunal
sem entrar para a sessão das debêntures
[pp. 26-27]
numa condição sempre sujeita às tempestades – mesmo aquelas em copo d’água! – em reviravoltas de algum roteirista ousado, seja Providência ou Destino, visto que não sabemos o dia de hoje, muito menos o de amanhã, daí que já estamos no palco sabendo que ‘viver é perigoso’, e que é ‘preciso resistir’, que nosso esforço é o de ‘vencer batalhas’,
Homens de fama com guerras para ganhar
Foram homens com colheitas
espreitas para não perder
Venciam de manhã em Turquim
e à noite já organizavam novas batalhas
com adversários de valentias novas
valentias quase em mim
[…]
Eram homens rápidos
em deslocar fronteiras
[p. 44]
Numa condição tão incerta de uma vida tão efêmera, o ser humano começa a pensar em coisas duradoura, ou outras realidades ou outros mundos, pronto aí está a criada a Metafísica, a brotar da condição do eu no mundo, na ‘futilidade dos dias’, como se na consciência da inutilidade de todas as coisas,
Esqueci se gritei nas pequenas câmaras
em frente aos frutos de cores inúteis
de sabor inútil na futilidade dos dias
Não me lembro das horas e se não eram horas fúteis
[p. 42]
quando este sentimento de ‘futilidade dos dias’ revela a profunda consciência da falta ou a ausência que pesa sempre,
aí sim era o silêncio da esperança
se o sonho era a tapeçaria tingida de ausência
e quando o húmus não atendia às sementes
também não havia arranjo para as cores
e a poeira a fluir / fluir da linha da fundura
águas contaminadas / se foram / foram antes
[p. 32]
E maior ainda a consciência do efêmero, do fugidio, no pleno cotidiano na cidade, nas incertezas das ruas, nas arenas de agressões e violências, com as figuras da miséria e da exploração, do cansaço e da servidão, onde direitos humanos são apenas palavras num livro técnico numa prateleira da biblioteca da faculdade de Direito,
Algum bêbado apocalíptico
invade o ônibus, a cidade
algo desfruta dentro de nós
somos os sinais em outros
[p. 53]
Fizeste por tua cidade
as valas, o cercamento
Andaste pelas grotas
pelas ruínas de suas minas
que uma cidade é antes
o que homem esgota e funda
e falseia: arrobas de ouro, sinetes
[p. 66]
de modo que a vida natural, a rural, a rústica surge como um contraponto a cidade, ou antes, o contraponto ao urbanizado, a destacar então o aspecto agreste, o que chamamos de sertão, onde “viver é perigoso”, de Guimarães Rosa, onde o “sertanejo é, antes de tudo, um forte”, de Euclides,
Aprendi na beira do rio Claro
com o alfabeto dos buritis
as letras de cheiro, os jambos
com aulas de espinhos de ouriço
[pp. 60]
Tive meu convívio na leira da carpina
gafanhotos agarrados às folhas vivas
os homens criam nas intervenções divinas
estive ajoelhado na estrada de Moquém
aquém de mim operavam os milagres
[p. 67]
Engano se estive na cidade
Se a cidade existisse
teria homem indo para o trabalho
teria mulher indo para o amor
Não teria veneno e siris mortos
ou mulheres a parir cães e gatos
Não seria a saudação de comensais
com urros de burros e coices
[p. 80]
Mas seria antes uma vida rústica inalcançável, como se fosse outra utopia, aquela do homem natural, esboçada pelo filósofo Rousseau [2], sobre o homem puro que se corrompeu ao adentrar o mundo da civilização urbanizada e artificial, em busca de comodidades e prazeres fúteis,
Quase acreditei nas montanhas
se anunciavam intocáveis
férteis para as intempéries
para algum gesto abrupto
estúpido. Ou quedas
Quase atingi a lascívia das sombras
a naturalidade das ervas nas ranhuras
[p. 81]
E o homem, em sua pequenez e miséria, é obrigado a recorrer às máquinas, que ele mesmo inventou, para facilidades ou avanços na matéria, de modo a tornar-se depende e mesmo serviçal do poder das maquinarias, como nos revela o poema “a máquina fala por mim” [p. 74],
A máquina me traz
todas as paisagens pra casa
Se peço algodão
a máquina me dá a paisagem
mais felpuda e branca
me tece a paisagem retilínea
se é pela luz que a linha estremece
[…]
A máquina me dá o lustre
de textura em densa limpeza
Só pressiono a tecla
para pedir a ausência da fuligem
e uma alternativa ao mundo das máquinas, aquele das artificialidades, é a jornada ou a viagem, “Fala das muitas viagens / das muitas vezes desfeitas / malas e próteses /…/ dos homens que poderiam / voltar da guerra” [p. 52], quando a viagem, a jornada, a estrada aparece mais como um chamamento à liberdade, como sonhavam os jovens da Geração Beat, atravessando os States em caronas e vagões de trens [3],
Manda-me a estrada
em que deixas teus rastros
em que arranhas teus seios
a leveza de tuas aventuras
[…]
A estrada ladeada de vagens
e casas térreas de formiga
Manda-me a tua liberdade
a janela para os lados do sol
[p. 71]
Viajar sem conhecer as distâncias
se haverá as palmas os presépios
casais perto das folhas
a roçar a roçarvalho
Viajar sem encontrar
Viajar e desejorvalhar
sem abismo sem calhas
[p. 72]
Viajei. Vi homens no luxo
Vi crianças no lixo
e no lixo tropecei
[…]
Viajei. Vi e apalpei
E se vi e acreditei foi pela flor agreste
[p. 84]
Jornada até a odisseia de Odisseu, ou Ulisses [4], o herói da Guerra de Troia que retorna para sua terra, a Ilha de Ítaca, após muitas aventuras e desventuras, sendo estrangeiro em terra estrangeira,
Ulisses, depois de ti, instaurado o fim das aventuras;
na antessala, extintos o bulício e a castidade dos amantes.
Ao encerrar tua jornada, legaste o enfado, o fastio,
fio emaranhado em fuso sem memória.
[…]
Ulisses, não navegaste no computador,
e aí também não acharias a porta do retorno à pátria, verso
e viagem a sucumbirem nas janelas das redes sociais,
a se desencontrarem no led do papel.
[p. 20]
Ulisses, ou Odisseu, é um símbolo do Viajante que apreendemos da mitologia dos excelsos gregos clássicos. Em outros poemas encontramos outras várias referências às figuras da mitologia grega tanto quanto a erudição permite, os mitos de Orfeu e Eurídice, à Guerra de Troia, as jornadas dos heróis, Aquiles, Heitor, Ulisses.
E também a imagem do Poeta, do grande músico, Orfeu, outro da mitologia grega [5], que em sua busca da mulher amada é capaz até de descer aos Infernos, daí a aflição do Poeta-cantor, ou dúvidas de Orfeu, ou Orfeu em agon com a Morte,
Orfeu desvalido das palavras
se solitárias / quase sem som
tarraxas / rosário nos punhos
Sem água / botões de marfim / sem
elmos de flâmulas douradas
[…]
Terás de mover o teu ataúde
fazê-lo aríete de arrombar
os portões do esquecimento
No sepulcro não haverá outras inscrições
[pp. 89-90]
Numa pátria de abandono
Orfeu entalado em montagens
O ócio só a expandir o pântano
[p.44]
Alaridos chapas de vidro moídas
fuselagem mãos em carvão nos entrepostos
explicações às dúvidas de Orfeu
não surgem com os torsos animados
[p. 31]
as palavras não fossem
enfeites para a gaveta
o leite fosse para o corpo
com justiça para as tetas
ser o broto a enxuta lama
a esquecida brutalidade das águas
cheio de terra de pó de asas mortas
tudo merecia ser menos vômito
tudo mais pólen entre as talas
entre os pés quebrados de Orfeu
[p. 33]
O Poeta falando do Poeta mitológico abre espaço para o aparecimento aqui do fenômeno do metapoema : quando o foco é a palavra, a linguagem em si mesma, pois “A língua mofada sem a munição das palavras // Se há lugares para não calar / fora de mim tudo se ilustra em fala” [p. 31]
Palavras serão inventadas
e em bocas mais recentes
exalarão novos enredos.
Serão organizadas estrelas
plausíveis, significados
para gestos inaugurais, para
os produtos da oficina, palmas
enrugadas sobre a sina do rosto.
[p. 94]
Aqui jaz o poema
que não se quis
Insistiu avaros nadas
[...]
Aqui jaz o poema
que não se quis
[p. 16]
a minha palavra não acena só a asma
o meu cinismo / a minha ventriloquia
flui para outras laringes / floras intestinais
floresce noutro músculo a fava da palavra
quieta enquanto aguarda a carga
do húmus salivado de outro corpo
com o torpe estilo de amargar
aromatiza a língua ao redor do fétido
[p. 28]
A palavra definitiva
na fala se ausenta
contida de sombra,
evolução do palco e do véu.
Em partes as palavras
não se reconhecem.
[p. 29]
O Poeta se debruça sobre sua arte e engenho, sua ferramenta, seu criar imagens e emoções com palavras cuidadosamente engendradas, num mundo criado que denominamos ‘texto’, tessitura de outros ‘textos’, pois “Convenhamos. Depois de escrito / tudo acontece noutro texto, / noutro topo, na rotina de outro homem.” [p. 58]
É uma Poesia erudita e densa que não se perde em amargura e cinismo, em denúncias apenas, mas ousa a utopia, o vencer a guerra e o entronar da paz, como uma construção diária, uma esperança que transcende o cotidiano de ansiedade e futilidade,
das ruas muitas vozes solitárias
dos homens que poderiam
voltar da guerra
ser os amantes igualitários
após desarmar os abusos
das hordas das discórdias
[p. 52]
Com os homens da fina civilidade,
que aplainam onde há a discórdia,
onde há a suspeita,
e a madeira é fértil. Trabalharemos
com a facilidade da ternura.
[…]
Estaremos com os homens
limpos diante das câmeras,
dos lápis da História.
[…]
Não iremos nos esconder
fora das fronteiras.
[p. 64]
É preciso ir além dos palácios de cristal, das casas de vidros, dos castelos de cartas, ir ao profundo, ao denso, abrir mão das artificialidades, das tantas futilidades, “Homens que vão ao pré-sal, / ao fundo do coração.” diferente dos hollow men, homens ocos, de Eliot, que povoam os últimos dias. [6]
Em Vagem de Vidro, coletânea densa de poemas densos, o Poeta Salomão Sousa é capaz de aliar literatura e filosofia, vida árdua e erudição, consciência de si e consciência do mundo. É uma obra de maturidade, já em 2013, mas ainda mais atual e profunda em nossos dias de crises econômicas e políticas, conflitos raciais, guerras imperialistas, avanços do direitismo, fake news midiáticas. É preciso não se perder na erudição mas saber antes compartilhar com semelhantes e diversos.
mar/22
Leonardo de Magalhaens
poeta, escritor, crítico literário
Bacharel em Letras / FALE / UFMG
Notas
[1] Antonio Miranda, também de Brasília, nascido no Maranhão, é outro poeta leitor voraz, outro nos labirintos da Biblioteca infinda de Borges, que deixa entrever erudição em cada estrofe. Ensaio sobre Memórias Infames em http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/sobre_memorias_infames.html
[2] Jean-Jacques Rousseau [1712-1778] escritor e filósofo franco-suíço, um dos autores da época do Iluminismo, que tratou sobre o ‘homem em estado de natureza’ em contraponto ao homem na civilização, considerado um corrompido.
[3] A Beat Generation foi um movimento artístico-poético espontâneo entre amigos, poetas, místicos e andarilhos, após a Segunda Guerra Mundial, em vários pontos dos Estados Unidos, entre 1947 e fins dos anos 1960, trazendo
a contracultura e a consciência cósmica, com leituras de orientalismos e
obras psicanalíticas. Obras ícones desta geração Beat foram On the road, romance de Jack Kerouac, e o Uivo / Howl, poemas de Allen Ginsberg. Mais
info disponível em https://beatniksons.com.br/blogs/news/geracao-beat .
[4] Odisseu, ou Ulisses, é personagem famoso na Ilíada e na Odisseia, obras que a tradição grega atribuiu a um rapsodo [poeta épico] chamado Homero, que nem sabemos se existiu mesmo, lá no século VIII a.C. Mais informação disponível em https://www.historiadomundo.com.br/grega/homero.htm
[5] Orfeu, figura da mitologia grega. Informação disponível em https://mitologiagrega.net.br/orfeu-o-poeta-que-desceu-ao-inferno/
e http://eventosmitologiagrega.blogspot.com/2010/11/orfeu-e-euridice.html
[6] T. S. Eliot, Hollow Men, Homens Ocos. Famoso (e atual) poema.
Disponível em http://www.culturapara.art.br/opoema/tseliot/tseliot.htm
Links
blog do poeta Salomão Sousa
http://salomaosousa.blogspot.com/
Poemas de Salomão Sousa disponíveis em
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ssousa.html
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/salomao_sousa.html
https://leoliteraturaescrita.blogspot.com/2015/09/2-poemas-de-salomao-sousa.html?m=1
Entrevista em https://jornal140.com/2021/06/27/salomao-souza-e-sua-poesia/
Referências
ARANHA, Maria Lúcia A. e MARTINS, Maria Helena. Filosofando; introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
ELIOT, T. S. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
HOMERO. Odisseia. Porto Alegre: L&PM, 2016.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
SOUSA, Salomão. Vagem de Vidro. Brasília: Thesaurus, 2013.
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