sexta-feira, 11 de março de 2022

Vagem de vidro: Poesia adensada de muitas falas






sobre Vagem de Vidro [Brasília, 2013]

de Salomão Sousa (1952-)




Poesia adensada de muitas falas



    Andar entre livros é salutar e prazeroso. São descobertas a cada passo, novas linguagem, e novos estilos a cada volume aberto, a cada parágrafo digerido, a cada verso degustado.


    Descobertas que desvelam novos olhares de novos autores que deixam sua marca estilística na obra poética do novo século. Encontramos autores que tiveram vida longa e obra condensada em três ou quatro volumes, ou um livro magistral que resume tudo; temos autores que morreram cedo e deixaram obras como amostra do gênio que poderiam ter sido, e temos autores com extensa produção, cuja leitura ocuparia sem devida boa parte da nossa existência.


    Assim um von Schiller, um von Goethe, um Victor-Hugo, um de Balzac, um Thomas Mann, um Hermann Hesse, um Drummond de Andrade, um João Cabral de Melo Neto, um Ferreira Gullar, um Antonio Miranda [1], grandes autores por serem grandes leitores, atentos e vorazes, e assim um Salomão Sousa, com vários títulos com sua autoria, desde final dos anos 1970. Vivendo entre livros, nos corredores de estantes e volumes convidativos, pronto para acessar letras e linguagens, outras épocas e universos.


    Assim a obra Vagem de Vidro [2013] enquanto exemplo de leituras acumuladas, intertextualidade, metaliguagem em muita erudição. De faro, podemos adentrar os mundos da mitologia greco-romana, ou das narrativas bíblicas, com soberanos egípcios, ou reis babilônicos, e também poetas renascentistas, primeiras utopias, e até agências de espionagem. Eis aqui uma Obra a completar uma década e merecedora de uma leitura atenta.




    Os temas sobre os quais se dedica os poemas densos de VAGEM DE VIDRO são os mais variados. As preocupações do Autor são muitas, desde a condição humana a metafísica, desde a vida rústica a correria nas cidades, desde as figuras mitológicas aos labirintos do dia-a-dia. Sem mencionarmos os metapoemas... Aqui faremos alguns recortes, destacando alguns em lugar de outros. Longe qualquer possibilidade de tratar aqui de todas as cores e as nuances do arco-íris.


    É a partir de imagens selecionadas do cotidiano, em flashes e polaróides, cuidadosamente recortados e colados que o Poeta apresenta a nossa condição, ou melhor, a Condição humana, sempre diante de algo lá fora, cercado de mercadorias e promessas, entre os direitos e os deveres,


O homem deixa cair collants, pisa nas golas

e em ruído a bateria e a tampa do celular

o camelô auxilia-o a remontá-lo

Volta atrás para completar a lista

estojos sapatilhas estopa toucas

Acresci escovas rendinhas grampos

aos sacos que deixo na casa da ex-nora

O homem passa em frente ao tribunal

sem entrar para a sessão das debêntures


[pp. 26-27]



numa condição sempre sujeita às tempestades – mesmo aquelas em copo d’água! – em reviravoltas de algum roteirista ousado, seja Providência ou Destino, visto que não sabemos o dia de hoje, muito menos o de amanhã, daí que já estamos no palco sabendo que ‘viver é perigoso’, e que é ‘preciso resistir’, que nosso esforço é o de ‘vencer batalhas’,


Homens de fama com guerras para ganhar

Foram homens com colheitas

espreitas para não perder

Venciam de manhã em Turquim

e à noite já organizavam novas batalhas

com adversários de valentias novas

valentias quase em mim

[…]

Eram homens rápidos

em deslocar fronteiras


[p. 44]




    Numa condição tão incerta de uma vida tão efêmera, o ser humano começa a pensar em coisas duradoura, ou outras realidades ou outros mundos, pronto aí está a criada a Metafísica, a brotar da condição do eu no mundo, na ‘futilidade dos dias’, como se na consciência da inutilidade de todas as coisas,


Esqueci se gritei nas pequenas câmaras

em frente aos frutos de cores inúteis

de sabor inútil na futilidade dos dias

Não me lembro das horas e se não eram horas fúteis


[p. 42]



quando este sentimento de ‘futilidade dos dias’ revela a profunda consciência da falta ou a ausência que pesa sempre,


aí sim era o silêncio da esperança

se o sonho era a tapeçaria tingida de ausência

e quando o húmus não atendia às sementes

também não havia arranjo para as cores

e a poeira a fluir / fluir da linha da fundura

águas contaminadas / se foram / foram antes


[p. 32]



    E maior ainda a consciência do efêmero, do fugidio, no pleno cotidiano na cidade, nas incertezas das ruas, nas arenas de agressões e violências, com as figuras da miséria e da exploração, do cansaço e da servidão, onde direitos humanos são apenas palavras num livro técnico numa prateleira da biblioteca da faculdade de Direito,


Algum bêbado apocalíptico

invade o ônibus, a cidade

algo desfruta dentro de nós

somos os sinais em outros


[p. 53]



Fizeste por tua cidade

as valas, o cercamento

Andaste pelas grotas

pelas ruínas de suas minas

que uma cidade é antes

o que homem esgota e funda

e falseia: arrobas de ouro, sinetes


[p. 66]



de modo que a vida natural, a rural, a rústica surge como um contraponto a cidade, ou antes, o contraponto ao urbanizado, a destacar então o aspecto agreste, o que chamamos de sertão, onde “viver é perigoso”, de Guimarães Rosa, onde o “sertanejo é, antes de tudo, um forte”, de Euclides,


Aprendi na beira do rio Claro

com o alfabeto dos buritis

as letras de cheiro, os jambos

com aulas de espinhos de ouriço

[pp. 60]


Tive meu convívio na leira da carpina

gafanhotos agarrados às folhas vivas

os homens criam nas intervenções divinas

estive ajoelhado na estrada de Moquém

aquém de mim operavam os milagres

[p. 67]



Engano se estive na cidade

Se a cidade existisse

teria homem indo para o trabalho

teria mulher indo para o amor

Não teria veneno e siris mortos

ou mulheres a parir cães e gatos

Não seria a saudação de comensais

com urros de burros e coices

[p. 80]



    Mas seria antes uma vida rústica inalcançável, como se fosse outra utopia, aquela do homem natural, esboçada pelo filósofo Rousseau [2], sobre o homem puro que se corrompeu ao adentrar o mundo da civilização urbanizada e artificial, em busca de comodidades e prazeres fúteis,


Quase acreditei nas montanhas

se anunciavam intocáveis

férteis para as intempéries

para algum gesto abrupto

estúpido. Ou quedas

Quase atingi a lascívia das sombras

a naturalidade das ervas nas ranhuras


[p. 81]




    E o homem, em sua pequenez e miséria, é obrigado a recorrer às máquinas, que ele mesmo inventou, para facilidades ou avanços na matéria, de modo a tornar-se depende e mesmo serviçal do poder das maquinarias, como nos revela o poema “a máquina fala por mim” [p. 74],


A máquina me traz

todas as paisagens pra casa

Se peço algodão

a máquina me dá a paisagem

mais felpuda e branca

me tece a paisagem retilínea

se é pela luz que a linha estremece

[…]

A máquina me dá o lustre

de textura em densa limpeza

Só pressiono a tecla

para pedir a ausência da fuligem



e uma alternativa ao mundo das máquinas, aquele das artificialidades, é a jornada ou a viagem, “Fala das muitas viagens / das muitas vezes desfeitas / malas e próteses /…/ dos homens que poderiam / voltar da guerra” [p. 52], quando a viagem, a jornada, a estrada aparece mais como um chamamento à liberdade, como sonhavam os jovens da Geração Beat, atravessando os States em caronas e vagões de trens [3],


Manda-me a estrada

em que deixas teus rastros

em que arranhas teus seios

a leveza de tuas aventuras

[…]

A estrada ladeada de vagens

e casas térreas de formiga

Manda-me a tua liberdade

a janela para os lados do sol

[p. 71]



Viajar sem conhecer as distâncias

se haverá as palmas os presépios

casais perto das folhas

a roçar a roçarvalho

Viajar sem encontrar

Viajar e desejorvalhar

sem abismo sem calhas

[p. 72]



Viajei. Vi homens no luxo

Vi crianças no lixo

e no lixo tropecei

[…]

Viajei. Vi e apalpei

E se vi e acreditei foi pela flor agreste

[p. 84]



    Jornada até a odisseia de Odisseu, ou Ulisses [4], o herói da Guerra de Troia que retorna para sua terra, a Ilha de Ítaca, após muitas aventuras e desventuras, sendo estrangeiro em terra estrangeira,


Ulisses, depois de ti, instaurado o fim das aventuras;

na antessala, extintos o bulício e a castidade dos amantes.

Ao encerrar tua jornada, legaste o enfado, o fastio,

fio emaranhado em fuso sem memória.

[…]


Ulisses, não navegaste no computador,

e aí também não acharias a porta do retorno à pátria, verso

e viagem a sucumbirem nas janelas das redes sociais,

a se desencontrarem no led do papel.

[p. 20]


    Ulisses, ou Odisseu, é um símbolo do Viajante que apreendemos da mitologia dos excelsos gregos clássicos. Em outros poemas encontramos outras várias referências às figuras da mitologia grega tanto quanto a erudição permite, os mitos de Orfeu e Eurídice, à Guerra de Troia, as jornadas dos heróis, Aquiles, Heitor, Ulisses.


    E também a imagem do Poeta, do grande músico, Orfeu, outro da mitologia grega [5], que em sua busca da mulher amada é capaz até de descer aos Infernos, daí a aflição do Poeta-cantor, ou dúvidas de Orfeu, ou Orfeu em agon com a Morte,


Orfeu desvalido das palavras

se solitárias / quase sem som

tarraxas / rosário nos punhos

Sem água / botões de marfim / sem

elmos de flâmulas douradas

[…]


Terás de mover o teu ataúde

fazê-lo aríete de arrombar

os portões do esquecimento

No sepulcro não haverá outras inscrições


[pp. 89-90]



Numa pátria de abandono

Orfeu entalado em montagens

O ócio só a expandir o pântano


[p.44]



Alaridos chapas de vidro moídas

fuselagem mãos em carvão nos entrepostos

explicações às dúvidas de Orfeu

não surgem com os torsos animados

[p. 31]



as palavras não fossem

enfeites para a gaveta

o leite fosse para o corpo

com justiça para as tetas

ser o broto a enxuta lama

a esquecida brutalidade das águas

cheio de terra de pó de asas mortas

tudo merecia ser menos vômito

tudo mais pólen entre as talas

entre os pés quebrados de Orfeu


[p. 33]



    O Poeta falando do Poeta mitológico abre espaço para o aparecimento aqui do fenômeno do metapoema : quando o foco é a palavra, a linguagem em si mesma, pois “A língua mofada sem a munição das palavras // Se há lugares para não calar / fora de mim tudo se ilustra em fala” [p. 31]


Palavras serão inventadas

e em bocas mais recentes

exalarão novos enredos.

Serão organizadas estrelas

plausíveis, significados

para gestos inaugurais, para

os produtos da oficina, palmas

enrugadas sobre a sina do rosto.


[p. 94]



Aqui jaz o poema

que não se quis

Insistiu avaros nadas

[...]

Aqui jaz o poema

que não se quis


[p. 16]



a minha palavra não acena só a asma

o meu cinismo / a minha ventriloquia

flui para outras laringes / floras intestinais

floresce noutro músculo a fava da palavra

quieta enquanto aguarda a carga

do húmus salivado de outro corpo

com o torpe estilo de amargar

aromatiza a língua ao redor do fétido


[p. 28]



A palavra definitiva

na fala se ausenta

contida de sombra,

evolução do palco e do véu.

Em partes as palavras

não se reconhecem.


[p. 29]



    O Poeta se debruça sobre sua arte e engenho, sua ferramenta, seu criar imagens e emoções com palavras cuidadosamente engendradas, num mundo criado que denominamos ‘texto’, tessitura de outros ‘textos’, pois “Convenhamos. Depois de escrito / tudo acontece noutro texto, / noutro topo, na rotina de outro homem.” [p. 58]







    É uma Poesia erudita e densa que não se perde em amargura e cinismo, em denúncias apenas, mas ousa a utopia, o vencer a guerra e o entronar da paz, como uma construção diária, uma esperança que transcende o cotidiano de ansiedade e futilidade,


das ruas muitas vozes solitárias

dos homens que poderiam

voltar da guerra

ser os amantes igualitários

após desarmar os abusos

das hordas das discórdias


[p. 52]



Com os homens da fina civilidade,

que aplainam onde há a discórdia,

onde há a suspeita,

e a madeira é fértil. Trabalharemos

com a facilidade da ternura.

[…]

Estaremos com os homens

limpos diante das câmeras,

dos lápis da História.

[…]

Não iremos nos esconder

fora das fronteiras.


[p. 64]



    É preciso ir além dos palácios de cristal, das casas de vidros, dos castelos de cartas, ir ao profundo, ao denso, abrir mão das artificialidades, das tantas futilidades, “Homens que vão ao pré-sal, / ao fundo do coração.” diferente dos hollow men, homens ocos, de Eliot, que povoam os últimos dias. [6]


    Em Vagem de Vidro, coletânea densa de poemas densos, o Poeta Salomão Sousa é capaz de aliar literatura e filosofia, vida árdua e erudição, consciência de si e consciência do mundo. É uma obra de maturidade, já em 2013, mas ainda mais atual e profunda em nossos dias de crises econômicas e políticas, conflitos raciais, guerras imperialistas, avanços do direitismo, fake news midiáticas. É preciso não se perder na erudição mas saber antes compartilhar com semelhantes e diversos.



mar/22



Leonardo de Magalhaens


poeta, escritor, crítico literário


Bacharel em Letras / FALE / UFMG






Notas



[1] Antonio Miranda, também de Brasília, nascido no Maranhão, é outro poeta leitor voraz, outro nos labirintos da Biblioteca infinda de Borges, que deixa entrever erudição em cada estrofe. Ensaio sobre Memórias Infames em http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/sobre_memorias_infames.html



[2] Jean-Jacques Rousseau [1712-1778] escritor e filósofo franco-suíço, um dos autores da época do Iluminismo, que tratou sobre o ‘homem em estado de natureza’ em contraponto ao homem na civilização, considerado um corrompido.


[3] A Beat Generation foi um movimento artístico-poético espontâneo entre amigos, poetas, místicos e andarilhos, após a Segunda Guerra Mundial, em vários pontos dos Estados Unidos, entre 1947 e fins dos anos 1960, trazendo

a contracultura e a consciência cósmica, com leituras de orientalismos e

obras psicanalíticas. Obras ícones desta geração Beat foram On the road, romance de Jack Kerouac, e o Uivo / Howl, poemas de Allen Ginsberg. Mais

info disponível em https://beatniksons.com.br/blogs/news/geracao-beat .


[4] Odisseu, ou Ulisses, é personagem famoso na Ilíada e na Odisseia, obras que a tradição grega atribuiu a um rapsodo [poeta épico] chamado Homero, que nem sabemos se existiu mesmo, lá no século VIII a.C. Mais informação disponível em https://www.historiadomundo.com.br/grega/homero.htm


[5] Orfeu, figura da mitologia grega. Informação disponível em https://mitologiagrega.net.br/orfeu-o-poeta-que-desceu-ao-inferno/

e http://eventosmitologiagrega.blogspot.com/2010/11/orfeu-e-euridice.html


[6] T. S. Eliot, Hollow Men, Homens Ocos. Famoso (e atual) poema.

Disponível em http://www.culturapara.art.br/opoema/tseliot/tseliot.htm




Links


blog do poeta Salomão Sousa

http://salomaosousa.blogspot.com/



Poemas de Salomão Sousa disponíveis em


http://www.jornaldepoesia.jor.br/ssousa.html


http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/salomao_sousa.html


https://leoliteraturaescrita.blogspot.com/2015/09/2-poemas-de-salomao-sousa.html?m=1


Entrevista em https://jornal140.com/2021/06/27/salomao-souza-e-sua-poesia/





Referências


ARANHA, Maria Lúcia A. e MARTINS, Maria Helena. Filosofando; introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.


CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


ELIOT, T. S. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


HOMERO. Odisseia. Porto Alegre: L&PM, 2016.


ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.


SOUSA, Salomão. Vagem de Vidro. Brasília: Thesaurus, 2013.




.