Sobre a obra ficcional-filosófica de Yendis Asor Said,
poeta, pensador e profeta de Contagem / Esmeraldas / MG,
alter-ego e heterônimo do autor Sidney Rosa Dias [1977-]
Religiões: invasões aliens, vírus lunático ou outras conspirações?
[Parte 2]
A Verdadeira História de Contagem
O Livro abre com uma imagem idílica, de uma comunidade sem diferenças, sem desigualdades sociais, como um comunismo primitivo, em uma cidade antes das elites e castas, econômicas e religiosas.
“Naquela época, naquela cidade, não havia corrupção. Todos se juntavam nas praças para comemorar, todos eram iguais, mesmo sendo diferentes. Não havia ganância, cobiça, não como existe hoje. Aquele povo vivia a simplicidade de uma vida moderna e pacata, uma cidade do interior evoluída, assim era aquela cidade. Uma cidade bela, rica e próspera, que mudou da água para o vinagre com a chegada daquele ser.” [2018, p. 17]
A situação só piorou quando apareceu os servos da Igrejas, a casta religiosa, com seus párocos, obreiros, apóstolos, freis, diáconos, sacristões, freiras, em suma, toda uma gente que nada produz, mas vivia de explorar a crença alheia, ou instituir nova crença que seria apenas um instrumento de dominação. “Assim ele, o bispo, foi implantando a ideia de religião naquele povo que estava em paz. Junto, vieram todas as perturbações da alma, o inferno, a posse, a dor, os flagelos, a riqueza, o poder e a corrupção. Tudo estava ligado naquele ser que se dizia libertador.” [2018, p. 19]
A presença dos líderes religiosos, com suas pregações contra o Pecado em favor da Castidade, e da Humildade, ao distribuir uma Culpa na comunidade, com as segmentações entre adeptos, os batizados, e os outros, os infiéis, ou bons e maus, numa verdadeira ‘genealogia da moral’, como diria Nietzsche, a se perguntar a quem interessa rotular alguns como bons e outros como maus? Quem julga os bons e os maus? Quem tem este poder de valorizar e julgar?
No meio da ‘evangelização’, dos batismos, surge a dúvida e a dissidência, a figura de Yendis, que ouve uma voz, da Alma, e passa a questionar e a duvidar de toda aquela dominação religiosa. Logo, Yendis, junto com seu filho, se vê em apuros, pois uma religião institucionalizada não tolera os ‘hereges’, aqueles que ousam discordar dos dogmas. Começa o pesadelo para o herético Yendis,
“Realmente não havia acabado. Yendis nem imaginava tudo o que iria ocorrer. Contagem nunca mais seria como antes, nunca mais haveria aquela paz. O povo nunca mais seria íntimo da natureza, não seriam unidos de verdade, nunca mais, e tudo por causa do pastor bispo, o obreiro da igreja da Contagem.” [2018, p. 34]
O herético, e seu filho, são perseguidos, por adeptos do culto, indignados com os infiéis, e até por monstruosas aranhas, uma cena meio dantesca, tudo em nome da ‘justiça de deus’, sem qualquer piedade, quando adeptos, fanáticos, beatos se unem e conspiram para o ‘justiçamento’ dos apóstatas. Enquanto isso, Yendis percebe que o mal realmente chegou a pacata cidade de Contagem.
Fanáticos, aranhas, agora um eclipse assustador. Uma escuridão dantesca, apocalíptica, byroniana, gótica, com ‘gritos horrendos de morte’ é uma cena trágica mesmo – meio ao tom irônico / contraditório com os ‘bondosos’ fiéis defendendo a punição do fugitivo em ‘nome de deus’. A cena seguinte, onde o Apóstolo, com suas ovelhas adeptas, suplica uma ‘intervenção divina’ contra o herético, exibe sem véus as contradições e as crueldades da seita religiosa.
O líder religioso sempre precisa de mais adeptos, de ovelhas, prontas para testemunharem e catequizarem novas ovelhas, numa expansão constante, como sabemos ter acontecido com as religiões, as grandes, ao longos do tempo e nas civilizações. A expansão do hinduísmo, do budismo, do cristianismo, do islamismo, mostram como as conquistas ocorrem nos campos da cultura e nos campos de batalhas.
Pregando a libertação, o sacerdote, ou apóstolo, interfere na comunidade de nativos, de indígenas, de quilombolas, em nome de uma Divindade, o Altíssimo, e contra as obras maléficas de um Demônio, um Destruidor. Se os nativos não se converterem serão abandonados às garras do Grande Mal. Para serem salvos os adeptos precisam aceitar os dogmas e os rituais e implorarem pela salvação, prometida pelo Apóstolo.
O poder clerical se estende sobre todas as áreas da sociedade, e fanáticos criam mais adeptos e perseguem os dissidentes, ou adeptos de outras crenças. É um círculo dantesco de contaminação doutrinária e caça às bruxas. E Yendis é perseguido por grupos fanatizados e apoiados por outros grupos que resistem à doutrinação do tal Apóstolo.
O dissidente Yendis até tentou enfrentar o Apóstolo com ajuda de outros resistentes, um verdadeiro duelo, mas percebe ser inútil. Fatos sobrenaturais, fantásticos, surreais, se sucedem, até mortos saem dos túmulos, como uns zumbis de filme de terror, e tudo se mistura na loucura, mortos e vivos, zumbis e fanáticos. ‘Que os mortos enterrem seus mortos’, diz um verso bíblico. E Yendis desiste de ficar desafiando ou fugindo do líder religioso.
Yendis tem um último encontro com o famigerado Apóstolo, mas não há duelo desta vez. O dissidente, o rotulado como herético, não resiste mais, deixa-se aprisionar. E ser executado. Morto em sacrifício em nome de Deus. Os fanáticos venceram. Espere um momento. Tal sacrifício não foi em vão. “A morte de Yendis trouxe claridade àquelas visões esclarecidas.” [2018, p. 94]
Como um ato final, Yendis se sacrifica como um Messias, a deixar-se ser crucificado. Yendis prefere o automartírio do que fugir mais uma vez. É assim um Sócrates, o filósofo, que aceita sua morte como um mártir da Verdade. Yendis morre como um herói. Os fanáticos despertam do transe e voltam para suas vidas. Claro que nunca mais serão como já foram, nunca mais o povo de antes da alucinação religiosa. Mas, por enquanto, a cidade está liberta do drama.
O Vírus da Religião
Em época de viroses, epidemias, pandemias, crises sanitárias, caos na saúde pública, Yendis, o poeta & profeta, vem adicionar mais uma conspiração para explicar o surgimento das religiões: e se tudo for culpa de um vírus lunático? A religião pode ser uma virose psicodélica que fugiu ao controle…
Se em A Invasão [2011] a causa das religiões eram agentes infiltrados de uma conspiração alien, aqui em O Vírus a causa é outra – mais biológica, uma doença nervosa, uma histeria coletiva – num quadro dramático de caos que vemos em A Peste [1947] , do franco-argelino Albert Camus e em Ensaio sobre a Cegueira [1995] do português José Saramago. O ser humano confrontado por forças e fenômenos para os quais não tem resposta nem resistência.
Aqui Yendis encontra um jovem nas ruas, andando pela cidade e, em seguida, inicia um profundo diálogo, ao estilo platônico, tal como Sócrates conversava com seus convivas, sobre as origens das religiões na sociedade desde os tempos imemoriais. Percebemos que Yendis é uma voz de dissidência e de razão num mundo que tende ao reacionarismo e fundamentalismo. O que ele vem comunicar? Basicamente: Como surgiram as religiões? A quem servem os líderes religiosos? Como os poderosos utilizam os religiosos para manipularem os povos?
Como era o mundo antes, lá na antiguidade mais remota, numa cidade utópica chamada Abrobaticity, sem desigualdade social, sem preconceitos, onde não havia religião, nem líderes religiosos, nem casta de sacerdotes, e o povo cuidava da própria vida, sem templos e sem seitas. “O ser não vivia debaixo de lei, ele era sua própria lei.” (2021, p. 23)
Foi a disseminação de um estranho vírus que acabou por gerar as religiões num processo de epidemia e de fanatismo, quando pessoas infectadas começaram a ouvir vozes, a ver sinais no céu e na terra, tomando as ilusões e miragens como fatos autênticos, como mensagens das divindades, e começaram a profetizar pelas ruas, sobre as mensagens divinas e conseguiram seguidores que fanatizaram mais pessoas, num crescendo.
“esta doença fazia que o infectado sofresse de alucinações, que ouvisse vozes, que idolatrassem qualquer lixo de coisa existente ou não, que achassem que tinham poderes supraterrenos, e que possuíam alguma missão, e entre estes infectados haviam pessoas influentes que começaram a destilar o ódio sobre o seu próprio povo criando leis ilógicas, criando milícias para reprimir o povo, [...]” [2021, p. 31]
Enquanto isso, os cientistas começaram a pesquisar o vírus e elaboraram uma cura, mas aconteceu que vários já estavam infectados e disseminando a virose e as alucinações como se fossem visões proféticas, criando cultos e rituais, se ajoelhando diante de ídolos em crenças que então congregavam vários infectados e mais devotos, de modo que os cientistas, responsáveis pela cura, passaram a ser perseguidos e eliminados! A Ciência passou a ser desacreditada pelos fanáticos, os de mentes fracas ou arrogantes, que julgavam em acesso direto com a[s] divindade[s].
“A cura havia sido descoberta e levada a todos os povos, a todos os líderes da terra, mas o vírus havia já se espalhado, o caos já reinava, todos os líderes daquelas sociedades eram pessoas comuns que não entendiam coisas como riquezas, pois todos tinham de tudo, esses líderes eram pessoas que viviam para o bem do próximo, essas pessoas naquela pandemia, tiveram muito poder em suas mãos e gostaram do que sentiram, esses líderes se aliaram aos doentes e criaram templos de adoração. Estes líderes se aliaram aos seguidores religiosos para manter o poder, aliaram-se a todos os que subiram no púlpito, aos que subiram no altar, se aliaram a estes e puseram a caçar todos os cientistas da terra e os mandaram para a fogueira como pessoas hereges, como pessoas que eram contra os seus deuses, o seu deus, […] Havia a cura, mas não era de interesse dos agora poderosos esta cura para a terra, não!! [2021, p. 44]
Aqui podemos nos lembrar do julgamento do filósofo Sócrates em Atenas, por supostamente afastar as novas gerações dos cultos das divindades, apenas por questionar os dogmas e os sensos-comuns da sociedade grega. Podemos nos lembrar de Sidarta Gautama, o Buda, sendo perseguido em sua própria terra pela casta de sacerdotes brâmanes. Podemos nos lembrar de Jesus, o Cristo, perseguido pelos líderes religiosos, os fariseus e os saduceus, que queriam manter a todo custo o domínio dos ritos judaicos.
E podemos nos lembrar de vários que ousaram criticar os estamentos religiosos. Lembramos de Hipácia de Alexandria, matemática e filósofa neoplatônica, atacada e linchada por fanáticos cristãos. Lembramos de Joana D’Arc, queimada como bruxa, traída pelos compatriotas. Lembramos de Giordano Bruno queimado pela Igreja quando defendia suas ideias que não confirmavam os dogmas. Lembramos de Galileu Galilei, cientista e engenheiro, que foi silenciado pela Igreja ao defender o heliocentrismo contra o geocentrismo das castas sacerdotais. E muitos outros mártires da filosofia, da ciência, do conhecimento, que foram torturados e executados em nome de uma aclamada Fé, Crença, Sagrado, mero dogma de domínio político-secular.
É a mesma crítica do visionário William Blake, que questionava as religiões instituídas, que empregavam os dogmas para controlarem os adeptos e silenciarem os dissidentes, logo rotulado como heréticos. Mais radical que Blake foi Nietzsche, que negou a própria validade das religiões desde a genealogia da moral. Pois se Blake ainda proclamava sua própria ideia de religião, sua religiosidade pessoal, o anticristo Nietzsche denunciava a religiosidade como uma corrosiva decadência.
Em seu Vírus da Religião, o pensador & poeta Yendis mostra que o poder corrompe e de modo total. Líderes políticos se aliam aos líderes religiosos apenas para manterem o status quo, sendo a religião mais um modo de manter a ‘ordem social’, com um povo passivo por dogmas e esperançoso por recompensas em Outro Mundo. Infectados e não-infectados são tomados pela mesma insanidade e alucinação,
“pela loucura que era sintoma do vírus, transpunham esta loucura a outros e o vírus também se espalhara, mas mesmo naqueles em que o vírus não se manifestava, pessoas que eram imunes ao vírus, algumas destas pessoas foram suscetíveis aos infectados e também começaram a seguir os religiosos, como assim se definiam, ou somente adoradores, acho que por medo, não me lembro bem, muitos tiveram que fugir, pois estes religiosos infectados pelo vírus da religião se tornaram pessoas más a querer matar, destruir, lançar ao fogo todos aqueles que não eram a favor de seus deuses, de seus pensamentos, e assim a sociedade que vivia em paz se tornou louca e desprezível quando o vírus se espalhou sobre a terra.” [2021, p. 47]
Os sintomas só se agravam, os infectados transmitem vírus e alucinações, em quadros cada vez mais bizarros,
“em Abrobaticity todos os contaminados eram cegos a inventar a luz, a ver figuras no céu, a ficar ajoelhado perante barro ou madeira a adorar deuses, acreditavam que poderiam mover montanhas, acreditavam que poderiam apagar o sol e a lua, estas pessoas contaminadas estavam cegas e juravam que poderiam levar outros, eram cegos guiando cegos, sim!” [2021, p. 50]
Inútil foi o trabalho, e o esforço, a dedicação dos heróis, os cientistas, para explicar a doença, esclarecer os sintomas, aplicar a cura – a religião se espalhou, entre infectados e não-infectados com a mesma frequência e bizarrice, mais e mais fiéis e fanatizados crendo em aberrações atmosféricas e ressurreições de mortos, e profetas que clamam no deserto e ‘cegos que guiam cegos’, sem aceitarem qualquer pensamento lógico, filosófico, não-dogmático. “Pois a ciência já estava sendo vista como algo contra os deuses criados pelas mentes adoecidas, contra todo tipo de madeira, pedra, montanha, papiros ou qualquer outro artifício adorado pelos fanáticos.” [2021, p. 54]
Uma coisa que sempre me impressiona muito é a idolatria. A mesma que desagradava profundamente a um Lord Verulâmio, Francis Bacon, na Inglaterra dos séculos 16 / 17, que denunciava os tantos ídolos que nos cercam e nos cegam. Precisamos estar atentos aos ídolos da tribo, os ídolos da caverna, os ídolos do mercado, os ídolos do teatro, todos eles erros que cometemos em nossas percepções e julgamentos, nas disciplinas de filosofia, e nas ciências, e no mundo da religião. É realmente bizarro ver como pessoas erguem ‘bezerros de ouro’ que elas mesmo construíram e se prostrarem em adoração! [E bizarro como muitos se vangloriam como se fossem ‘donos de deus’, com um acesso privilegiado à divindade.]
E, em suas batalhas de suas ‘guerras santas’, os loucos conseguiram suas vitórias na propagação da fé, ou alucinação virótica. Cada grupo com sua divindade, e a disseminar mentiras, e conspirando contra a divindade de outro grupo, e ‘morrendo em nome da fé’, loucos adoradores de imagens e ídolos, e que ouviam vozes, e que viam sinais no céu, num quadro de loucura total que lembra aquelas pinturas de Hieronymus Bosch [século 16, Países Baixos], com visões, alucinações, miragens, numa pluralidade de sombras e penumbras, como delírios do inconsciente.
“Estas pessoas doentes se levantam contra aqueles que possuem a verdade, a ciência, a justiça… Estas pessoas, elas mesmas criaram sua própria verdade, suas leis, sua justiça, criaram um mundo paralelo onde quem manda neles é algo que nunca viram, e os que juram ter visto acabam virando mártires destes próprios adoradores, que ironia, não?” [2021. p. 80]
Aos poderosos não interessava a cura da pandemia, pois um povo adoecido é melhor dominado, e um povo ignorante é melhor enganado pelas doutrinas. “O gado religioso era dócil, manso, e assim deveria ser, em todas as escrituras religiosas que surgiram diziam que Deus se agradava de ver o seu rebanho manso como cordeiro” [2021, p. 77] E, no entanto, os religiosos insistiam que a religião era boa, humanitária, fazia caridade, abrigava os necessitados. Yendis desmente tal propaganda de religiosos, pois a religião não é a cura, mas a doença,
“A religião criou os necessitados e pobres para poder apoiar o seu poder, não existe criador sem criado, não existe líder sem súditos, não existe rico sem o pobre e nem abastados sem os miseráveis, foi isto que a religião criou, ela criou a separação entre os seus, entre o seu povo.” [2021, p. 73]
Quando os religiosos morrem, pela infecção virótica, ou pelos suplícios, e jejum, em nome da fé, são estes considerados verdadeiros mártires da religião, e novas narrativas – lendas, sagas, mitos, mitologia etc - são criadas para alastrar mais crenças, como se o sacrifício dos crentes fosse a prova da crença! Aquele que, crendo, poderia andar sobre as águas e, se afoga, é um mártir da fé! E a sandice se propaga e reforça o quadro da pandemia. Em promessas de ser salvo da morte ou, quando morto, ser agraciado com a vida eterna.
“Quando morriam um líder deles que pregavam seus deuses estes consumiam o seu corpo e espalhavam a notícia de que Deus ou deuses o haviam arrebatado, que este não morreu e sim foi levado aos céus que era onde moravam os deuses e lá teria a paz eterna e vida eterna, assim prometiam a todos que os seguiam, uma felicidade de pois da morte.” [2021, p. 85]
A mitologia leva a crença até aos não-infectados que seguem os alucinados infectados na propagação da Fé numa crescente demência que leva o mundo paradisíaco de antes a um lugar de permanente sofrimento, tristeza, pecado e penitência. Não havia qualquer ‘lugar prometido’, nenhum paraíso, mas “este lugar prometido era uma loucura, era uma alucinação causada pelo vírus, este lugar não existia, mas para aquelas pessoas doentes sim, acreditavam fielmente que existia tal lugar e estas pessoas matavam em nome do vírus da religião.” [2021, p. 87]
Eis a tragédia: as pessoas se feriam, se matavam, guerreavam, matavam umas as outras, em nome de uma crença, de uma loucura, em busca da Salvação e da Vida Eterna. São lutas teológicas, heresias contra ortodoxia, em perseguições, nada de caridade, ao contrário, mais intrigas pessoais e coletivas, em excomunhões, inquisições, condenações e execuções. E ainda vem o religioso falar em caridade e tolerância?
É fato. Livros, Códices, pergaminhos, obras de Arte foram vandalizadas e destruídas apenas porque não se encaixavam no mundo de crença, não seguiam a ortodoxia no poder. Assim os ataques aos pensadores, filósofos, acadêmicos, matemáticos, que se seguiram por séculos, durante a oficialização da religião cristã, durante a expansão da religão islâmica – até culminar na dpominânica religiosa, e as sangrentas Cruzadas, durante o tenebrosa Idade Média.
Judeus expulsaram cristãos, e cristãos expulsaram judeus, e cristãos expulsaram pagãos, e muçulmanos expulsaram cristãos e pagãos, e centros de conhecimento, como a Biblioteca de Alexandria, no litoral norte do Egito, foram saqueados e queimados ao longo das guerras civis e religiosas. As culturas de outra religião eram desprezadas e eliminadas. Só tinham validade os ‘livros santos’ de cada Fé. O que os padres diziam sobre o conhecimento antigo, pré-cristão, a sabedoria helênica e oriental ? Não sendo bíblico o saber então seria pernicioso. “A Bíblia tem tudo e não se atreva a procurar em outro lugar.” [2010, p.184]
A mesma atitude têm os islâmicos com o Alcorão, ou Corão, que limita a vida religiosa e social no mundo maometano. E qualquer ponto fora do Livro Sagrado revelado é logo rotulado de ‘heresia’ e o herege merecedor da morte. Assim quando tropas islâmicas conquistaram a cidade de Alexandreia, no século VII, o califa não protegeu o conhecimento armazenado na Biblioteca, mas se pronunciou, com desdém, “Se o que está escrito nos livros concorda com o Livro de Deus [Corão], eles não são necessários; se discorda, não são desejáveis. Portanto, destrua-os.” [2010, p. 192]
“E também foi naquele tempo que começaram a fazer literaturas inspirada pelo vírus, os doentes que possuíam adoração a escrita, estes doentes, eles começaram a escrever os relatos dos doentes sobre todas as coisas que estes diziam ver e fazer, assim em pouco tempo haviam milhares de livros religiosos no mundo e todos tinham o seu livro e cada um a sua religião.” [2021, p. 81]
“Tais histórias eram inventadas para fazer daqueles que não possuíam o vírus acreditar no invisível e para acalentar aquelas almas desprovidas de inteligência, aquelas as quais o vírus já tinha infectado, comendo todo seu intelecto, e realmente acreditar nestes seres invisíveis que os mandavam fazer coisas uns contra os outros.” [2021, p. 84]
É tudo o que Yendis tem a revelar ao jovem Pedro, que tudo ouvia estarrecido e perplexo, que antes de desafiar o domínio religioso precisaria vencer uma ‘luta interna’. O jovem precisa aprender a ‘viver plenamente’, sem recorrer às ilusões e crenças num Mundo Além. O conselho e a exortação final de Yendis, o atemporal, é que o jovem Pedro seja firma como uma pedra e fortaleça sua ‘energia interior’, uma ‘energia vital’,
“Essa força, essa energia interior que nossa sociedade chamava de energia da vida, que é dada a todos os que vivem, tudo desde plantas aos seres humanos, […] Essa energia vital esta dentro de cada ser que vive, ela fornece todas as faculdades mentais que uma pessoa pode ter, ela naquela época era medida assim que a criança nascia, […]” [2021, pp. 82-83]
É preciso aceitar e despertar esta força interna para resistir mentalmente às alucinações da vida religiosa, com seus medos e ameaças, com seus delírios coletivos de Pecado e Penitência e Salvação. É preciso combater as falácias religiosas e os poderes que se constituíram sobre os templos, igrejas, sinagogas e mesquitas. É preciso resistir aos tantos fiéis, obreiros, adeptos, clérigos, diáconos, apóstolos, freiras, monges, discípulos, padres, pastores.
“Devemos combater o que causou o fim da terra, o vírus da religião, o maior mal já acometido pelo ser humano, a maior desgraça espalhada pela terra há milênios, isto que deemos combater e não os sintomas da doença, vivemos brigando contra os galhos de uma árvores que está podre sem saber que devemos é extirpá-la.” [2021, p. 93]
Diante da grande ameaça religiosa, as palavras de Yendis são de esperança, já que agora ele não se sacrifica, como fez no livro anterior, diante da figura do Apóstolo, em uma Contagem já corrompida. Agora é diferente. Qual será nosso inapelável Fim? Terá mais tons apocalípticos? Está selado e predeterminado, sem solução?
“O nosso fim é saber que dentro de nós existem milhares de deuses criados por nós e que como nossos demônios nós temos que ter a consciência que são apenas reflexo de nossa identidade, para o bem ou para o mau e que não existem.
[…]
O nosso fim é ver revelado as verdades que no íntimo já sabíamos.” [2021, p. 97]
Conclusão
É com muita leitura e ironia que Yendis Asor Said, poeta e profeta, apresenta sua Obra, poética, dramática, iconoclasta, profética, sempre jogando com a intertextualidade, com a erudição dos leitores, uns mais, outros menos, mas sempre desafiados a seguirem os passos no labirinto, muitas vezes sem um fio de Ariadne.
Enquanto leitores, leitoras, é preciso um esforço para adentrar o universo de Yendis, que às vezes é mesmo prolixo, ou repetitivo, mesmo excessivo, mas todo exagero tem um objetivo de ironizar mesmo, de ser sarcástico, como uma ópera bufa ou cordel ou paródia, onde os fatos são aumentados, superdimensionados, mas não gratuitamente. Há um desejo de educar com o riso e o sarcasmo, como percebemos nas obras dos satíricos, como Rabelais [François R., 1494-1553] e Swift [Jonathan S., 1667-1745] e dos iluministas, um Voltaire [Fraçois-Marie Arouet, 1694-1778] ou um Sade [Marquês de S., 1740-1814].
A Obra de Yendis Asor Said, ou Sidney Rosa Dias, exige concentração e paciência, mas não é monumento de seriedade, antes, ao contrário, podemos nos divertir muito. Sua crítica mostra erudição e deboche, muita leitura, referências, intertextos, e também tom coloquial, assim uma união de contrários, como desejava William Blake, aquele que anunciava as bodas do Céu e do Inferno, e criticava toda religião estabelecida. Dogma é limitação, é mumificação. É preciso aprender a ‘abrir as Portas da Percepção’ e ‘ver o mundo tal como ele é: Infinito’.
nov/21
Leonardo de Magalhaens
poeta, escritor, tradutor,
bacharel em Letras / FALE / UFMG
Mais sobre a Obra do autor Sidney / Yendis
em
https://clubedeautores.com.br/livros/autores/yendis-asor-said
http://contagem.mg.gov.br/?materia=951901
Referências
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