segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Religiões: invasões aliens, vírus lunático ou outras conspirações? Parte 2


 





Sobre a obra ficcional-filosófica de Yendis Asor Said,
poeta, pensador e profeta de Contagem / Esmeraldas / MG,
alter-ego e heterônimo do autor Sidney Rosa Dias [1977-]


    Religiões: invasões aliens, vírus lunático ou outras conspirações?

    [Parte 2]




    A Verdadeira História de Contagem


    O Livro abre com uma imagem idílica, de uma comunidade sem diferenças, sem desigualdades sociais, como um comunismo primitivo, em uma cidade antes das elites e castas, econômicas e religiosas.

      “Naquela época, naquela cidade, não havia corrupção. Todos se juntavam nas praças para comemorar, todos eram iguais, mesmo sendo diferentes. Não havia ganância, cobiça, não como existe hoje. Aquele povo vivia a simplicidade de uma vida moderna e pacata, uma cidade do interior evoluída, assim era aquela cidade. Uma cidade bela, rica e próspera, que mudou da água para o vinagre com a chegada daquele ser.” [2018, p. 17]


    A situação só piorou quando apareceu os servos da Igrejas, a casta religiosa, com seus párocos, obreiros, apóstolos, freis, diáconos, sacristões, freiras, em suma, toda uma gente que nada produz, mas vivia de explorar a crença alheia, ou instituir nova crença que seria apenas um instrumento de dominação. “Assim ele, o bispo, foi implantando a ideia de religião naquele povo que estava em paz. Junto, vieram todas as perturbações da alma, o inferno, a posse, a dor, os flagelos, a riqueza, o poder e a corrupção. Tudo estava ligado naquele ser que se dizia libertador.” [2018, p. 19]


    A presença dos líderes religiosos, com suas pregações contra o Pecado em favor da Castidade, e da Humildade, ao distribuir uma Culpa na comunidade, com as segmentações entre adeptos, os batizados, e os outros, os infiéis, ou bons e maus, numa verdadeira ‘genealogia da moral’, como diria Nietzsche, a se perguntar a quem interessa rotular alguns como bons e outros como maus? Quem julga os bons e os maus? Quem tem este poder de valorizar e julgar?

    No meio da ‘evangelização’, dos batismos, surge a dúvida e a dissidência, a figura de Yendis, que ouve uma voz, da Alma, e passa a questionar e a duvidar de toda aquela dominação religiosa. Logo, Yendis, junto com seu filho, se vê em apuros, pois uma religião institucionalizada não tolera os ‘hereges’, aqueles que ousam discordar dos dogmas. Começa o pesadelo para o herético Yendis,

     “Realmente não havia acabado. Yendis nem imaginava tudo o que iria ocorrer. Contagem nunca mais seria como antes, nunca mais haveria aquela paz. O povo nunca mais seria íntimo da natureza, não seriam unidos de verdade, nunca mais, e tudo por causa do pastor bispo, o obreiro da igreja da Contagem.” [2018, p. 34]


    O herético, e seu filho, são perseguidos, por adeptos do culto, indignados com os infiéis, e até por monstruosas aranhas, uma cena meio dantesca, tudo em nome da ‘justiça de deus’, sem qualquer piedade, quando adeptos, fanáticos, beatos se unem e conspiram para o ‘justiçamento’ dos apóstatas. Enquanto isso, Yendis percebe que o mal realmente chegou a pacata cidade de Contagem.

    Fanáticos, aranhas, agora um eclipse assustador.  Uma escuridão dantesca, apocalíptica, byroniana, gótica, com ‘gritos horrendos de morte’ é uma cena trágica mesmo – meio ao tom irônico / contraditório com os ‘bondosos’ fiéis defendendo a punição do fugitivo em ‘nome de deus’.  A cena seguinte, onde o Apóstolo, com suas ovelhas adeptas, suplica uma ‘intervenção divina’ contra o herético, exibe sem véus as contradições e as crueldades da seita religiosa.


    O líder religioso sempre precisa de mais adeptos, de ovelhas, prontas para testemunharem e catequizarem novas ovelhas, numa expansão constante, como sabemos ter acontecido com as religiões, as grandes, ao longos do tempo e nas civilizações. A expansão do hinduísmo, do budismo, do cristianismo, do islamismo, mostram como as conquistas ocorrem nos campos da cultura e nos campos de batalhas.


    Pregando a libertação, o sacerdote, ou apóstolo, interfere na comunidade de nativos, de indígenas, de quilombolas, em nome de uma Divindade, o Altíssimo, e contra as obras maléficas de um Demônio, um Destruidor. Se os nativos não se converterem serão abandonados às garras do Grande Mal. Para serem salvos os adeptos precisam aceitar os dogmas e os rituais e implorarem pela salvação, prometida pelo Apóstolo.


    O poder clerical se estende sobre todas as áreas da sociedade, e fanáticos criam mais adeptos e perseguem os dissidentes, ou adeptos de outras crenças. É um círculo dantesco de contaminação doutrinária e caça às bruxas. E Yendis é perseguido por grupos fanatizados e apoiados por outros grupos que resistem à doutrinação do tal Apóstolo.


    O dissidente Yendis até tentou enfrentar o Apóstolo com ajuda de outros resistentes, um verdadeiro duelo, mas percebe ser inútil. Fatos sobrenaturais, fantásticos, surreais,  se sucedem, até mortos saem dos túmulos, como uns zumbis de filme de terror, e tudo se mistura na loucura, mortos e vivos, zumbis e fanáticos. ‘Que os mortos enterrem seus mortos’, diz um verso bíblico.  E Yendis desiste de ficar desafiando ou fugindo do líder religioso.


    Yendis tem um último encontro com o famigerado Apóstolo, mas não há duelo desta vez. O dissidente, o rotulado como herético, não resiste mais, deixa-se aprisionar. E ser executado. Morto em sacrifício em nome de Deus. Os fanáticos venceram. Espere um momento. Tal sacrifício não foi em vão. “A morte de Yendis trouxe claridade àquelas visões esclarecidas.” [2018, p. 94]


 

    Como um ato final, Yendis se sacrifica como um Messias, a deixar-se ser crucificado. Yendis prefere o automartírio do que fugir mais uma vez. É assim um Sócrates, o filósofo, que aceita sua morte como um mártir da Verdade. Yendis morre como um herói. Os fanáticos despertam do transe e voltam para suas vidas. Claro que nunca mais serão como já foram, nunca mais o povo de antes da alucinação religiosa. Mas, por enquanto, a cidade está liberta do drama.





    O Vírus da Religião


    Em época de viroses, epidemias, pandemias, crises sanitárias, caos na saúde pública, Yendis, o poeta & profeta, vem adicionar mais uma conspiração para explicar o surgimento das religiões: e se tudo for culpa de um vírus lunático? A religião pode ser uma virose psicodélica que fugiu ao controle…


    Se em A Invasão [2011] a causa das religiões eram agentes infiltrados de uma conspiração alien, aqui em O Vírus a causa é outra – mais biológica, uma doença nervosa, uma histeria coletiva – num quadro dramático de caos que vemos em A Peste [1947] , do franco-argelino Albert Camus e em Ensaio sobre a Cegueira [1995] do português José Saramago. O ser humano confrontado por forças e fenômenos para os quais não tem resposta nem resistência.


    Aqui Yendis encontra um jovem nas ruas, andando pela cidade e, em seguida, inicia um profundo diálogo, ao estilo platônico, tal como Sócrates conversava com seus convivas, sobre as origens das religiões na sociedade desde os tempos imemoriais. Percebemos que Yendis é uma voz de dissidência e de razão num mundo que tende ao reacionarismo e fundamentalismo. O que ele vem comunicar? Basicamente: Como surgiram as religiões? A quem servem os líderes religiosos? Como os poderosos utilizam os religiosos para manipularem os povos?


    Como era o mundo antes, lá na antiguidade mais remota, numa cidade utópica chamada Abrobaticity, sem desigualdade social, sem preconceitos, onde não havia religião, nem líderes religiosos, nem casta de sacerdotes, e o povo cuidava da própria vida, sem templos e sem seitas. “O ser não vivia debaixo de lei, ele era sua própria lei.” (2021, p. 23)


    Foi a disseminação de um estranho vírus que acabou por gerar as religiões num processo de epidemia e de fanatismo, quando pessoas infectadas começaram a ouvir vozes, a ver sinais no céu e na terra, tomando as ilusões e miragens como fatos autênticos, como mensagens das divindades, e começaram a profetizar pelas ruas, sobre as mensagens divinas e conseguiram seguidores que fanatizaram mais pessoas, num crescendo.


esta doença fazia que o infectado sofresse de alucinações, que ouvisse vozes, que idolatrassem qualquer lixo de coisa existente ou não, que achassem que tinham poderes supraterrenos, e que possuíam alguma missão, e entre estes infectados haviam pessoas influentes que começaram a destilar o ódio sobre o seu próprio povo criando leis ilógicas, criando milícias para reprimir o povo, [...]” [2021, p. 31]



    Enquanto isso, os cientistas começaram a pesquisar o vírus e elaboraram uma cura, mas aconteceu que vários já estavam infectados e disseminando a virose e as alucinações como se fossem visões proféticas, criando cultos e rituais, se ajoelhando diante de ídolos em crenças que então congregavam vários infectados e mais devotos, de modo que os cientistas, responsáveis pela cura, passaram a ser perseguidos e eliminados!  A Ciência passou a ser desacreditada pelos fanáticos, os de mentes fracas ou arrogantes, que julgavam em acesso direto com a[s] divindade[s].


“A cura havia sido descoberta e levada a todos os povos, a todos os líderes da terra, mas o vírus havia já se espalhado, o caos já reinava, todos os líderes daquelas sociedades eram pessoas comuns que não entendiam coisas como riquezas, pois todos tinham de tudo, esses líderes eram pessoas que viviam para o bem do próximo, essas pessoas naquela pandemia, tiveram muito poder em suas mãos e gostaram do que sentiram, esses líderes se aliaram aos doentes e criaram templos de adoração. Estes líderes se aliaram aos seguidores religiosos para manter o poder, aliaram-se a todos os que subiram no púlpito, aos que subiram no altar, se aliaram a estes e puseram a caçar todos os cientistas da terra e os mandaram para a fogueira como pessoas hereges, como pessoas que eram contra os seus deuses, o seu deus, […] Havia a cura, mas não era de interesse dos agora poderosos esta cura para a terra, não!! [2021, p. 44]



    Aqui podemos nos lembrar do julgamento do filósofo Sócrates em Atenas, por supostamente afastar as novas gerações dos cultos das divindades, apenas por questionar os dogmas e os sensos-comuns da sociedade grega. Podemos nos lembrar de Sidarta Gautama, o Buda, sendo perseguido em sua própria terra pela casta de sacerdotes brâmanes. Podemos nos lembrar de Jesus, o Cristo, perseguido pelos líderes religiosos, os fariseus e os saduceus, que queriam manter a todo custo o domínio dos ritos judaicos.


    E podemos nos lembrar de vários que ousaram criticar os estamentos religiosos. Lembramos de Hipácia de Alexandria, matemática e filósofa neoplatônica, atacada e linchada por fanáticos cristãos. Lembramos de Joana D’Arc, queimada como bruxa, traída pelos compatriotas. Lembramos de Giordano Bruno queimado pela Igreja quando defendia suas ideias que não confirmavam os dogmas. Lembramos de Galileu Galilei, cientista e engenheiro, que foi silenciado pela Igreja ao defender o heliocentrismo contra o geocentrismo das castas sacerdotais. E muitos outros mártires da filosofia, da ciência, do conhecimento, que foram torturados e executados em nome de uma aclamada Fé, Crença, Sagrado, mero dogma de domínio político-secular.


    É a mesma crítica do visionário William Blake, que questionava as religiões instituídas, que empregavam os dogmas para controlarem os adeptos e silenciarem os dissidentes, logo rotulado como heréticos. Mais radical que Blake foi Nietzsche, que negou a própria validade das religiões desde a genealogia da moral. Pois se Blake ainda proclamava sua própria ideia de religião, sua religiosidade pessoal, o anticristo Nietzsche denunciava a religiosidade como uma corrosiva decadência.  


    Em seu Vírus da Religião, o pensador & poeta Yendis mostra que o poder corrompe e de modo total. Líderes políticos se aliam aos líderes religiosos apenas para manterem o status quo, sendo a religião mais um modo de manter a ‘ordem social’, com um povo passivo por dogmas e esperançoso por recompensas em Outro Mundo. Infectados e não-infectados são tomados pela mesma insanidade e alucinação,


     “pela loucura que era sintoma do vírus, transpunham esta loucura a outros e o vírus também se espalhara, mas mesmo naqueles em que o vírus não se manifestava, pessoas que eram imunes ao vírus, algumas destas pessoas foram suscetíveis aos infectados e também começaram a seguir os religiosos, como assim se definiam, ou somente adoradores, acho que por medo, não me lembro bem, muitos tiveram que fugir, pois estes religiosos infectados pelo vírus da religião se tornaram pessoas más a querer matar, destruir, lançar ao fogo todos aqueles que não eram a favor de seus deuses, de seus pensamentos, e assim a sociedade que vivia em paz se tornou louca e desprezível quando o vírus se espalhou sobre a terra.” [2021, p. 47]




    Os sintomas só se agravam, os infectados transmitem vírus e alucinações, em quadros cada vez mais bizarros,


em Abrobaticity todos os contaminados eram cegos a inventar a luz, a ver figuras no céu, a ficar ajoelhado perante barro ou madeira a adorar deuses, acreditavam que poderiam mover montanhas, acreditavam que poderiam apagar o sol e a lua, estas pessoas contaminadas estavam cegas e juravam que poderiam levar outros, eram cegos guiando cegos, sim!” [2021, p. 50]



    Inútil foi o trabalho, e o esforço, a dedicação dos heróis, os cientistas, para explicar a doença, esclarecer os sintomas, aplicar a cura – a religião se espalhou, entre infectados e não-infectados com a mesma frequência e bizarrice, mais e mais fiéis e fanatizados crendo em aberrações atmosféricas e ressurreições de mortos, e profetas que clamam no deserto e ‘cegos que guiam cegos’, sem aceitarem qualquer pensamento lógico, filosófico, não-dogmático. “Pois a ciência já estava sendo vista como algo contra os deuses criados pelas mentes adoecidas, contra todo tipo de madeira, pedra, montanha, papiros ou qualquer outro artifício adorado pelos fanáticos.” [2021, p. 54]  


    Uma coisa que sempre me impressiona muito é a idolatria. A mesma que desagradava profundamente a um Lord Verulâmio, Francis Bacon, na Inglaterra dos séculos 16 / 17, que denunciava os tantos ídolos que nos cercam e nos cegam. Precisamos estar atentos aos ídolos da tribo, os ídolos da caverna, os ídolos do mercado, os ídolos do teatro, todos eles erros que cometemos em nossas percepções e julgamentos, nas disciplinas de filosofia, e nas ciências, e no mundo da religião. É realmente bizarro ver como pessoas erguem ‘bezerros de ouro’ que elas mesmo construíram e se prostrarem em adoração! [E bizarro como muitos se vangloriam como se fossem ‘donos de deus’, com um acesso privilegiado à divindade.]


    E, em suas batalhas de suas ‘guerras santas’, os loucos conseguiram suas vitórias na propagação da fé, ou alucinação virótica. Cada grupo com sua divindade, e a disseminar mentiras, e conspirando contra a divindade de outro grupo, e ‘morrendo em nome da fé’, loucos adoradores de imagens e ídolos, e que ouviam vozes, e que viam sinais no céu, num quadro de loucura total que lembra aquelas pinturas de Hieronymus Bosch [século 16, Países Baixos], com visões, alucinações, miragens, numa pluralidade de sombras e penumbras, como delírios do inconsciente.  


Estas pessoas doentes se levantam contra aqueles que possuem a verdade, a ciência, a justiça… Estas pessoas, elas mesmas criaram sua própria verdade, suas leis, sua justiça, criaram um mundo paralelo onde quem manda neles é algo que nunca viram, e os que juram ter visto acabam virando mártires destes próprios adoradores, que ironia, não?” [2021. p. 80]



    Aos poderosos não interessava a cura da pandemia, pois um povo adoecido é melhor dominado, e um povo ignorante é melhor enganado pelas doutrinas. “O gado religioso era dócil, manso, e assim deveria ser, em todas as escrituras religiosas que surgiram diziam que Deus se agradava de ver o seu rebanho manso como cordeiro” [2021, p. 77] E, no entanto, os religiosos insistiam que a religião era boa, humanitária, fazia caridade, abrigava os necessitados. Yendis desmente tal propaganda de religiosos, pois a religião não é a cura, mas a doença,

A religião criou os necessitados e pobres para poder apoiar o seu poder, não existe criador sem criado, não existe líder sem súditos, não existe rico sem o pobre e nem abastados sem os miseráveis, foi isto que a religião criou, ela criou a separação entre os seus, entre o seu povo.” [2021, p. 73]



    Quando os religiosos morrem, pela infecção virótica, ou pelos suplícios, e jejum, em nome da fé, são estes considerados verdadeiros mártires da religião, e novas narrativas – lendas, sagas, mitos, mitologia etc -  são criadas para alastrar mais crenças, como se o sacrifício dos crentes fosse a prova da crença! Aquele que, crendo, poderia andar sobre as águas e, se afoga, é um mártir da fé! E a sandice se propaga e reforça o quadro da pandemia. Em promessas de ser salvo da morte ou, quando morto, ser agraciado com a vida eterna.


Quando morriam um líder deles que pregavam seus deuses estes consumiam o seu corpo e espalhavam a notícia de que Deus ou deuses o haviam arrebatado, que este não morreu e sim foi levado aos céus que era onde moravam os deuses e lá teria a paz eterna e vida eterna, assim prometiam a todos que os seguiam, uma felicidade de pois da morte.” [2021, p. 85]



    A mitologia leva a crença até aos não-infectados que seguem os alucinados infectados na propagação da Fé numa crescente demência que leva o mundo paradisíaco de antes a um lugar de permanente sofrimento, tristeza, pecado e penitência. Não havia qualquer ‘lugar prometido’, nenhum paraíso, mas “este lugar prometido era uma loucura, era uma alucinação causada pelo vírus, este lugar não existia, mas para aquelas pessoas doentes sim, acreditavam fielmente que existia tal lugar e estas pessoas matavam em nome do vírus da religião.” [2021, p. 87]


    Eis a tragédia: as pessoas se feriam, se matavam, guerreavam, matavam umas as outras, em nome de uma crença, de uma loucura, em busca da Salvação e da Vida Eterna. São lutas teológicas, heresias contra ortodoxia, em perseguições, nada de caridade, ao contrário, mais intrigas pessoais e coletivas, em excomunhões, inquisições, condenações e execuções. E ainda vem o religioso falar em caridade e tolerância?


    É fato. Livros, Códices, pergaminhos, obras de Arte foram vandalizadas e destruídas apenas porque não se encaixavam no mundo de crença, não seguiam a ortodoxia no poder. Assim os ataques aos pensadores, filósofos, acadêmicos, matemáticos, que se seguiram por séculos, durante a oficialização da religião cristã, durante a expansão da religão islâmica – até culminar na dpominânica religiosa, e as sangrentas Cruzadas, durante o tenebrosa Idade Média.  


    Judeus expulsaram cristãos, e cristãos expulsaram judeus, e cristãos expulsaram pagãos, e muçulmanos expulsaram cristãos e pagãos, e centros de conhecimento, como a Biblioteca de Alexandria, no litoral norte do Egito, foram saqueados e queimados ao longo das guerras civis e religiosas. As culturas de outra religião eram desprezadas e eliminadas. Só tinham validade os ‘livros santos’ de cada Fé. O que os padres diziam sobre o conhecimento antigo, pré-cristão, a sabedoria helênica e oriental ? Não sendo bíblico o saber então seria pernicioso. “A Bíblia tem tudo e não se atreva a procurar em outro lugar.” [2010, p.184]


    A mesma atitude têm os islâmicos com o Alcorão, ou Corão, que limita a vida religiosa e social no mundo maometano. E qualquer ponto fora do Livro Sagrado revelado é logo rotulado de ‘heresia’ e o herege merecedor da morte. Assim quando tropas islâmicas conquistaram a cidade de Alexandreia, no século VII, o califa não protegeu o conhecimento armazenado na Biblioteca, mas se pronunciou, com desdém, “Se o que está escrito nos livros concorda com o Livro de Deus [Corão], eles não são necessários; se discorda, não são desejáveis. Portanto, destrua-os.” [2010, p. 192]


E também foi naquele tempo que começaram a fazer literaturas inspirada pelo vírus, os doentes que possuíam adoração a escrita, estes doentes, eles começaram a escrever os relatos dos doentes sobre todas as coisas que estes diziam ver e fazer, assim em pouco tempo haviam milhares de livros religiosos no mundo e todos tinham o seu livro e cada um a sua religião.” [2021, p. 81]

Tais histórias eram inventadas para fazer daqueles que não possuíam o vírus acreditar no invisível e para acalentar aquelas almas desprovidas de inteligência, aquelas as quais o vírus já tinha infectado, comendo todo seu intelecto, e realmente acreditar nestes seres invisíveis que os mandavam fazer coisas uns contra os outros.” [2021, p. 84]


    É tudo o que Yendis tem a revelar ao jovem Pedro, que tudo ouvia estarrecido e perplexo, que antes de desafiar o domínio religioso precisaria vencer uma ‘luta interna’. O jovem precisa aprender a ‘viver plenamente’, sem recorrer às ilusões e crenças num Mundo Além. O conselho e a exortação final de Yendis, o atemporal, é que o jovem Pedro seja firma como uma pedra e fortaleça sua ‘energia interior’, uma ‘energia vital’,


Essa força, essa energia interior que nossa sociedade chamava de energia da vida, que é dada a todos os que vivem, tudo desde plantas aos seres humanos, […] Essa energia vital esta dentro de cada ser que vive, ela fornece todas as faculdades mentais que uma pessoa pode ter, ela naquela época era medida assim que a criança nascia, […]” [2021, pp. 82-83]  


    É preciso aceitar e despertar esta força interna para resistir mentalmente às alucinações da vida religiosa, com seus medos e ameaças, com seus delírios coletivos de Pecado e Penitência e Salvação. É preciso combater as falácias religiosas e os poderes que se constituíram sobre os templos, igrejas, sinagogas e mesquitas. É preciso resistir aos tantos fiéis, obreiros, adeptos, clérigos, diáconos, apóstolos, freiras, monges, discípulos, padres, pastores.


Devemos combater o que causou o fim da terra, o vírus da religião, o maior mal já acometido pelo ser humano, a maior desgraça espalhada pela terra há milênios, isto que deemos combater e não os sintomas da doença, vivemos brigando contra os galhos de uma árvores que está podre sem saber que devemos é extirpá-la.” [2021, p. 93]



    Diante da grande ameaça religiosa, as palavras de Yendis são de esperança, já que agora ele não se sacrifica, como fez no livro anterior, diante da figura do Apóstolo, em uma Contagem já corrompida. Agora é diferente. Qual será nosso inapelável Fim? Terá mais tons apocalípticos? Está selado e predeterminado, sem solução?


     “O nosso fim é saber que dentro de nós existem milhares de deuses criados por nós e que como nossos demônios nós temos que ter a consciência que são apenas reflexo de nossa identidade, para o bem ou para o mau e que não existem.
[…]
     O nosso fim é ver revelado as verdades que no íntimo já sabíamos.” [2021, p. 97]







    Conclusão


    É com muita leitura e ironia que Yendis Asor Said, poeta e profeta, apresenta sua Obra, poética, dramática, iconoclasta, profética, sempre jogando com a intertextualidade, com a erudição dos leitores, uns mais, outros menos, mas sempre desafiados a seguirem os passos no labirinto, muitas vezes sem um fio de Ariadne.


    Enquanto leitores, leitoras, é preciso um esforço para adentrar o universo de Yendis, que às vezes é mesmo prolixo, ou repetitivo, mesmo excessivo, mas todo exagero tem um objetivo de ironizar mesmo, de ser sarcástico, como uma ópera bufa ou cordel ou paródia, onde os fatos são aumentados, superdimensionados, mas não gratuitamente. Há um desejo de educar com o riso e o sarcasmo, como percebemos nas obras dos satíricos, como Rabelais [François R., 1494-1553] e Swift [Jonathan S., 1667-1745] e dos  iluministas, um Voltaire [Fraçois-Marie Arouet, 1694-1778] ou um Sade [Marquês de S., 1740-1814].


    A Obra de Yendis Asor Said, ou Sidney Rosa Dias, exige concentração e paciência, mas não é monumento de seriedade, antes, ao contrário, podemos nos divertir muito. Sua crítica mostra erudição e deboche, muita leitura, referências, intertextos, e também tom coloquial, assim uma união de contrários, como desejava William Blake, aquele que anunciava as bodas do Céu e do Inferno, e criticava toda religião estabelecida. Dogma é limitação, é mumificação. É preciso aprender a ‘abrir as Portas da Percepção’ e ‘ver o mundo tal como ele é: Infinito’.



nov/21


             Leonardo de Magalhaens

             poeta, escritor, tradutor,
              bacharel em Letras / FALE / UFMG



Mais sobre a Obra do autor Sidney / Yendis
em

https://clubedeautores.com.br/livros/autores/yendis-asor-said

http://contagem.mg.gov.br/?materia=951901


 

 

Referências


ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. 39ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

AVRELLA, Sérgio. A defesa de Sócrates. Curitiba: Base Editorial, 2009.

BACON, Francis. Novum organum. São Paulo: Nova Cultura, 1997.

BLAKE, William. Casamento do Céu e do Inferno. Porto Alegre: L&PM, 2007.

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. 3ª ed. Rio de Janeiro. 1979.

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 2011.

CAMUS, Albert. A Peste. Rio de Janeiro: Record, 2017.

CLÉMENT, Catherine. A Viagem de Théo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FLOWER, Derek Adie. Biblioteca de Alexandria. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão.  Tradução Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução Mário da Silva. São Paulo: Civilização Brasileira, 1977.

______________ . Crepúsculo dos Ídolos. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

______________ . Genealogia da Moral. Tradução Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

PRÉ-SOCRÁTICOS. Fragmentos. Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

SAID, Yendis Asor. O Apocalipse. Contagem: edição do autor, 2018.

______________ . A Invasão ou O Nascimento da Religião. Brasil: Imprimatur, 2011.

______________ . A Verdadeira História de Contagem. Brasil, Imprimatur, 2018.

______________ . O Vírus da Religião. Brasil, Imprimatur, 2021.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.



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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Religiões: invasões aliens, vírus lunático ou outras conspirações?

 

 

 


 

  Sobre a obra ficcional-filosófica de Yendis Asor Said,
poeta, pensador e profeta de Contagem / Esmeraldas / MG,
alter-ego e heterônimo do autor Sidney Rosa Dias [1977-]



    Religiões: invasões aliens, vírus lunático ou outras conspirações?


“Este mundo [kósmos], o mesmo de todos os seres,
nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e
será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas
e apagando-se em medidas.”
“o deus é dia noite, inverno verão, guerra paz,
saciedade fome, mas se alterna como fogo, quando
se mistura a incensos.”
                               Heráclito de Éfeso [540-470 a.C.]
 
“Um pouco de filosofia induz a mente humana ao ateísmo,
mas a filosofia profunda conduz a mente humana à religião.”
                                        Francis Bacon [1561-1626]

My Angels and my Demons at war.” [canção Double Agent

1993, by Rush, rock band, Canada]



    Introdução


    Desde o período do Renascimento [séculos 15 e 16] passando pelo Iluminismo [século 18], os pensadores, os filósofos, os literatos, os reformadores têm se detido na questão: qual a necessidade e o propósito das religiões?

    Alegorias, epístolas, tratados, teses, utopias foram escritas para iluminar as mentes e libertar os sectários de seus dogmas. Erasmo de Roterdam, Thomas Morus, Martin Luther [Lutero], Jean Calvino, Nicolau Maquiavel, Jerônimo Savonarola, Montaigne, Pascal, Rabelais, Thomas Hobbes, Francis Bacon, Giordano Bruno, Mirandolla, Galileu, John Milton, Swift, Rousseau, Voltaire, Marquês de Sade, William Blake, Novalis, Shelley, Edgar A. Poe, Charles Baudelaire, todos se debruçaram sobre a presença e a dominação religiosa.

    Qual a necessidade da religião? Uma forma de dar Um Sentido para Viver? Uma forma de apaziguar o medo da morte, da finitude? Uma forma de reverenciar o Mundo, a Natureza? Uma forma de religar [religare] o ser humano às divindades? Uma forma de agradar / servir aos deuses em troca de bençãos, boa caçada e boas colheitas? Uma forma de superar a carência simbólica da humanidade? Uma forma de canalizar a religiosidade / espiritualidade inerente ao ser humano? Uma ficção / alegoria / ilusão a ser superada assim que a civilização se desenvolve e evolui, segundo o psicanalista Sigmund Freud em Futuro de uma Ilusão?


    A força da religião supostamente estaria no transcender-o-aqui-e-agora. Seja num modo platônico, de Mundo das Ideias, de onde viemos; seja do modo teológico, um Paraíso celeste que nos espera após a morte física; ou do modo místico, com uma união do Eu com um Todo, num estado de plenitude, ao fim dos ciclos de encarnação e sofrimento.

    A religiosidade primeva, das culturas nômades, adorava os astros, os elementos, os animais selvagens, os ancestrais, dando oferendas ao Sol ou a Lua, cultuando a Luz, o Fogo, ou a Água, criando cultos em torno das Aves, do Urso, do Búfalo, o Lobo, etc, louvando os espíritos dos pais, dos avôs, dos fundadores da família ou tribo.

    Depois, com o sedentarismo das culturas agrárias, a religiosidade se dedicou às divindades que estariam ligadas aos, ou por trás dos, astros e elementos, então cultuando o Deus do Sol, a Deusa da Lua, o Deus do Trovão, a Deusa das Águas, o Deus do Mar, ou o Deus-Lobo, o Deus-Chacal, o Deus-Urso, através de estátuas e totens, a cada tribo ou nação.

    Por fim, em sociedades plenamente agrárias, estabelecidas, até urbanizadas, a religiosidade se voltou para os ‘criadores’ dos elementos, numa miríade de deuses e entidades, e por fim ao Criador único de todos os Elementos, com o advento do Monoteísmo, desde o faraó Akhenaton, arauto do Deus-Único, as Tábuas e a pregação de Moisés, o zoroastrismo. Assim o deus da chuva, o deus do trovão, a deusa das águas, deus da terra, em suma, todas as divindades foram agrupadas ou abandonadas em prol de um Deus único que criou tudo por ele mesmo. Um deus que não era feito dos elementos, mas fora destes, criador destes. Um Deus que é altíssimo, transcendente, não se confundindo com a Criação, a Natureza.


    Os seguidores humanos vivendo sempre de olhos elevados, em busca da sagrada Morada dos Deuses. Em várias religiões primevas havia a ideia de que os Deuses habitavam em algum Lugas Sagrado. No Monte Olimpo, numa Montanha Sagrada, no alto do Monte Sinai ou Horebe, num Rio que desceu da Morada dos Deuses, assim o Rio Ganges na Índia.

    Quem tem acesso a tais Lugares Sagrados? Quem pode decidir quem será salvo e resgatado e quem será condenado e lançado no Esquecimento? São sempre os sacerdotes, os que vivem nas castas religiosas, que controlam os acessos até as Divindades, os verdadeiros ‘donos de deus’, dos quais Nietzsche desconfiava, com razão. Em Crepúsculo dos Ídolos, “Desconfio de todos os sistematizadores e os evito. A vontade de sistema é uma falta de retidão.” [Máximas e Flechas, 26.]

    Os sacerdotes pretendem normatizar, doutrinar, em códices consagrados, uma Verdade. Eles sabem dominar a linguagem, ou as figuras de linguagem, para manipularem os incultos adeptos. E como hoje os professores de gramática, que tratam a linguagem como um construto acessível apenas a alguns iniciados, os estudantes de Letras, os mestrandos, talvez. Seria uma crença na gramática, que Nietzsche também ironizava: “A ‘razão’ na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática.” [A ‘razão’ na filosofia, 5]


    Em sua pregação contra a Vida, o mundo do aqui e agora, os sacerdotes adentram a era da decadência: ao desvalorizar a vida e crer num Além, numa ‘Redenção’. É quando é divulgada uma Moral: uma antinatureza – uma negação da vontade. E o que eles entregam em troca? A Salvação – a Vida Eterna no Além. Quem são estes Salvadores? Os ‘melhoradores’ da Humanidade? Devemos ouvir os pregadores se quisermos ter acesso às Divindades.

    O poder dos pregadores, dos sacerdotes, vem do Julgar e Punir : os religiosos se sentem no direito e dever de julgar e punir. E somente o conseguem quando o fiel, o ser humano adepto, internaliza a Culpa e passa a suplicar por Redenção. Sobre esta introspecção dolorosa, Nietzsche cita Arthur Schopenhauer [1788-1860], em Parerga e Paralipomena, 1851,


“O verdadeiro critério para o julgamento de cada homem é ser ele propriamente um ser que absolutamente não deveria existir, mas se penitencia de sua existência pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que se pode esperar de um tal ser? Não somos todos pecadores condenados à morte? Penitenciamo-nos de nosso nascimento, em primeiro lugar, pelo viver e, em segundo lugar, pelo morrer.”


    Sabemos que Nietzsche era a favor dos pensadores chamados Pré-socráticos, principalmente Heráclito de Éfeso, de 500 anos a.C., com a noção de Devir – o ser-em-mudança, o mundo em fluxo. Ideias que circulavam bem antes das categorias de Sócrates, Platão e Aristóteles, os pensadores clássicos da Grécia antiga, antes da vitória sobre os persas, com as batalhas do macedônio Alexandre Magno [356 a.C. - 323 a.C.].


    Aconteceu, naqueles três séculos antes de Cristo, a helenização do Oriente Médio, o que veio a ‘pavimentar’ o caminho para a posterior expansão da religião cristã, enquanto Credo dominante, e perseguidor, que, durante o Império Romano, avançou do Mediterrâneo até as Ilhas Britânicas e a Escandinávia, da Rússia até a Península Ibérica, e depois ao Novo Mundo.




    Religiosidade e Religião


    Antes a humanidade era religiosa, vivia em religiosidade, em bem-viver, mas sem exatamente uma ‘religião’, sem uma casta de sacerdotes que ditassem o que é certo, sagrado, e o que é perverso, profano.

    Mas parece que Algo ou Alguém interferiu na vida humana em um dado momento, há mais ou menos dez mil anos atrás. Os arqueólogos também estão atentos a esta datação. Cerca de sete mil anos antes de Cristo. As tumbas, os monumentos funerários, os rituais que os povos passaram a seguir quando lidavam com seus mortos. É seguindo a descoberta de tais monumentos aos mortos que os historiadores da Antiguidade podem ser a rota de migração das civilizações. Desde os grandes rios, desde o Volga, o Indo, o Ganges, o Tigre e o Eufrates, o Nilo.

    Julgávamos os gregos clássicos como os primórdios da nossa civilização. Ilíada e a Odisseia como nossos primeiros escritos literários. Depois começamos a nos deparar com civilizações mais antigas. Os micênicos, os minoicos, os fenícios, os hebreus, os egípcios, os persas, os babilônicos, o sumérios, e assim vai, sempre mais antigos. Bibliotecas inteiras de tabuinhas com cuneiformes ou manuscritos em ânforas em cavernas nas margens do Mar Morto. Descobrimos a Epopeia de Gilgamesh, alguns livros apócrifos, muitas obras herméticas. Recentemente, nos últimos trinta anos, arqueólogos descobriram as ruínas de Göbekli Tepe, um imenso templo, ou vários templos, na região à sudeste de Ankara, Turquia, com datação possível de 12 mil anos atrás.


    Neste momento, nove, ou oito mil anos antes de Cristo, uma necessidade de sistematização da vida religiosa aconteceu. Como povos nômades poderiam dedicar tanto tempo a construção de imensos templos e monumentos? A civilização, com sua divisão de tarefas e trabalhos, possibilitou as construções de templos, santuários, pirâmides e mausoléus.  Arrastar pedras imensas em nome de qual divindade? Quem motivava os povos a criarem tais monumentos religiosos?

    Como surgiu a casta dos sacerdotes? Uma classe clerical que vive dos ritos e cerimoniais que perpetuam os cultos aos deuses ou ao Deus altíssimo. É um grupo de pessoas que não caçam, não plantam, não constroem, não fazem guerra, não administram, mas se dedicam a criar mais narrativas, muitos textos sagrados, e de modo a guiar assim as motivações e ações das demais classes, os que realmente produzem e administram / governam.

    Quem construiu as pirâmides no Egito? Quem ergueu as pirâmides no México? Quem juntou as pedras megalíticas de Stonehenge? Quem ergueu os zigurates? Quem enfileirou carrancas gigantescas [moais] na Ilha de Páscoa [Rapa Nui]? Quem desenhou figuras imensas [geoglifos]  nas areias do Nazca? Que povo decidiu construir uma cidade na montanha, lá em Machu Picchu? Povos nômades? Povos agrícolas? Povos urbanos?


    E quando? Antes ou depois do Dilúvio? A grande enchente, possivelmente ocorrida três mil anos antes de Cristo, que encontramos referida em várias mitologias, desde a sumeriana, a hebraica, a turca, a persa, a indiana. Outra civilização – ou mesmo civilizações! - existiu (existiram?) antes do Dilúvio? Atlântida, talvez não seja uma lenda. Possivelmente, jamais saberemos onde e quando se estabelecia a majestosa civilização atlante. Já era uma lenda na época de Platão, meio século antes de Cristo. Antes da Biblioteca de Alexandria, que reuniria as obras filosóficas, religiosas e herméticas da era antiga.


    Outra civilização mais antiga que a nossa – ou a intervenção de povos alienígenas – com intenções benéficas ou maléficas.  Os ‘antigos astronautas’ ou ‘alienígenas do passado’ vieram para serem adorados e instituírem a religião? Com um objetivo de ajudar na evolução dos povos homo sapiens ou numa forma de manipulação e servidão? Os aliens manipularam a genética humana e criaram gigantes ou figuras titânicas? Alienígenas que vieram em naves do espaço ou em reencarnações sucessivas de um outro plano astral?

    Ou seja, temos mais perguntas que respostas.


    As Palavras de Yendis


    Neste ensaio, em duas partes, trataremos mais detidamente de quatro obras,  A Invasão ou O Nascimento das Religiões; O Apocalipse; A Verdadeira História de Contagem; e O Vírus da Religião, publicadas entre 2011, 2018 e 2021.







    A Invasão ou o Nascimento das Religiões

    Em suas obras, o poeta-profeta Yendis tem uma data certa e objetiva, 8.035 antes de Cristo. Isso mesmo. Dez mil anos atrás, como naquela canção do Raul Seixas [1945-1989], Eu nasci há dez mil anos atrás, de 1976, em co-autoria com Paulo Coelho, inspirada em outra do rei do rock Elvis Presley [1935-1977]. Acontecimentos míticos e místicos, bíblicos e lendários, ou cenas de fábulas, acontecem tendo o cantor-narrador como protagonista ou testemunha. O que nasceu há dez mil anos atrás? O sedutor e rebelde Lúcifer? O primeiro sacerdote? A primeira casta clerical?


    Na obra de Yendis o que aconteceu há dez mil anos atrás foi a invasão de aliens, de outro planeta de nome cabalístico, que de ovos eclodiram em nosso mundo os seres que visavam atuar para submeter e conquistar os povos nativos. Estes seres enviados eram proclamadores de religiões! Se proclamam sacerdote, apóstolo, pastor, bispo até papa!

    O que pretendem? Eles querem dominar os nativos, que vivem em paz em suas aldeias, suas culturas de subsistência, em suas organizações sem castas clericais, agindo maliciosamente através de religiões instituídas, que criam conceitos de Bem e Mal, Virtude e Pecado, e vende a Cura após disseminar o Vírus. Falam em Liberdade depois de escravizarem os nativos. Prometem Salvação depois de implantarem um sistema de servidão.



    A invasão dos religiosas foi bem sucedida. Os servos do Deus altíssimo chegaram e começam a seduzir os povos. Imagine como os padres evangelizaram os celtas irlandeses, os saxões, os normandos, vikings! Como os padres catequizaram os nativos das Américas, os maias, os astecas, os incas, os tupis e outros! Como hoje os evangélicos seduzem os nossos indígenas!


“Religião funcionava desta forma, os aliens entravam escondidos no planeta escolhido e lá infiltravam os seus na sociedade e estes disseminavam cultos, cada qual segundo o povo existiam cinco povos, […] os cinco povos do planeta Clato Verata Nictu, estes movidos pelo simples interesse de dominar o povo e tomar o planeta Terra, naquele ano de 8035 AC há dez mil anos atrás desceram enviados pelos seus líderes e cada um foi encaminhado para seu território devidamente estudado e pronto para ser submetido à religião.” [2011, p. 29]


    Em seguida, aprendemos como  os enviados dos aliens conseguiram se  infiltrar, seduzir, manipular, conspirar e disseminar as seitas religiosas, formar as castas de religiosos, para melhor submeter e dominar os nativos humanos terrestres. É uma profunda crítica aos sacerdotes que nada produzem além de alegorias e dogmas que ‘domesticam’ os povos para seus interesses de domínio. Assim os sacerdotes aliados aos reis, assim os Papas que abençoam os reis e imperadores.


    Abundantes as referências às figuras bíblicas, aos anjos e demônios, às entidades de mitologias semíticas e greco-romanas, aos eventos religiosos e míticos, de lendas e relatos folclóricos, aos monges, aos eremitas, aos sábios orientais, aos gurus, aqui todos são costurados e entretecidos, plagiados e parodiados.  E toda uma linguagem irônica, sarcástica, sem poupar religiosos e leitores. A narrativa vai volta, nas aventuras dos líderes religiosos nos quatro cantos da Terra, num tom de epopeia, de saga oriental, de Texto Sagrado.

    Os enviados pelos ETs conseguem fundar religiões, estruturarem seus domínios religiosos, seus impérios de dogmas e seguidores, mas não acontece como os líderes aliens queriam. Pois ao contrário de manterem os povos pacíficos e submissos, os líderes religiosos querem mais domínios e dogmas, e mais seguidores, e cada religião se diz o centro do mundo, o ‘umbigo do mundo’, o ônfalos, com seu Salvador maioral, com seu contato direto com Deus todo-poderoso.   E assim está declarada a ‘guerra santa’ entre as crenças religiosas.

    No fim o Filho do líder alien precisa vir em pessoa ao nosso amado planeta azul para apaziguar os ânimos e repreender os ambiciosos líderes religiosos que eclodiram dos ovos lá no passado primevo, há dez mil anos atrás. É uma espécie de Messias, ou Jesus filho de extraterrestres, o que é visível escândalo para os dogmáticos da vez, para os radicais e fundamentalistas de plantão. Antes que acusem o profeta de Yendis de herege e anticristo, é preciso analisar as figuras de Jesus e de Cristo separadas.


    A) Jesus aquele homem judeu, profundo espiritualista que ousou afrontar os líderes religiosos judaicos, fariseus e saduceus, mostrando toda a hipocrisia no clero do Templo. B) Cristo uma construção dogmática do apóstolo Paulo em suas pregações, com uma união da figura do Messias judaico com o Logos grego. Que depois foi tecido no dogma da Trindade no século IV d.C. no império romano de Flávio Constantino [272d.C.-337d.C], que legitimou o Cristianismo como religião oficial, e, em seguida, dominante e perseguidora.


    Jesus [Yeshua] veio criar alguma religião? Buda [Budha] veio para criar alguma religião? Sabemos que Maomé [Mohammad] atuou com sua religião de modo a unificar os povos árabes, tanto com uma fé, com uma prática devocional, quanto comunidade, no sentido político. O Islã agrega fé e política, daí seu caráter fundamentalista, de teocracia. Mas quanto a Buda e a Jesus, é possivelmente a forma mais fácil de deturpar o ensinamento de suas conquistas espirituais seria a instituição religiosa, a dogmatização em nome do profeta e do iluminado. Tanto que nem Buda nem Cristo escreveram livros ou doutrinas. E o que Maomé recebeu como revelação foi, segundo ele mesmo, ditado pela divindade. [Assim também com Moisés, ou Moses, que divulgou uma revelação, não uma criação pessoal.]


    Diante das figuras de Buda e de Jesus, a religião, enquanto instituição e dogma, é um engessamento e deturpação do ensinamento religioso do profeta e do iluminado. Em suma, os níveis de religiosidade em Jesus e Buda são diversos daqueles de Moisés e judaísmo, e Maomé e islamismo, e dos dogmas do que se chama hinduísmo. Teocracias precisam da religião para manter os líderes políticos no poder – em nome das divindades.

 

 


 





    O Apocalipse

    Um livro pleno de visões, de alucinações, dignas de um William Blake, um Höderlin, um Novalis, um Lautréamont, um Arthur Rimbaud, mestres do que seria o Surrealismo no século 20.

    Em O Apocalipse o poeta-profeta Yendis a paródia do Apocalipse [Revelação] do apóstolo João, paródias das cartas às Sete Igrejas da Ásia Menor [hoje, Turquia]  – Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sárdis, Filadélfia e Laodiceia –, e as visões das Sete Trombetas e do Dragão e da Besta, as Sete Vozes e os Sete Flagelos, etc e tem ainda as Espadas e os Mortos.

    E quem quer parodiar é preciso conhecer. Assim Blake e as paródias com Emanuel Swedenborg, ou com John Milton. Aqui Yendis mostra que leu e releu o terrível e surrealista Apocalipse-Revelação de São João.


    E segundo o poeta Carlos Drummond, em “Visões”, o apóstolo João “teve todas as visões antes da gente”. E de tal modo que “os surrealistas não puderam com ele.” E Surrealismo aqui como o modo de escrita e criação artística adotado e divulgado pelo poeta francês André Breton [1896-1966] depois da Primeira Grande Guerra [1914-1918].


O Apóstolo São João foi realmente / um poeta extraordinário como igual / não houve depois – / nem Dante / nem Blake / nem Lautréamont


    No próprio poema de Drummond uma imagem surreal: “o crepúsculo sinfônico / pulsando sobre os montes”, mesmo que o poeta mineiro queira ser apenas uma voz prosaica, “Desculpe, São João, se meu Apocalipse / é revelação de coisas simples / na linha do possível.”

    No Apocalipse de Yendis há uma ironização da falta de coerência na Bíblia, com suas imagens desconexas e contraditórias, assim como a inutilidade e insânia de conciliar o Novo e o Velho Testamento. Terceira Espada seria uma sátira com um reality show ?  Os mortos saídos de algum filme B de zumbis ou de um Walking Dead.

    A Besta seria mesmo a religião institucionalizada, a religião burocrática de uma casta sacerdotal – não apenas em Roma – mas erguida nos altares.  “A grande Besta ornava estes seus líderes com ouro e pedras preciosos – e eram guiados por cegos que acreditavam nestes líderes” [2018, p. 48]



    O tom profético do texto é proclamado na própria obra, com sua parte final, As Promessas,

Aqueles que lerem este livro apenas por ler, sem se inspirarem, verão nele apenas uma obra poética, mas aquele que procura descobrir a verdade além de si mesmo, terá neste livro uma infinita fonte de sabedoria, de descobrimentos e de intuições vivenciadas de ordem superior.” [2018, p. 78]

 

    O Apocalipse, o da Bíblia, tem todo um clima de conspiração, uma atmosfera sombria, que causa mais medo e terror do que devoção. É uma imagem dramática de fim do Mundo, um Fim dos Tempos. É a proclamação de um Juízo Final, que vem atemorizar os devotos. Os justos serão elevados ao Paraíso Celeste e os pecadores serão lançado no fogo do Inferno.

    E a Igreja cristã sempre usou o tom ameaçador para conduzir seus rebanhos de crentes, para distribuir a Culpa e condenar o corpo e o prazer neste ‘vale de lágrimas’. É fato, “o cristão condena, denigre e enlameia o mundo”, segundo Nietzsche, que não poupa ninguém na ilusão das religiões. E mais, para o filósofo com o martelo Nietzsche o Cristianismo é uma metafísica do carrasco. [Os quatro grandes erros, 7; Crepúsculo dos Ídolos]



    Nietzsche despreza o cristianismo, mas tem atenção para as crenças orientais, conhece o budismo via Schopenhauer, conhece a tradição persa com o zoroastrismo, que a ele foi inspiração para o seu profeta iconoclasta Zaratustra. O filólogo e filósofo alemão desconfia de todo discurso de Além, de Compaixão, de Sacrifício, de Moral, que afasta o ser humano do ‘viver plenamente’, do viver aqui e agora, sem recorrer às crenças.





[continua na Parte 2]





nov/21


Leonardo de Magalhaens

poeta, escritor, tradutor,
bacharel em Letras / FALE / UFMG




Mais sobre a Obra do autor Sidney / Yendis
em

https://clubedeautores.com.br/livros/autores/yendis-asor-said

http://contagem.mg.gov.br/?materia=951901




quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Sobre O Cético Selo [2021] obra do poeta e filósofo Rodrigo Starling

 


 

 

Sobre O Cético Selo (poemas, BH, 2021)
do poeta e pensador Rodrigo Starling


Poemaremos entre os extremos numa núpcias de opostos


    O desafio que é escrever um poema. A audácia que é adentrar o reino da Poesia. Somente reservada aos Eleitos e os Loucos. Ao Louco no alto da colina. Fool on the hill. Qual o propósito de se escrever? A que fim se destina? O que ganharemos com isso?

    Poesia pra quê? Poesia sobre poesia? Literatura sobre o fazer literário? Um eterno andar em círculos? Onde a poesia para a Vida? A poesia enquanto libertação? Poesia enquanto busca da Beleza, enquanto expressão, desde aquelas mãos pintadas nas paredes das cavernas neolíticas, ou enquanto resistência, o Eu clamando diante da opressão e das injustiças do mundo.

    Poesia sendo a externa expressão de desassossegos íntimos, inquietações do sentimento e do pensamento. Uma maneira que os humanos encontraram de comunicar afetos e percepções, de modo ritmado, ritualístico, performático, assim como criaram a música e o teatro, as orações e as religiões. Poesia como forma de re-ligação com uma pátria espiritual ou anseios de vida eterna.


    Poesia de visionários, de poetas videntes e profetas, poetas que são artífices da linguagem, grandes mensageiros da Essência – divina, atemporal ou humana, demasiado humana. W. Blake [1757-1827], Friedrich Hölderlin [1770-1843], Novalis [1772-1801], Friedrich Nietzsche [1844-1900], Arthur Rimbaud [1854-1891], Stephane Mallarmé [1842-1898], Alphonsus de Guimaraens [1870-1921], Ezra Pound [1885-1972], Rainer M. Rilke [1875-1926], Georg Trakl [1887-1914]. E claro, Charles Baudelaire [1821-1867], o poeta francês que fez a transição do romantismo ao simbolismo, sendo a ligação entre Blake e E. A. Poe e Rimbaud e Mallarmé. [Indicamos as leituras de Walter Benjamin e a modernidade de Baudelaire]



    A Poesia que é fala única através de um arranjo de palavras. Um poema é intraduzível – como traduzir Hölderlin, William Blake, Rimbaud, Ezra Pound – uma tarefa hercúlea e ingrata. Tentemos traduzir um trecho de Blake, Tyger, Tyger, burning bright / In the forests of the night // In what distant deep or skies / Burnt the fire of thine eyes? Como reproduzir em outro idioma a beleza sonora e imagética dos versos na língua do Bardo? [Aliás, constatamos as dificuldades e asperezas da tradução nas tentativas do português Fernando Pessoa de verter os sonetos de Shakespeare]




    De modo que aqui vamos falar de Filosofia e Poesia. Sim, de ambas ao mesmo tempo. Dos entrelaçamentos ‘quânticos’ entre elas, digamos. Martin Heidegger, professor e grande filósofo alemão, e infelizmente fascinado pelo canto da sereia nazista, para ter manchada sua biografia, será nosso guia neste ‘entrelaçar’ de pensar e poetizar. Heidegger via a poesia como uma volta a essência do pensamento, como uma forma de linguagem concentrada, ou como ele dizia, a “linguagem é a casa do ser”, ou ainda,  “A Poesia é a fundação do ser pela palavra”.

    Assim entre o pensamento e a poesia há uma relação de parentesco, pelo fato de ambos utilizarem a Linguagem e progredirem com ela. Porém entre o pensar e a poesia continua um abismo, ao morarem em cumes distintos.


    Poesia enquanto manifestação do Ser, na forma de produção/ poiésis. É a comunicação das possibilidades existenciais, uma abertura da existência, o objetivo do discurso poetizante. Poesia é vida e criação, não um jogo de palavras. Nada tem de atividade lúdica. Para o filósofo alemão a Poesia está além do gênero literário, não é uma questão de estética, de enfeite, de adorno, mas uma criação, é a própria Linguagem.

    Linguagem que é tecida e superada a cada geração. Onde está a História da Humanidade? Nas narrativas – na Epopeia de Gilgamesh, na Ilíada e na Odisseia, na Bíblia judaica, nos Salmos e nos Provérbios, no Novo Testamento, na Eneida, nas sagas nórdicas, no Edda, no Beowulf, no El Cid, no Bhagavad Gità, no Corão, no Shannameh persa, na Divina Comédia, nos Lusíadas, no Fausto de Goethe, no Kalevala … Na fala poética o verdadeiro testemunho das aventuras e desventuras da espécie que se expressa humana.

    Para o poeta alemão Hölderlin, estudado por Heidegger, o que importa é a vivência poética, para além do cotidiano, que nos afasta do poético, enquanto contato com os Deuses [aqui realmente o lado ‘pagão’ do poeta, que admirava o classicismo helênico, tal como depois influenciaria Nietzsche, para quem estamos ‘em decadência’ depois do ‘apogeu grego’.]

    Dois trechos seletos de Hölderlin demonstram bem está crença do Poeta de estar em contato com as Divindades, mais além das Musas, que empalidecem diante do fulgor do Olimpo,


“Teu silêncio entrarei, Mundo das sombras,
Contente, ainda que as notas do meu canto
Não me acompanhem, que uma vez ao menos
Como os Deuses vivi, nem mais desejo.”

[An die Parzen, Às Parcas, trad. Manuel Bandeira]

.

“Assim também nós, poetas do povo, gostamos
De estar em meio à Vida que respira e ondula,
Amados de cada um, em todos confiando
Senão, como cantar os próprios Deuses?”

[Dichtermut, Coragem Poética, trad. Moacyr Félix]



    Em Heidegger e Nietzsche, além de Hölderlin, podemos sentir as tensões entre a filosofia e a poesia, nas palavras do místico Zaratustra, “Os poetas mentem demais”, os poetas criam mundos e entidades que não existem – ou existem só nos domínios da Linguagem. Assim uma poesia enquanto possibilidades da linguagem. E sempre se superando. Sem atividade poética há uma mumificação.


    Hoje a Poesia virou Arte num museu, como se fosse uma coisa antiga, idealizada. Uma múmia no museu. E precisamos a cada dia buscar, correr atrás do tempo perdido, nos clássicos que continuam clássicos, a cada leitura e tradução, para atualizarmos nossa re-ligação com o fenômeno Póetico. O poeta e crítico estadunidense Pound se ocupa do seu conceito de Paideuma, como o essencial que devemos ler para compreendermos o universo literário, quais autores e quais obras.


    Claro que cada leitor pode ter seu paideuma. Mas o crítico literário pode fazer suas listas, como fizeram os críticos e tradutores brasileiros Haroldo e Augusto de Campos, o escritor italiano Italo Calvino, em seu Por que ler os clássicos [1991], e também o crítico estadunidense Harold Bloom, em seu O Cânone Ocidental [1994].



    Também o poeta e filósofo Rodrigo Starling, entusiasta do voluntariado transformador, autor deste surpreendente e belo O Cético Selo [2021], tem seu paideuma, e seus clássicos, como podemos  perceber nos poemas eruditos e filosóficos que estão reunidos como um testemunho de suas indagações existenciais, até existencialistas.

    Em O Cético Selo há todo um arranjo poético que se inspira no simbolismo, nos pós-romantismo, que já denominamos ‘neossimbolismo’ [assim como alguns poetas se inspiram no barroco, e hoje temos um ‘neobarroco’] com um certo hermetismo de William Blake, o poeta místico britânico, que via anjos e demônios ao seu redor, lançando olhares para além das portas da percepção.

    A linguagem é formal, ritmada, tom erudito, plena de intertextualidades e referências, a exigir do/a leitor/a muita atenção e leitura prévia, de assuntos os mais diversos, de mitologia a física quântica, de filosofia clássica a cultura pop.


    Os poemas demonstram uma maturidade que poucos poetas de nossa geração conseguem alcançar. Um desejo de fala de sabedoria, de ministrar conhecimento, somente reservado aos Eleitos.


    E principalmente tratam do ceticismo, de um olhar e uma atitude cética diante da Vida, de modo a evitar dogmatismos e má-fé. É um tom sábio que encontramos em Eclesiastes, obra de pensamento e devoção, do filho de Davi, Salomão, rei de Israel, que diz no Capítulo 2, versículo 26, após discorrer sobre bens e conquistas de um reinado, “Isso também é inútil, é correr atrás do vento.”


    Encontramos, assim, ceticismo e niilismo na Bíblia, no Antigo Testamento? Sim. Lá está escrito, “Tudo é vaidade.” É uma voz de rei sábio, já avançado na vida de reinado e glória, mas que sabe que é preciso um sentido, uma razão para validar a vida. O que é a Vida? Um dom de Deus? Um acaso da natureza? Um produto da seleção natural, da Evolução das Espécies? Afinal, o que é a vida?

.
O que é a vida?
O sopro, o perdão, o pêndulo
[…]
A flecha lançada,
A palavra dita
A oportunidade perdida

[Vida, p. 23]

.
Vida é luta, como ‘flores no asfalto’
Como mato selvagem, imperecível …
A beira dos trilhos, nas frestas do concreto,
na boca do lixo

[Vida, p. 24]


    Vida que merece ser vivida apesar de tudo. É luta, então ‘aproveite a oportunidade’, ‘faça o seu dia’. A questão do suicídio é uma daquelas essenciais filosóficas par excellence para o existencialista franco-argelino Albert Camus [1913-1960] que se pergunta se a Vida merece ser vivida? Como devemos viver? O que é viver plenamente?

    Para as religiões a Vida é sagrada. A nossa e a dos outros. Tirar a própria vida é um terrível pecado. Principalmente para as três grandes religiões monoteístas, a judaica, a cristã e a islâmica.

    Para o poeta estadunidense Walt Whitman [1819-1892] a Vida é sagrada – e não devemos culpar a Vida e suas vicissitudes e desventuras. Tudo é um grande ciclo de sofrimento e aprendizado. Para o poeta tanto a alma quanto o corpo são sagrados [o que o diferencia do dogma cristão, que defende que o corpo é inferior, por ser a fonte dos pecados]

    No Budismo o sofrimento faz parte da Vida, da Roda de Samsara, e que somente através do Dharma, o caminho do Meio, podemos encontrar a Paz, ao atingir o Nirvana, o estado de não-sofrimento. Uma roda que gira e gira, tal uma engrenagem, de era em era, de éon em éon, assim um relógio cósmico, pois o tempo não para,

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Cruel engrenagem de Descartes
- O relógio existe sem pensar!
Mesmo em corpo defunto
vive! E viverá…

[Poema-Relógio, p. 27]


    É o drama da consciência, do saber-se ser para a morte. O humano valoriza a vida pois sabe que esta é finita, é tudo aqui-e-agora, não podemos procrastinar, não podemos fechar os olhos, e deixar o tempo se escorrer pelos dedos. Ouvimos o sussurro do carpe diem, ‘aproveite o dia’.


    É na pressão que as obras são criadas pelos poetas, quase à beira da depressão, meio ao sofrimento, mas importa que escrever é viver! Sem a escrita o poeta está silente

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Porque a escrita é o primeiro contato
Do oral com as narrativas
Do silêncio com o choro, o grito
Do verso, da estrofe ou da rima
Sentimentos disformes, abstratos
Escrever é tudo! Me fascina

Não escrever é morrer!

[Não escrever é morrer, p. 32]



    Pressão na qual vivemos e sobrevivemos num cotidiano de fuligens e cânceres, de subnutrição, fome e vírus, como é a atual a questão política da Pandemia, a doença intensificada pelo desgoverno negacionista, que não atua para diminuir o sofrimento mas para comercializar, e lucrar com a dor alheia. Mas o que causa tudo isso? Por que o tal governo está no poder? Quem o colocou lá no Planalto?

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O mau voto é este morcego (negacionista)
Sem máscara, a morte ceifando vidas
Que pandemônio, meu Deus! Pesada cruz

[O morcego de Wuhan, p. 50]


    Mas, pensemos, por que votamos em maus políticos? Por que insistimos em votar em elites, e seus representantes, que nada querem do povo além de trabalho e servidão?   É uma vontade de servir, de submissão à servidão, como encontramos na obra Discurso da Servidão Voluntária, do pensador francês Étienne de La Boètie [1530-1563]. De onde vem o poder do tirano? Por que muitos abrem mão da liberdade para servir a um líder? De onde vem a vontade de se submeter ao poder? Interesse? Masoquismo?

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Porque a força do tirano é dada pelos súditos
Oh! Servidão voluntária,
denúncia de La Boétie
O hábito é o cabresto do cordeiro
Outrora lobo, perdeu-se na apatia
Desnaturados pelos costumes

Desidratamos, definhamos,
tornamo-nos esfinges
Vítimas do próprio enigma, eis o homem:

[Cordeiro, pp. 66-67]



    Todo um caldo de pressão e opressão que gera o fenômeno da Ansiedade. Tal mal-estar civilização, como dizia o psicanalista Sigmund Freud,  ou na modernidade,  como defende Sérgio Paulo Rouanet, que parece um buraco-negro dentro da mente, a psiquê perturbada, que começa a devorar tudo, de dentro para fora,
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Volumes e volumes… Dor, paixão, glória
do mito à criação, de jesus ao anticristo
A física e a metafísica…
A Quântica e as Supercordas

[…]

Devorou os livros, sagrados ou profanos…
Lidos ou esquecidos
Num ato covarde (tal qual Alexandria)
Ansiedade devorou a memória…
E o presente (daquele que a lia)

[Ansiedade, p. 53]



    Diante da pressão cotidiana e da ansiedade que vai corroendo dentro, percebemos o poeta tal um místico Rilke diante do silêncio das coortes celestiais, que parecem tão indiferentes aos dramas humanos, tão humanos,

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“Se eu gritasse, quem das legiões dos anjos escutaria
o grito? E mesmo se, inesperadamente,
um deles me acolhesse no coração: sucumbiria à sua
existência mais forte! Pois o belo não é senão
o princípio do espanto que mal conseguimos suportar,
e assim ainda, o admiramos porque, sereno,
deixa de nos destruir. Todo anjo é espantoso.”


[Die erste Elegie, Primeira Elegia, trad. Emmanuel C. Leão]






    Daí surge um clamor, um querer-saber-o-porquê, com um grito daquele célebre quadro do norueguês Edvard Munch [1863-1944], quando diante da amplidão da Criação e da Natureza.  Realmente o protesto veemente contra a destruição do meio ambiente, como já alertam os ecologistas há meio século, e antes destes os vanguardistas da  Beat generation, principalmente Gary Snyder, além de poeta, um pensador, um adepto do zen budismo que vem alertando para o suicídio que é destruir o planeta onde a humanidade vive e sobrevive. O homem esquece que é um animal entre animais, e que todos são iguais na luta pela vida,


Homem que polui o lago
Que polui o rio
Que polui o mar
Que polui…

O homem, porque polui
É como o lobo:
Uiva!

[Hidratação, pp. 62-63]



    Mesmo com todo o pesar e com toda a ansiedade, o Poeta não perde a Esperança no ciclo da Natureza, a alternância das estações, a sucessão das gerações, pois tudo está em permanente mudança, transformação, eterno retorno, como um motor que se retroalimenta,  


Panta rei! Tudo flui… Todo gozo é regurgito
Energia em moto perpétuo, imortal idade
Vida que transborda
Do idoso ao feto

[Estações, p. 73]


    Em tom esperançoso, na Parte II de O Cético Selo, a ciência é aqui aclamada, é homenageada, quase cultuada, no longo poema erudito Quântico das Criaturas, que enaltece as grandes mentes da epopeia das Ciências, e a própria existência da energia, com a qual movemos nossa frágil civilização,



Aclamada seja a intuição
Dos seres de saber e ciência
Teus crânios são como luas
Teus olhos vivos, estrelas

[…]

Aclamada seja, energia,
Pelos fluidos magnéticos
Preciosos àqueles (moralmente) sábios

[…]

Aclamada seja, energia,
Pela luz elétrica
Por toda tecnologia, pelas vacinas
E curas vindouras (a nosso favor)


[pp. 81-83]


    O poema que dá nome ao livro é extenso, denso, erudito, pleno de intertextualidade, com textos bíblicos, hermetismo, orientalismos, tanto que podemos compará-lo com Cordeiro, que se dedica mais às ciências sociais, assim como Quântico das Criaturas tem seu foco nas Físicas e Químicas. E ainda veremos o casamento de opostos, da Grande Síntese, no poema que fecha a Parte II e a obra, Esperança.


Unificação dos contrários!
Alavanca da evolução
trevas e luz, Yin e Yang.
A verdade é um contraste
Água e vinho, na companhia de Pirro
e Sexto Empírico
Um cético banquete, sem glutonaria de certezas

[O Cético Selo, p. 89]



De todos os mitos, do caldo vivo,
De Darwin e Freud, da mente, da evolução
Jesus, solidário ao Cristo Cósmico,
nossa redenção!

Como a China de Confúcio
A Pérsia de Zoroastro
O Oriente de Buda
O Egito, de Tot e Hermes Trimegisto


[Esperança, pp. 98-100]



    E temos citações e referências a retórica, Banquete de Platão, números sagrados de Pitágoras, a obra de Aristóteles, a kabalah judaica com os nomes de Deus, D’us, Javé, Jehova Jiré, e também lembra dos antigos cavaleiros das Cruzadas, da Guerra Santa, Holy war, contra os infiéis, das ordens esotéricas, dos rituais afro-brasileiros, do sincretismo religioso...

    É aquela união de opostos nas núpcias químicas do místico poeta Blake, tensionado entre o silêncio ou música, entre o clamor e a meditação, quando busca em vários livros sagrados e códices a resposta para o Sentido da Vida, o que é bem viver, qual o fundamento existencial do Ser.


    Para o Poeta e Filósofo Rodrigo Starling, o Ceticismo não é ateísmo, não é simplesmente apregoar por aí uma descrença, ou uma Crença no Nada, um niilismo. Trata-se, antes, de um tipo de Ceticismo positivo, ativo – não um negativo, passivo. Um ceticismo que atrai reflexão, uma suspeita das verdades tão propagandeadas ao nosso redor e que não passam de ‘fake news’ como se diz hoje em dia.

    Politicamente, um Ceticismo enquanto uma posição conservadora, como podemos ver em Edmund Burke [1729-1797], que desconfia da Revolução, ou de um controle sobre a Revolução. No caso, se abordava a época da Revolução Francesa, que derrubou a monarquia do Ancien Régime e, através do Terror, tentou implantar a República apenas para cair no império napoleônico.  
 

 







    O poeta tem aqui sua expressão, seu desabafo estético do desassossego. Mas a quem se dedica o livro? Ao hipócrita leitor, como dizia Baudelaire? Dois poemas tratam detidamente deste quesito, quando o Poeta explicita o tipo de leitor/a que tem em mente ao deslizar a caneta no papel,




Leitor, quem te tornar ao me leres?

Mais crente em Deus e nos profetas
Agnóstico, ateu, cético ou asceta
Mais anjo que um demônio terrestre
Cativo, discípulo em busca do mestre


[Leitor, quem te tornas ao me leres?, p. 93]



Eu vos dedico este poema
Filósofos do presente, visionários, artistas
Freiras, cortesãs (dos conventos ou bordéis)
Acadêmicos, letrados, bolsistas


[Eu vos dedico, p. 95]



    Quem é o leitor de Poesia? É aquele que espera ser desafiado pelo poema, espera ser surpreendido – o/a leitor/a quer encontrar o misterioso, o indecifrado – não é assim o/a atento/a leitor/a? Que este livro, um cético selo, seja uma mensagem de alerta e cumplicidade, para abrir os olhos e não se deixar abafar em mediocridades e meias-verdades.  



    Como já disse na Apresentação de O Cético Selo, “A grande originalidade da poética de Rodrigo Starling está na amálgama alquímica de opostos, de passado e de presente, de crença e de descrença, de ceticismo e de esperança. O poeta sabe que é inútil culpar a vida, que o necessário é assumir a existência, sem dogmas, sem desespero, sem suicídio, para dar um fim à ansiedade e alcançar a esperança.”




set/ 21


Leonardo de Magalhaens

poeta, escritor, crítico, tradutor

Bacharel em Letras / Fale / UFMG




Referências


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BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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___________ . O casamento do céu e do inferno. Porto Alegre: L&PM, 2007.

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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COMPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

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HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la Esencia de la Poesia. Madrid: Alianza, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NUNES, Benedito. A Clave do Poético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

___________ .  Passagem para o poético. São Paulo: Ática, 1992.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.

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STARLING, Rodrigo. O Cético Selo. Belo Horizonte, Selo Starling, 2021.

____________ . Nós e outros poemas. Belo Horizonte, Selo Starling, 2010.

WERLE, Marco Aurélio. Poesia e Pensamento em Hölderlin e Heidegger. São Paulo: UNESP, 2005.

WILLER, Claudio. Os poetas malditos. In Eutomia. Recife. Jan./Jun. 2013.



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