FERNANDO
FÁBIO FIORESE FURTADO
em
CORPO PORTÁTIL / 2002
DOS
APÓCRIFOS
1
nenhum
autor reivindica
aquele
osso de galinha
escorando
a memória desta tarde
aquele
caco de vidro
que
como um céu
continua
sem nós
aquela
folhinha de 1972
aquele
quarto
com
pequenas paisagens
aquela
escrivaninha
aquele
catálogo de martelos
aquelas
cortinas
e
a palavra-em-torno
aquela
órfã alegre
arrastando
a boneca
para
o colo da mãe
aquele
telhado onde
o
limite pousou
aquele
azul
azul
de quando não há
senão
o mar
nenhum
autor reivindica
este
corpo sendo escrito
sem
parágrafos nem datas
2
não
tenho frases nem febres
e
o transporte esgota
a
janela e a nuvem
a
cal dos muros o espaço
entre
o objeto e sua sombra
entanto
urge
vigiar as crianças
quando
surpreendem o inverno
as
unhas da mulher sob o lençol
os
mortos que hospedamos
íntimos
têm
seus lugares entre as coisas
guardam
suas distâncias
e
nos desconhecem
nos
gestos que comandam
poucos
lançaram o corpo
nos
ofícios da casa
-
até a palavra mãe
é
preciso adoecer
ainda
que a rota seja outra
escrever
é para órfãos
3
por
andar oblíquo
o
crime em si
move
por dentro
a
grande hora
sobre
o lago
um
livro a esmo
até
o martelo
decidir
a pausa
desbordo
é palavra
conquanto
medida
de
pregos feito
um
caixote
onde
guardamos
o
animal luminoso
...
Fernando
Fiorese
Livro
de cabeceira
1
senão
ficções
pequenas
prosas in blue
relíquias
de ruídos no banheiro
roteiros
que cegam
dramas
sem ator ou cena
o
oceano coligido num aforismo
o
corpo imprevisto pela mão esquerda
a
história natural do escuro
um
epitáfio para a voz familiar
um
monólogo sem rubricas
um
inventário de perdas
2
sublinhas
uma sentença
como
quem subtrai
o
músculo tenso da voz
até
que se desmantela
em
epigramas
exercício
para gagos
ventrílocos
afásicos
um
outro
enunciando
a distância
3
ao
corpo nenhum consolo
apenas
a elegância de mantê-lo
no
terminal do texto
onde
lecionam as paredes?
4
uma
onda sob o sapato
e
podes aferir
a
altura da noite
nas
formas de quem se ausenta
...
Fin-de-siècle
de
quantas mortes um século precisa
quando
basta um livro para morrer ?
de
quantos cadáveres se acrescenta
antes
que o dédalo nos decifre ?
de
quantos áporos nos tecemos
para
desenredar a mortlha de Narciso ?
de
quantos horizontes nos despedimos
antes
de saber que Ítaca não há ?
de
quantos duelos nos desviamos
para
a toilette de um corpo sem males ?
de
quantos modos adoecemos
apenas
para imolar o livro de cabeceira?
de
quantos crepúsculos o motor desativamos
porque
não sabíamos que já era hora?
mais
em http://corpoportatil.blogspot.com.br/
Fernando
Fiorese