quinta-feira, 21 de setembro de 2017

mais poemas de FERNANDO FIORESE








FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO




em CORPO PORTÁTIL / 2002



DOS APÓCRIFOS


1

nenhum autor reivindica
aquele osso de galinha
escorando a memória desta tarde
aquele caco de vidro
que como um céu
continua sem nós
aquela folhinha de 1972
aquele quarto
com pequenas paisagens
aquela escrivaninha
aquele catálogo de martelos
aquelas cortinas
e a palavra-em-torno
aquela órfã alegre
arrastando a boneca
para o colo da mãe
aquele telhado onde
o limite pousou
aquele azul
azul de quando não há
senão o mar

nenhum autor reivindica
este corpo sendo escrito
sem parágrafos nem datas



2

não tenho frases nem febres
e o transporte esgota
a janela e a nuvem
a cal dos muros o espaço
entre o objeto e sua sombra

entanto
urge vigiar as crianças
quando surpreendem o inverno
as unhas da mulher sob o lençol
os mortos que hospedamos

íntimos
têm seus lugares entre as coisas
guardam suas distâncias
e nos desconhecem
nos gestos que comandam

poucos lançaram o corpo
nos ofícios da casa
- até a palavra mãe
é preciso adoecer
ainda que a rota seja outra

escrever é para órfãos







3

por andar oblíquo
o crime em si

move por dentro
a grande hora

sobre o lago
um livro a esmo

até o martelo
decidir a pausa

desbordo é palavra
conquanto medida

de pregos feito
um caixote

onde guardamos
o animal luminoso



...



                                                                                Fernando Fiorese


Livro de cabeceira


1

senão ficções
pequenas prosas in blue
relíquias de ruídos no banheiro
roteiros que cegam
dramas sem ator ou cena
o oceano coligido num aforismo
o corpo imprevisto pela mão esquerda
a história natural do escuro
um epitáfio para a voz familiar
um monólogo sem rubricas
um inventário de perdas



2

sublinhas uma sentença
como quem subtrai
o músculo tenso da voz
até que se desmantela
em epigramas
exercício para gagos
ventrílocos afásicos
um outro
enunciando a distância




3


ao corpo nenhum consolo
apenas a elegância de mantê-lo
no terminal do texto

onde lecionam as paredes?




4


uma onda sob o sapato
e podes aferir
a altura da noite
nas formas de quem se ausenta








...






Fin-de-siècle


de quantas mortes um século precisa
quando basta um livro para morrer ?

de quantos cadáveres se acrescenta
antes que o dédalo nos decifre ?

de quantos áporos nos tecemos
para desenredar a mortlha de Narciso ?

de quantos horizontes nos despedimos
antes de saber que Ítaca não há ?

de quantos duelos nos desviamos
para a toilette de um corpo sem males ?

de quantos modos adoecemos
apenas para imolar o livro de cabeceira?

de quantos crepúsculos o motor desativamos
porque não sabíamos que já era hora?





mais em http://corpoportatil.blogspot.com.br/



                                                                                   Fernando Fiorese

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

3 POEMAS de IVAN JUNQUEIRA








IVAN JUNQUEIRA



[RJ, 1934 - 2014]



poemas




POÉTICA


A arte é pura matemática
como de Bach uma tocata
ou de Cézanne a pincelada
exasperada, mas exata.
 
É mais do que isso: uma abstrata
cosmogonia de fantasmas
que de ti lentos se desgarram
em busca de uma forma clara,
 
da linha que lhes dê, no espaço,
a geometria das rosáceas,
a curva austera das arcadas
ou o rigor de uma pilastra;
 
enfim, nada que lembre as dádivas
da natureza, mas a pátina
em que, domada, a vida alastra
a luz e a cor da eternidade,
 
tal qual se vê nas cariátides
ou nas harpias de um bestiário,
onde a emoção sucumbe à adaga
do pensamento que a trespassa.
 
Despencam, secas, as grinaldas
que o tempo pendurou na escarpa.
Mas dura e esplende a catedral
que se ergue muito além das árvores.
 




O PODER


Eis o poder: seus palácios
hospedam reis e vassalos,
messalinas, pajens glabros,
eunucos, aias, lacaios,
e até artistas e ratos.

Uma só migalha basta
à sordícia que se alastra,
e pronto surge uma talha
onde o cenário é lavado
para o próximo espetáculo.

O poder é assim: devasta,
corrompe, avilta, enxovalha,
do reles pároco ao papa,
e não há um só que escape
ao seu melífluo contágio.

Se alguém o nega ou o afasta,
compram-no logo, à socapa,
a peso de ouro ou de prata.
E se acaso não o fazem,
mais simples ainda: matam-no.

Tem o poder muitas faces:
a que se crispa, indignada,
a que te olha de soslaio,
a que purga e chega á lágimas,
a que se oculta, enigmática.

Mas são apenas disfarces,
formas várias que se esgarçam,
por entre véus e grinaldas,
porque assim vertem mais fácil
o vitríolo em tua taça.

E tu, rei de Tule, aos lábios
leva sempre, ávido, o cálice,
não por amor nem saudade
de quem se foi, entre as vagas,
de um castelo à orla do mar,

mas só porque, embriagado,
são de engodo as tuas asas
e de cobiça os teus passos,
que vão aquém das sandálias
e se arrastam rumo ao nada.

O poder é aquele pássaro
que te aguarda sob os galhos.
Tudo ele dá, perdulário.
De ti quer apenas a alma.
Por inteiro. Ou a retalho.






PALIMPSESTO


Eu vi um sábio numa esfera,
os olhos postos sobre os dédalos
de um hermético palimpsesto,
tatear as letras e as hipérboles
de um antiqüíssimo alfabeto.
Sob a grafia seca e austera
algo aflorava, mais secreto,
por entre grifos e quimeras,
como se um código babélico
em suas runas contivesse
tudo o que ali, durante séculos,
houvesse escrito a mão terrestre.
Sabia o sábio que o mistério
jamais emerge à flor da pele;
por isso, aos poucos, a epiderme
daquele códice amarelo
ia arrancando como pétalas
e, por debaixo, outros arquétipos
se articulavam, claras vértebras
de um esqueleto mais completo.
Sabia mais: que o que se escreve,
com a sinistra ou com a destra,
uma outra mão o faz na véspera,
e que o artista, em sua inépcia,
somente o crê quando o reescreve.

Depois tangeu, em tom profético:
"Nunca busqueis nessa odisséia
senão o anzol daquele nexo
que fisga o presente e o pretérito
entre os corais do palimpsesto."
E para espanto de um intérprete
que lhe bebia o mel do verbo,
pôs-se a brincar, dentro da esfera,
com duendes, górgonas e insetos.




in A sagração dos ossos [1989-1994]






mais em http://www.jornaldepoesia.jor.br/ivan.html

http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet210.htm


http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/ivan_junqueira.html

http://veredasdalingua.blogspot.com.br/2012/05/ivan-junqueira-poemas.html


http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/03/poemas-reunidos-de-ivan-junqueira.html

http://www.proparnaiba.com/artes/2014/07/requiem-em-memoria-do-poeta-metafisico-ivan-junqueira.html


http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/07/1480359-leia-poema-inedito-de-ivan-junqueira-morto-nesta-quinta-feira-no-rio.shtml