quarta-feira, 8 de junho de 2016

2 poemas de AFONSO HENRIQUES NETO








AFONSO HENRIQUES NETO



DISCURSO

nada existe, celebremos
a alegria.
o nascer e o morrer
não nos acontece.
só para os outros
somos espetáculo.
há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso
labirinto de idéias
flocos de imagens sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos
aventura.
tudo se instala
o sentido esvaziou-se do oceano
praias da totalidade.
o que não existe
celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada
o esqueleto do silêncio.
lábios se tocam em alegria
beijo seco
jardim de séculos.
quase nenhuma fala
ninguém
mas os caminhos.
recordemos:
infância veloz
olfato de espantos
estátua ardente arfando
no sonho.
apenas não há
ninguém
mas os espaços
(apenas o já nascido
previamente ido).
infinito buraco sem tempo
celebração. 

 
© AFONSO HENRIQUES NETO
In Abismo com Violinos, 1995








NÃO EXISTE

Esta paisagem não existe.
Existiu um dia de tanto sol
que esta paisagem se enfeitou
de infância transparente.
Hoje a fórmula enguiçou.
Subo a rua das notícias mortas
e o pouco do cheiro que restou
de sonho dentro da noite
sobre esse velhos meninos
rola por um sentimento difícil
gesto de agonia espessa
sombra sem possível aurora.
Esta paisagem é a hora
do verbo estagnar-se.
E os sóis vingadores
a arrancarem do futuro
um sangue novo que invada
as trêmulas rochas da morte
são apenas o mesmo rio
esquecido de correr
desesperançado de mar.
Contudo canta canta coração
inventa a luminosa paisagem
personagem sem raiz e chão. 

 
© AFONSO HENRIQUES NETO
In O misterioso ladrão de Tenerife, 1972





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