O
olhar do poeta nas ruas da cidade -
poemas
de Mário de Andrade
em Pauliceia Desvairada [1922]
e
Noturno de Belo Horizonte [1924; 1927]
A cidade tem presença marcante na
lírica modernista que entrou em cena após o fim da Primeira Guerra Mundial,
em compasso com as vanguardas europeias (futurismo, cubismo, surrealismo,
dadaísmo), para expressar um novo olhar sobre o mundo. Nada de bucolismos, mas
um registro discursivo, vertiginoso, angustiado, complexo, até exagerado, em
suma, um desabafo finalmente liberto sobre as vidas oprimidas nas cidades.
O poeta adentra as ruas da cidade
tal um flâneur ao estilo parisiense, tão presente na poética de Charles
Baudelaire (1821-1867) e na crítica de Walter Benjamin (1892-1940), como uma
figura de expressivo observador, dentro e fora, atento e disperso sobre um meio
geográfico que, aos demais cidadãos, parece comum e ordinário. O olhar do flâneur
é diferente, bem diferente, posto que incomodado com detalhes, disposto a
registrar movimentos e gestos, que aos demais passariam desapercebidos. Assim
como fazia Baudelaire na capital francesa, ou João do Rio na capital
brasileira, o flâneur tem tempo para caminhar, alheio às ordens de
progresso, de trabalho estressante. Ao contrário, olhar sobre o livre fluir da
cidade é seu único esforço.
A rua se torna moradia para o flâneur
que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês
entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das
firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão
do burguês; muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas
de jornais são suas bibliotecas; e os terraços dos cafés, as sacadas de onde,
após o trabalho, observa o ambiente. (BENJAMIN, 1994:35)
O flâneur é uma personalidade
que se recusa a seguir uma vida normatizada, controlada, de fetichismo e
massificação. Ele/ela está aberto/a às novas sensações, aos estímulos da selva
urbana em crescimento. Sempre em movimento, sempre absorvendo e criticando,
sempre no seio das multidões. “O flâneur é um abandonado na multidão.”
(1994: 51) Meio à miríade de estímulos, na promiscuidade das ruas e das lojas,
das galerias, das passagens, dos cinemas, o flâneur percorre um
itinerário de sensações e deixa registrado em poemas, em crônicas, em pinturas.
Aqui trataremos de poemas, peças
líricas do poeta e literato paulista Mário de Andrade (1893-1945), grande voz
do Modernismo brasileiro em sua primeira fase. Em sua visão lírica da
tumultuada Pauliceia aparece São Paulo em pleno crescimento demográfico,
econômico, cultural, repleta de oportunidades e segregações, de celebridades e
crimes. Mário de Andrade passeia liricamente se atordoando pelo labirinto
urbano, daí a quantidade de referências às ruas, praças, bairros, outros
logradouros, além de lojas, monumentos e prédios públicos, tais como destacamos
alguns: rua Lopes Chaves (em Barra Funda, São Paulo), onde residia o poeta; rua
Barão de Itapetininga (região da República, São Paulo); fala sobre o rio Tietê,
a Ponte das Bandeiras, além de Trianon , Cine Colombo, rua de São Bento, Clube Comercial , Padaria
Espiritual , rua Marechal Deodoro, Padaria Suissa, Jardim América, Teatro
Central, Parque do Anhangabaú, Mooca, Casa Kosmos, Largo do Arouche,
Higienópolis, Igreja de Santa Ifigênia,
É
vasta a rede de referências, que são possíveis de serem resgatadas com um bom
mapa da São Paulo dos anos 1920, ou fotos de época. (Tal como é possível
resgatar Belo Horizonte dos anos 1920 nas memórias de Pedro Nava (1903-1984)
Adentraremos a Pauliceia tresloucada
dos registros líricos entre o expressionismo e o surrealismo, numa série de
recortes da vida urbana, com suas contradições e delírios, no meio do asfalto e
do concreto. Sobre este jogo de impressões e sensações, em plena dissonância,
temos a visão do crítico João Luiz Lafetá, em seu ensaio “A representação do
sujeito lírico na Pauliceia desvairada”),
Talvez seja este o grande problema de
linguagem da Pauliceia Desvairada: equilibrar a notação objetiva dos
aspectos da cidade moderna com o tumulto de sensações do homem moderno, no meio
da multidão. (LAFETÁ, 2004: 357)
O mesmo movimento, que perturba a
cristalização do lirismo, cria nos poemas uma dissonância que é índice das
dissonâncias da vida moderna. O lirismo difícil e incompleto representa as
dificuldades e incompletudes do sujeito lírico na modernidade incipiente.
(LAFETÁ, 2004:358)
O
poeta atua como um flâneur e como um
escritor, ao cristalizar em texto as suas impressões, as mais desconexas,
dissonantes possíveis. É a vida moderna na grande cidade que causa o desvario
do poeta? Ou ele apenas reflete o desvairismo
(nome de escola literária criada - e encerrada! - no Prefácio Interessantíssimo) da grande Pauliceia? O crítico Lafetá acredita num movimento duplo, de mútua
influência, “A vida moderna desvaira o
poeta, e este transfere seu desvairismo para a vida moderna.” (LAFETÁ,
2004:360)
Com
a vida desvairada o poeta vive em êxtases e comoções, transtornado e enlevado
pelas pluralidades de sensações e vaidades, sendo comovido e agredido, “São
Paulo! Comoção de minha vida...” e “Bofetadas líricas no Trianon” (Inspiração,
1974: 32), e ainda “Horríveis as cidades! / Vaidades e mais vaidades... /
nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria! / Oh! Os tumultuários das ausências!
/ Pauliceia – a grande boca de mil dentes; [...]” (Os Cortejos,
1974: 33). Poemas onde a voz do poeta canta sobre o lírico disforme onde não há
lirismo – pelo menos do modo como os arcadistas, parnasianos e simbolistas
imaginavam o lirismo – mas uma colcha de retalhos de ruídos, agressões, crimes,
engarrafamentos, nada propícia ao tom poético de louvação.
Se
não há louvação, há uma inovação nas
descrições, no modo de criação, com riqueza de vocábulos, com o registro da
fala coloquial, com o uso de estrangeirismos, de expressões idiomáticas, de
onomatopeias, de imagens surreais, cubistas, entrelaçadas, entrecortadas,
carregadas de subjetivismo que reveste a objetividade do ser urbano, “Entre
estas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas, / as minhas delícias das asfixias
da alma!” (Rua de São Bento, 1974: 34) e “Desciam, inteligentes,
de mãos dadas, / entre o trepidar dos taxis vascolejantes, / a rua marechal
Deodoro...” (O Rebanho, 1974: 35)
A
relação com outras cidades, a influência das cidades, das metrópoles, das
megalópoles. Nova York, Chicago, Londres, Paris, Berlim, Roma, Madrid, Viena,
grandes cidades do mundo civilizado que servem de exemplo e parâmetro. Sampa, a
cidade da garoa, é uma espécie de Londres, cidade das névoas? “Minha Londres
das neblinas finas!” (Paisagem nº 1, 1974: 37) Em que medida São
Paulo refletia estas cidades cosmopolitas, em que medida representa um exemplo
de civilização? Mas é um aspecto positivo ser da ‘civilização’? Afinal a
civilização só é possível com repressão e coerção? Vejamos autores tais como
Freud, Marcuse, Reich ou Foucault, que tematizam e repensam o quanto o ser
humano moderno vive de vigilância e prisão, sempre em conformidade para manter
a ‘coesão social’.
Passa
um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
um
tralálá... A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade
a prisão
para
que haja civilização?
Meu
coração sente-se muito triste...
enquanto
o cinzento das ruas arrepiadas
dialoga
um lamento com o vento...
(Paisagem
nº 1, 1974: 37-38)
O
poeta percebe a efemeridade das tradições, a fragilidade das construções, a
pressa moderna, a cidade que cresce e fenece, a sobreposição de camadas de
obsoleto e de inovador, na mesma paisagem o novo e o antigo, o mundo de hoje e
o do futuro, todos juntos, explicitando a passagem do tempo na cidade, em
construir e destruir constante, a gerar saudades da cidade de outrora,
Alturas
da Avenida. Bonde 3.
Asfaltos.
Vastos, altos repuxos de poeira
sob
o arlequinal do céu oiro-rosa-verde...
As
sujidades implexas do urbanismo.
[…]
Mas...
olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens
esse
espetáculo encantado da Avenida!
Revivei,
oh gaúchos paulistas ancestremente!
e
oh cavalos de cólera sanguínea!
(O
Domador, 1974: 41)
Pelo
olhar do poeta passa a transfiguração da vida moderna, quando os elementos da
paisagem de concreto e aço são descritos como semelhantes aos elementos da vida
bucólica, ou da vida onírica, ou adquirem vida, em personificação, onde bondes
podem sapatear, ou brilhar como fogos de artifício, em linguagem surrealista, “Gingam
os bondes como um fogo de artifício, / sapateando nos trilhos, / cuspindo um
orifício na treva cor de cal ...” (Nocturno, 1974: 44) Aqui, o poeta
sabe que vive no meio a selva urbana, povoada de mamutes no trânsito, de
trogloditas transeuntes, transfigurações numa floresta artificial de semáforos
e prédios, de monumentos, localizados e demarcados, presentes num mapa, que
qualquer um pode consultar. As referências externas ali estão, “Chove? /
Sorri uma garoa cor de cinza, / muito triste, como um tristemente longo … / A
casa Kosmos não tem impermeáveis em liquidação … / Mas neste largo do Arrouche
/ posso abrir o meu guarda-chuva paradoxal, / este lírico plátano de rendas mar
...” (Paisagem N. 3, 1974: 48)
Vivendo
em cidades, viajando para cidades, o poeta não tematiza apenas a Pauliceia
desvairada, mas recria a capital mineira no longo e multifacetado em Noturno
de Belo Horizonte, escrito em 1924, durante a caravana modernista por Minas
Gerais, e depois publicado em Clan do Jabotí, em 1927, onde BH também
quer ser cidade grande, fazer parte da ‘civilização’, “Os mineiros secundam
em coro: / -Em nome da civilisação! / Minas progride. / Também quer ter tambem
capital moderníssima tambem... / Pórticos gregos do Instituo de Rádio / Onde
jamais Empedocles entrará... / O Conselho Deliberativo é manuelino, / Salão
sapiente de Manueis-da-hora... / Arcos românicos de São José / E a catedral que
pretende ser gótica …” (1974:126)
Tanto São Paulo quanto Belo
Horizonte existem factualmente, mas ao serem transposta para o plano ficcional
do texto, são cidades na memória, resgatadas como uma rede de lembranças, que o
poeta bem percebe não coincidir com a cidade no plano objetivo, externo, “Estrelas
árvores estrelas / E o silêncio fresco da noite deserta. / Belo Horizonte desapareceu
/ Transfigurada nas recordações.” (1974: 127)
Cidades entre o tradicional e o
modernista, São Paulo e Belo Horizonte trocam as vidas bucólicas pela produção
industrial, vivem com restos de tradições, a calma dos místicos, mas aceleradas
pelas linhas de produção, assustadas pelos apitos das fábricas, não mais o
apito dos trens, “O trem passava apavorado. / Só parou muito longe na
estação / Pra que os romeiros saudassem / Nosso Senhor da Boa-Viagem.” (p.
128) Uma cidade de lembranças convive com uma cidade de concreto, o poeta está
entre ambas, pressionado entre o real e o ficcional, transfigurando os
referenciais, além do plano físico, um plano imaginário, que o poeta acha
deveras performático, 'arlequinal', “Afinal Belo Horizonte é uma tolice como
as outras. / São Paulo não é a única cidade arlequinal. / E há vida há gente,
nosso povo tostado. / O secretário da Agricultura é novo! / Fábricas de
calçados / Escola de Minas no palácio dos Governadores.” (p. 131)
Infelizmente, a cidade ao crescer
perde as referências, troca as árvores pelo asfalto, pelas calçadas de cimento,
assim sofrendo com o calor e a chuva torrencial, com as tragédias aumentadas
pela vida árida dos grandes centros urbanos. Assim fica emblemática a paisagem
urbana da Afonso Pena antes repleta de árvores (fícus e palmeiras, segundo o
memoralista Pedro Nava) mas agora reduzida ao 'rio de aço do tráfego' (do poema de Carlos
Drummond de Andrade) que arrasa o resto de lirismo possível, somente a sobrar a loucura do
poeta, “O bloco fantasiado de histórias mineiras / Move-se na avenida de seis
renques de árvores... / O Sol explode em fogaréus … / O dia é frio sem nuvens,
de brilhos vidrilhos …. / Não é dia! Não tem Sol explodindo no céu! / É o
delírio noturno de Belo Horizonte … / Não nos esqueçamos da cor local: /
Itacolomi … Diário de Minas … Bonde do Calafate … / E o silencio … sio … sio …
Quirirí....” (p. 136)
Para concluir, relembramos o quanto
o poeta modernista, como temos o exemplo do poeta e literato paulista Mário de
Andrade, estudioso de contos indígenas e de vanguardas europeias, se sente
tensionado entre as tradições e as inovações urbanas, industriais, e culturais
das novas gerações, pois há uma significativa perda do ontem e ainda falta uma
sedimentação do hoje e do amanhã. Neste limbo somente sobram as lembranças e as
expectativas, entre o passado e o futuro, enquanto o presente somente pode ser
representado pelas palavras, pelos desvarios do poeta que reflete os desvarios
da sociedade urbana pós-industrial, na qual vivemos e sobrevivemos.
By Leonardo de
Magalhaens / Fale-UFMG
Referências
ANDRADE, Mário
de. Poesias completas. 4ª ed. São Paulo, Martins, 1974.
BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: _________. Baudelaire,
um lírico no auge do capitalismo – Obras escolhidas v. III. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
LAFETÁ, João
Luiz. A dimensão da noite e outros ensaios. Org. Antonio Arnoni Prado.
São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2004. (Coleção Espírito Crítico)
LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira
(Mário, Drummond, Cabral). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
Pesquisa na Internet
– sites disponíveis nos links abaixo: