Sobre Memórias Infames (Anome Livros / 2009)
poemas
de Antonio Miranda (Brasília, DF)
O
Poeta enquanto Leitor
Abordamos em ensaios anteriores as
fontes da criação poética corporificadas nos poemas, onde a
participação do Autor seria um eco de um contexto, o espelho de uma
época, seja por leituras ou por vivências; ou uma resistência, um
contraponto ao estilo da época; ou ainda, um não situar-se na
época, sendo antes um anacrônico, um deslocado, um 'gauche', um
'nascido póstumo', um 'flutuante'.
Existem os Poetas que deixam ecoar as
leituras e vivências de um momento, a ponto de serem verdadeiras
testemunhas; outros, procuram negar tudo o que a época diz, fazem
tudo ao contrário, são dissonantes; e outros não têm acesso à
leitura, ou não vivem a época, ou, tendo lido e vivido, procuram
esquecer tudo que leram/viveram.
Aquele que segue a Época é um
'farol', um 'príncipe', conduz ao igual, acomodado ou não, mas
sempre integrado. Tendo voz ativa, será líder. Aquele que nega a
Época pode passar por louco ou marginal, ou visionário, e será
idolatrado depois de morto. E aquele que não sabe (não leu e/ou não
viveu) será um original, enquanto aquele que leu e/ou viveu terá
que se esforçar para ser 'original'.
Este ensaio cuidará em situar o Poeta
enquanto Leitor, que dialoga com os múltiplos textos anteriores (e
servirá de interlocutor para textos futuros), e cria sua obra em
diálogo (nos sentido dados por Bahktin) com todos os outros –
lidos e imaginados. Até porque os bons autores imaginam os seus
leitores de agora e de amanhã (Walt Whitman que o diga!) e sabem
'digerir' a Tradição da Época com uma sensível reverência e uma
elegante ironia. (Se for apenas reverente, será mais um na multidão
de seguidores; se for irônico, cairá na fila dos rebeldes,
marginais, dos dissonantes)
A importância da Intertextualidade
não diminui a singularidade do Poema – a corporificação da
Poesia (imagem abstrata por excelência) pois a Autoria transmite ao
texto seu espaço de subjetividade, de indivíduo numa Época mas
também em relação a Época (afirmando ou negando), uma vez que o
Estilo é original em relação a outro Estilo (do passado ou do
futuro). Cada poema é um conjunto fechado de palavras certas em
posições certas. No sentido de que modificar qualquer verbete é
arriscar-se ao desmoronamento do edifício de cartas.
Aqui não será situada a pessoa do
Autor nem sua trajetória literária (matéria suficiente para mais
de um livro, onde destacaríamos uma impressionante tentativa de
diálogo com a obra alheia - no caso um poeta grego! - nos cantos de
“Eu, Konstantinos Kaváfis de Alexandria” (Thesaurus,
2007) (1)) Atentos a leitura dos poemas de Antonio Miranda,
evitaremos abordar Antonio Miranda.
O Poeta que escreve para Poeta não
pode dispensar a metalinguagem, onde vem contrapor as palavras X a
realidade, ou o ideal X o factual. Não pode esquecer que trata-se de
um diálogo (feito de monólogo + leitores) com outros
poetas/literatos, que sabem tanto quanto ele (se não qualitativa,
pelo menos quantitativamente)
O livro já abre com a 'síndrome' da
poesia atual (dito pós-moderna) a metalinguagem. Não hesita em
dizer: “o mesmo poema é muitos” (“Metapoema”, p. 11)
Toda uma Poesia auto-referente – a
Poesia que fala sobre... Poesia! A palavra enroscada em si-mesma, a
Linguagem debruçada sobre a Linguagem. A mania do Poeta em explicar
a Poesia cria nada mais nada menos que uma selva de ecos e espelhos
onde ele mesmo vai se perder.
“Poesia
é essas outras coisas
que
só existem na Poesia”
(“O
indizível”, p. 12)
“--
circulo e me
circuns
(e)screvo”
(“Círculos”,
p. 20)
Mas a Poesia sobre Poesia não foge ao
círculo vicioso, a menos que a Poesia seja um veículo para uma
viagem rumo a outro locus, situado numa 'geografia
sentimental'. Não que Poesia seja apenas 'sentimento', mas precisa
de sentimento. (E todos têm sentimentos, mas nem todos são poetas!)
O que salva a Poesia auto-referente é a evocação (chamada
'memória') do vivido. A vida evocada desde a vivência uterina.
Digamos, uma lírica 'memória' do útero,
Faço
a regressão, vou em busca
do entendimento que não tinha,
mas sabia, sem saber, eu sabia.
Tento decifrar o que ficou gravado.
Não sei o que é, Mas o que não sei
molda tudo o que sei, e o que serei.
do entendimento que não tinha,
mas sabia, sem saber, eu sabia.
Tento decifrar o que ficou gravado.
Não sei o que é, Mas o que não sei
molda tudo o que sei, e o que serei.
(“Antes
de nascer, eu ouvia”, p. 16)
A memória re-construi o Ontem, pois a
re-evocação é uma presentificação do Eu-ontem feita pelo Eu-hoje
que obviamente não mais a 'mesma pessoa'. Há um abismo (não de
continuidade!) entre o eu-que-vivi-ontem e o eu-que-relembro-agora.
Assim são as Memórias
Sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade, que não
sabemos se encadeiam prosa ou destilam poesia. (2) As memórias
exigem uma nova linguagem, entre a vigília e o sono, entre
fragmentos e pedregulhos, onde as partes nunca formam um todo, onde a
coesão e coerência (ah, as aulinhas de redação!) não passam de
ambições de um racional inexistente.
O extenso “Memórias Infames”
(p. 26-45) carrega o Leitor para dentro deste universo de recortes,
fragmentos, cenas e cenários que o Eu-de-hoje monta para si-mesmo
tendo como referência (o epicentro) o Eu-de-ontem. O poema vem em
ondas, ora joga-se para dentro, ora vertendo para fora, não há um
ponto de equilíbrio além do Sujeito que enuncia.
“Fizemos um pacto: eu era outro.”
ou “Se (me) n amava / e saía de mim” ou “Identidade
– dialética – inversa” quando a Sexualidade nasce do Eu
para ou outro, do prazer solitário para o amor a dois (ou para um
ménage a trois...) , quando o erótico transborda do pleno
amor do si-mesmo ofertado como dádiva ao prazer do outro. (Caso o
fenômeno de reciprocidade não ocorra, temos a rejeição, a
frustração, o egoísmo e o narcisismo.)
A sexualidade – recriada pela
memória – vai transbordar igualmente nos poemas “Meu primeiro
amor”(pp. 48-53), “Não Mais” (p. 72) e “Nu em suores” (p.
74), quando a bela disposição das letras – poesia tradicional de
qualidade – serve como veículo para transportar (eis aqui a
'metáfora'!) as muitas memórias gravadas no corpo (e nos corpos!)
quando a chama do amor vivido é poeticamente reaquecida.
Nu,
irredutível nu, naquela paisagem
que é de qualquer um — se quisesse,
sempre em movimento, deslizante, polido
pelo roce e suor, saliva; arfante, pés.
Nu, irremediável nu, em suores, cores,
refletindo sua relação com o mundo.
que é de qualquer um — se quisesse,
sempre em movimento, deslizante, polido
pelo roce e suor, saliva; arfante, pés.
Nu, irremediável nu, em suores, cores,
refletindo sua relação com o mundo.
(“Nu
em suores”)
Destaque:
O Jovem na Livraria
Meio ao barulho do trânsito, aos
trapos humanos, a miséria da existência, a pobreza e a
insatisfação, o jovem leitor, fascinado, lendo 'de pé', sem
qualquer comodidade, consegue ir-além do caos externo e mergulhar
num mundo de imagens construídas de /por palavras.
Temos em "O Jovem na Livraria"
uma pérola da poesia de referências. Tudo a erudição que foi
absorvida pelo Autor e vertida pelo Eu Lírico. Temos aqui
referências à C. Drummond, Maiakóvski, Mallarmé, dentre outros.
Temos o poeta enquanto leitor, a imagem do jovem deslocado na
livraria (justamente um símbolo da Erudição, da Tradição
Literária)
As múltiplas leituras podem produzir
Autores do tipo 'caixas de ressonância' (quantas cópias de Melo
Neto e Leminski brotam por aí !) ou Autores de fina sensibilidade
para deslizar entre as 'florestas de símbolos' e saírem ilesos com
uma Obra singular. Em diálogo. Significa: a controlar as referências
e as influências. A menos que se queira ser conhecido como autor de
paródias ou (hélas!) plagiador.
Encontraremos intertextualidades
conscientes e inconscientes (ver Bakhtin) onde muitas vezes o Autor
nem sabe que dialoga com outro Autor, cita sem perceber, imagina-se
autor de um pensamento lido em sua tenra infância. Cabe ao literato
se abrir para a leitura atenta (dos leitores e/ou dos críticos) e
'encontrar a si mesmo na fala alheia'.
Fato é que muitos sofrem da “angústia
da Influência”, que contagia todos os literatos de
boa-vontade, que – tal qual Borges – continuam a querer escrever
o livro que gostariam de ler! Aqui o Eu Lírico caminha com
Maiakovski e discursa com Mário de Andrade (“Ode ao Burguês”)
a declarar/re-evocar – em “Suicídio de Maiakóvski” e
“Maiakovskianas” - que “sem forma revolucionária não
há arte revolucionária”. (Esperamos que o Autor esteja a
acompanhar a Obra poética de Wilmar Silva / Joaquim Palmeira)(3)
Era culpa de Maiakóvski se ele poeta
era mais 'revolucionário' que a Revolução? O ser poeta não seria
ser propriamente de 'vanguarda'? Como deve o poeta guiar a Revolução
e não ser atropelado pelo 'plebeísmo'? E não ser vítima, como o
próprio futurista russo finalmente foi? A 'massa' deve ser educada
para entender o Poeta OU o poeta deve 'entregar tudo mastigado' para
a livre deglutição?
Os poemas "Encurralado", "Assim
caminha a Humanidade" e "Rodoviária do Plano Piloto"
soltam a voz sobre o drama da tragédia da comédia humana que
rasteja pela terra sem coragem de tomar a História nas mãos e
trocar a opressão da desigualdade pelo coletivo da igualdade.
O
homem escraviza a família e o céu,
devora seus semelhantes, trapaceia
e se instaura como um deus dissimulado.
devora seus semelhantes, trapaceia
e se instaura como um deus dissimulado.
'Quem é o homem?' seria a
indagação a ecoar a cada estrofe deste poema (“Encurralado”)
onde, por sua vez, ecoam as indagações do poema de Carlos Drummond de Andrade,
“Especulações em torno da palavra homem” (4),
Mas
que coisa é homem,
Que
há sob o nome:
Uma
geografia?
Um
ser metafísico?
Uma
fábula sem
Signo
que a desmonte?
Como
pode o homem
Sentir-se
a si mesmo,
Quando
o mundo some?
“Com passos de formiga e sem
vontade” (Lulu Santos) assim caminha a Humanidade , a deixar
uma trilha de ossos, ruínas, genocídios, lixo, desmatamento,
subliteratura, novelas televisivas, pseudo-músicas, barulhos
comerciáveis, trânsitos caóticos, poluição visual, etc etc,
enquanto ouvimos os intelectuais (pagos pelo Sistema ) apregoarem que
'vivemos no melhor dos mundos possíveis' e que pensar diferente é
'coisa de gente desajustada ou infectada por utopias'.
a
história da humanidade
é
a prova da insanidade
a
que estamos submetidos
— sem
deus, sem destino
Destacamos também a criação de
imagens – mais do que descrições, são sugestões, mais do que
pinturas, são figuras de linguagem. Assim norteamos nossa leitura de
“Se me movo”, “Mar”, “Barco à deriva” e “Janela
para dentro”, os poemas que fecham (mas não concluem) esta
edição. (Nada de conclusões: ainda temos um CD – com a Voz do
Poeta - no encarte!)
A 'fluidez' psicodélica em 'se me
movo',
se
os pássaros me vêem, sou cristal
se
o rio passa, eu também passo
—
passado, frio, além, miragem
ou
a ondulação da maré em 'mar',
o
mar sem fissuras
um
mar sem vincos, estrias
um
mar-amplidão
sem
marcas, em movimento
mar
a que tudo vai
mar
adiante, mar amor
ou
a 'imagética' fremente em 'barco à deriva',
Pássaros
sem pouso, nuvens estagnadas.
Ilhas (ainda) desabitadas, escaladas impossíveis.
Sonhar. Ares degradados, repouso, vácuo
e um olhar sem rumo, sem prumo, turvo.
Ilhas (ainda) desabitadas, escaladas impossíveis.
Sonhar. Ares degradados, repouso, vácuo
e um olhar sem rumo, sem prumo, turvo.
Explicitam um espaço de invenção
que o jogo de palavras permite a partir dos pluri-significados, e das
torsões semânticas,
A
janela olhando o horizonte,
o
horizonte dentro da janela.
Olhando
para dentro: sem você.
Quando
aportaremos, seguros?
As
paredes estalam. Estremecemos.
Nada
além disso, é o bastante.
(janela
para dentro, p. 89)
O simbolismo imagético nasce (ou é
tecido) numa poesia enquanto exercício de introversão, de
introvisão, de olhar-para-dentro, onde se há referências ao 'mundo
externo' estas são mescladas com o 'estado de espírito' do Eu
Lírico. Assim são construídas as poéticas de Rimbaud (ecos de
“Barco Bêbado”), Baudelaire (algo de “As Janelas”),
Verlaine (ressonâncias de vários poemas) (5), onde o
simbólico - e o sonoro – diz além das palavras através do
trampolim das palavras.
Antes
que a orla virasse muralha e vidro,
horizonte tapado, visão retroversa, errática
horizonte tapado, visão retroversa, errática
São imagens não explicadas, mas
sentidas. Recuperam todo o peso da palavra que flutua leve livre de
um sentido único, conceitual, de dicionário. “pássaro
adiantado no tempo / — o inverno anuncia dias calados.” Aqui
qualquer denotação é suspeita, e toda conotação é possível. As
figuras de linguagem tomam de assalto as cidadelas do significado. O
que está fora apenas reflete o que viceja dentro, Uma chuva
letárgica, atrasada molha sem pressa, afogando.
Não se explica um poema. A
'explicação' do poema é o próprio poema. O poeta e crítico
Octavio Paz assegura que a 'imagem poética' não é explicável. E
quanto mais 'imagens' tiver, melhor o poema, assim mais
'inexplicável'. Não exatamente 'hermético' – seja ao Crítico ou
ao Leitor. 'Inexplicável' no sentido de tudo que se diga sobre o
poema é inútil e redundante. [Se a Crítica reevoca/repete a Imagem
ela é pleonástica; e se nega a Imagem, é surda, cega e muda.](6)
O máximo que a Crítica pode fazer é
situar um dado Texto num determinado Contexto, além de considerar
que há uma Autoria (um estilo, um subjetivismo, etc), e assim
contextualizar o Escrito na Época, em diálogo (afirmando ou
negando) com a experiência e/ou a leitura, a espelhar ou idealizar -
através da Literatura - um modo de vida.
mar/10
revsd: fev/13
Leonardo
de Magalhaens
Blog
do poeta Antonio Miranda
mais
sobre Memórias Infames
Notas:
(1)
Poema e prosas de Konstandinos Kavafis
(2)
Trechos de “Memórias sentimentais de João Miramar”
(1924) de Oswald de Andrade (1890-1954)
"O
PENSIEROSO
Jardim
desencanto
O dever e processões com pálios
E cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistérios
Urbanos apitando noites cheias
Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
- O anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser a mãe de Deus.
Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido avermelhava.
- Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não tem pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que nas pernas, amém."
O dever e processões com pálios
E cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistérios
Urbanos apitando noites cheias
Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
- O anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser a mãe de Deus.
Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido avermelhava.
- Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não tem pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que nas pernas, amém."
Indiferença
"Montmartre
E os moinhos do frio
As escadas atiram almas ao jazz de pernas nuas
Meus olhos vão buscando lembranças
Como gravatas achadas
Nostalgias brasileiras
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas
Os portos de meu país são bananas negras
Sob palmeiras
Os poetas de meu país são negros
Sob bananeiras
As bananeiras de meu país
São palmas claras
Braços de abraços desterrados que assobiam
E saias engomadas
O ring das riquezas
Brutalidade jardim
Aclimatação
Rue de La paix
Meus olhos vão buscando gravatas
Como lembranças achadas."
"Montmartre
E os moinhos do frio
As escadas atiram almas ao jazz de pernas nuas
Meus olhos vão buscando lembranças
Como gravatas achadas
Nostalgias brasileiras
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas
Os portos de meu país são bananas negras
Sob palmeiras
Os poetas de meu país são negros
Sob bananeiras
As bananeiras de meu país
São palmas claras
Braços de abraços desterrados que assobiam
E saias engomadas
O ring das riquezas
Brutalidade jardim
Aclimatação
Rue de La paix
Meus olhos vão buscando gravatas
Como lembranças achadas."
(3)
”Ode ao Burguês” (Mário de Andrade)
mais
sobre Vladimir Maiakóvski em
http://www.culturapara.art.br/opoema/maiakovski/maiakovski.htm
(4)
Poema de CDA, “Especulações em torno da palavra homem”
em
(5)
Rimbaud, “Barco Bêbado” (duas traduções)
Baudelaire,
“As Janelas” / Les Fenêtres
Alguns
poemas de Paul Verlaine
(6)
Mais sobre Octavio Paz em
LdeM
Nenhum comentário:
Postar um comentário