ANJOS
DO
METRÔ
Numa
tarde
nublada
de
segunda-feira,
na
semana
do
Natal,
o
senhor
Carlos
D.
Ventura
foi
recolhido
à
clínica
psiquiátrica
de
nosso
município.
Detido
enquanto
passeava
pelas
estações
do
nosso
metrô
de
superfície,
passatempo
frequente
desde
seu
afastamento
da
Companhia,
ainda
que
contrariando
o
conselho
de
seu
médico,
o
Senhor
Carlos
D.
Ventura
mostrava-se
agitado
e
não
reconheceu
sequer
antigos
colegas.
O
Senhor
Carlos
D.
Ventura
passeava,
meio
sonâmbulo,
pelas
plataformas
de
embarque
e
desembarque,
e
dizia,
na
verdade,
balbuciava
com
olhos
vidrados,
estar
cercado
de
anjos.
Não
ele,
mas
toda
a
estação.
E
foi
assim
que
a
expressão
“Anjos
do
Metrô”
tornou-se
célebre
entre
nós.
Mas
desde
quando
andava
louco
o
Sr.
Carlos
D.
Ventura?
O
que
o
enlouquecera?
Ou
melhor,
por
que
antes
de
nós
mesmos?
A
esposa
do
Sr.
Carlos
D.
Ventura,
uma
senhorinha
cabisbaixa,
a
qual
chamavam
Angélica,
mas
seu
nome
todos
sabiam
ser
Mariângela,
ainda
que
outros
a
chamassem
Angelita,
mas,
enfim,
todos
a
acolhiam
consternados,
digo,
todos
aqui
na
Companhia.
A
sra.
Ângela,
assim
eu
a
cumprimentava,
estava
acostumada
a
comparecer
às
nossas
festinhas
de
gabinete,
onde
o
próprio
engenheiro-diretor
não
deixava
de
ser
solícito,
abrindo
as
garrafas
de
champanha.
A
turma
dos
computadores
aparecia
em
peso.
Às
vezes,
surgia
um
violão.
Mas
creio
estar
a
afastar-me
do
ponto.
O
caso
é
que
quando
a
sra.
Angelita,
assim
a
abordava
o
coordenador
de
operações,
surgiu,
sem
o
marido,
em
plena
festa,
todos
se
entreolharam.
Alguns
entenderam,
outros
desistiram
de
perguntar,
e
ainda
houveram
aqueles
que
suspiravam,
demorou,
até
que
enfim,
imaginem
vocês.
Não
que
o
Sr.
Carlos
D.
Ventura
fosse
hostilizado,
bem
ao
contrário.
Era
um
colega
honrado,
a
esposa
que
o
diga,
mas
um
incidente
calamitoso
o
transtornara
até
as
profundezas
da
razão,
digo,
nossa
superficial
razão.
E
o
Sr.
Carlos
passeava
pelas
plataformas,
entrava
nos
trens,
os
quais
conduzira
por
quase
vinte
anos,
cumprimentava
os
colegas,
nada
demais.
Não
fosse
os
olhares
que
ele
dirigia
às
pessoas.
Enquanto
o
Sr.
Carlos
D.
Ventura
transitava
pelas
plataformas
seu
olhar
adentrava
o
mar
de
faces
e
escavava
as
pupilas
alheias.
Procuraria
alguém?
Como
poderia,
meio
aquela
multidão?
Fosse
às
seis
ou
oito
da
matina,
as
estações
lotadas
de
gestos
apressados
e
bocas
bocejando,
ou
talvez
às
dezessete
ou
dezoito,
a
luz
declinando,
o
corpo
pesando,
o
rebanho
se
arrastando,
com
esgares
de
mau-humor,
e
não
apenas
quando
alguém
vem
pisar
o
estimado
calo.
Desde
a
expansão
das
linhas,
rumo
a
zona
norte
da
capital,
a
pouco
mais
de
meia
década,
o
fluxo
de
faces
aumentara
consideravelmente.
Poderia
o
Sr.
Carlos
D.
Ventura
catalogar
a
todas?
Jogado
numa
maré
de
faces
embrutecidas,
apáticas,
sorridentes,
enrugadas,
irônicas,
maquiladas,
poderia
sobreviver?
Estaria
à
procura
de
alguém?
O
Sr.
Carlos
D.
Ventura
passeava,
mãos
nos
bolsos,
olhares
de
contra-espionagem,
andar
de
Sam
Spade,
mas
seu
capítulo
é
trágico,
vida
esticada
de
um
drama
a
outro.
Enquanto
o
Sr.
Carlos
se
entrega
a
tal
inquieto
flanar,
embevecido
com
a
pluralidade,
como
se
nunca
outrora
a
notasse,
as
pessoas
ao
seu
redor
nem
se
lembravam
de
se
afastar.
No
último
instante,
já
sentindo
sobre
si
mesmas
o
olhar
inquisidor,
é
que
evitavam
um
encontrão
com
aquele
perturbado
senhor.
Às
vezes,
ele
se
encontrava
com
a
esposa
Angélica,
assim
diria
o
nosso
assessor
de
comunicações,
e
eis
o
lento
escorrer
de
meio
minuto
antes
de
reconhecê-la.
Não
era
estranho?
E
ele
sorria?
Sorria,
não
vexado,
mas
porque
via
diante
de
si
uma
mulher,
uma
pessoa,
ser
muito
além
do
enunciado
“sua
esposa”.
Ousara
dizer
que
a
conhecia
realmente?
Ainda
o
encontramos
percorrendo
as
estações
dos
subúrbios.
Está
cercado
de
tipos
os
mais
diversos.
Uma
mulher
alisa
o
vestido
em
leve
laranja,
com
pequenas
flores
de
amarelo
desbotado,
e
uma
garotinha,
dedo
no
nariz,
pede,
ou
exige,
uma
sapatilha
igual
aquela
a
moça
do
cartaz,
e
um
senhor,
um
executivo
em
início
de
carreira?,
vendedor
de
seguros?,
bem
trajado,
abraça
a
maleta
sobre
os
joelhos
ao
sentar-se.
Um
par
de
olhos
marinhos
faz
repousar
o
espírito
do
andarilho.
O
Sr.
Carlos
D.
Ventura
acompanha
uma
estudante
por
uns
dois
metros.
Ela
se
prepara
para
entrar
no
trem
que
se
aproxima.
Talvez
– ou
certamente
– ele
jamais
a
verá
novamente.
Por
que,
ao
ser
abordado,
o
Sr.
Carlos
D.
Ventura
se
referira
aos
anjos,
digo,
aos
Anjos
do
Metrô?
É
sabido
o
quanto
expressão
se
popularizou,
e
não
só
dentro
da
Companhia.
E
o
enigma
continua.
Ou
alguém
ousara
entrevistar
um
louco?
Um
louco
no
diário
vespertino?
O
Sr.
Carlos
talvez
esboçasse
um
sorriso
diante
de
tanta
insensatez,
ele
um
homem
tão
pleno
de
bom
senso,
ainda
que
privado
de
razão.
(uma
vez,
ele
perguntou-me,
sem
desviar
o
olhar,
“Que
razão,
meu
filho?”
E
juro
que
ele
parecia
ter
meio
milênio
de
idade!)
O
conhecido
é
que
o
Sr.
Carlos
D.
Ventura
passava
a
sua
aposentadoria
compulsória
longe
da
família,
longe
dos
amigos,
perambulando
pelas
estações
de
metrô.
De
onde,
justamente,
queriam
afastá-lo.
Tentava
se
aproximar
dos
milhões
de
habitantes
da
capital,
mas
era
inútil.
Daí
conceder
que
alguém,
ou
alguns,
as
acompanhava?
Não
serão
lembranças
de
Win
Wenders? Asas
do Desejo?
City
of
Angels?
Filmes
muito
em
voga.
Leituras
de
apócrifos,
aquelas
apressadas
nos
intervalos
do
lanche?
Mas
o
Sr.
Carlos, isso
supomos,
longe
de
nós
afirmamos
fenômenos
longe
de
nossa
observação,
via
uns
vultos
junto
às
pessoas.
Anjos?
Aqueles
da
guarda?
Que
nossas
mães
invocam
para
apaziguar
o
nosso
terror
noturno
e
assegurar
nosso
repouso
tranquilo?
Mais
real
que
a
Fada
do
Dente?
Mais
real
que
a
‘Cuca-vai-pegar’
?
O
Sr.
Carlos
D.
Ventura
via
os
anjos
e
acreditava,
de
todo
o
coração,
que
aquele,
ou
aquela,
que
o
anjo
acompanhava,
morreria,
em
breve.
Um
infarto,
dentro
dos
vagões?
Atropelado,
assim
que
os
pés
alcançassem
o
ponto
de
táxi
da
praça?
Assaltado
e
baleado
nas
avenidas
centrais,
ou
nas
vielas
do
morro?
Morreria,
sim.
Nada
macabro,
o
Sr.
Carlos,
mas
seu
olhar
se
nublava
tal
uma
tarde
de
dia
dos
mortos.
E
estes,
ou
estas,
acompanhados
por
seres
espectrais,
bons
ou
maus,
quem
saberia?,
atraíam
os
olhares
do
ex-condutor.
Quando
tal
alucinação
surgira?
Isso
se
for
alucinação!
Sabe-se
lá!
Estas
pessoas
que
vêm
e
que
vão,
a
trilharem
diferentes
caminhos,
impulsionadas
por
diversas
crenças,
respondendo
a
estranhos
desafios,
vivem
atrás
de
quimeras,
desde
que
nascem
até
a
inevitável
morte.
Pessoas
que
não
mais
voltarão,
nem
mais
poderão
se
repetir.
Ainda
muito
peculiares
para
um
formigueiro,
ainda
muito
divergentes
para
um
rebanho.
Uma
mão
se
estende,
a
capturar
os
dedos
de
outra,
um
casal
se
beijando
sem
transtornos,
sem
lembrar
dos
outros,
um
menino,
cabelo
arrepiado,
mãozinhas
ágeis,
desembrulhando
um
bombom
gigantesco,
aquele
ancião
esticando
os
suspensórios,
lembrando
um
chapéu
usado
na
Copa
de
50,
outra
estudante,
que
o
colega
identifica
como
Carla,
desvia
o
olhar,
evita
pisar
num
guarda-chuva,
que
alguém
deixa
cair
na
escadaria.
Um
especialista
em
idiomas
ajuda
um
turista,
it
looks
like
rain,
i
take
you
to
a
táxi
stop,
um
especialista
em
lubrificação
de
trilhos
troca
tapinhas
nas
costas
com
um
engenheiro
recém-formado,
uma
especialista
em
emoções
humanas
(existirão
as
não-humanas?)
sorri
para
um
especialista
em
cirurgias
cardíacas,
serão
namorados?
Noivos?
Ah,
se
o
Sr.
Carlos
D.
Ventura
pudesse
esquecer
um
certo
sorriso.
Um
sorriso
que
flutua
nas
amplidões
da
megalomania
das
estações,
no
brilho
artificial
fluorescente
das
assépticas
plataformas,
no
mar
de
faces,
na
ansiada
harmonia
de
diversidade,
na
busca
de
sintonia,
um
olhar
que
flutua
a
espera
de
um
sorriso
que
flutua,
inesquecível,
e
inefável.
O
Sr.
Carlos
D.
Ventura
lembra-se
bem.
Ela
terá
caído,
alguém
a
jogara
nos
trilhos?
Não,
improvável.
Por
que?
Ora,
o
sorriso!
Uma
mulher
jovem,
quantos
anos?,
Vinte
e
poucos,
vinte
e
cinco?,
tivera
uma
filha,
agora
com
a
sogra.
O
que
a
jovem
faz?
Se
joga
nos
trilhos!
O
terror
é
não
poder
ter
evitado?
Ou
não
ter
previsto?
O
sorriso
que
flutua
indica
possíveis,
ocasionais,
suicidas.
E
os
anjos
são
acompanhantes
atentos.
Pretendem
evitar
o
desenlace?
A
Sra.
Angelita
relata
que
o
Sr.
Carlos
se
aproximava,
mas
os
desistentes
da
vida
se
mostravam
hostis,
até
mal-educados,
qual
é,
velho
maluco?,
tu
é
religioso?,
fica
na
tua!,
tudo
aqui
é
uma
droga,
não
tem
medo,
não?
O
Sr.
Carlos
D.
Ventura
lembra-se
bem.
Ela
não
caiu,
ninguém
a
jogara.
(Por
que
insistir
em
mentiras?
Auto-engano?
Por
que
não
aceitar?)
Ela
se
jogara
e
ele
não
pudera
evitar.
Não
parou
a
tempo.
Por
que
logo
diante
dele?
Por
que
envolver
o
Outro
em
nossa
morte?
Um
espetáculo
aos
Anjos
que
observam
a
morte
alheia?
Morremos
sorrindo
para
o
Outro?
Um
trágico
espetáculo
para
uma
notícia
de
meia
coluna
na
página
de
ocorrência
policiais
e
outras
tragédias
urbanas
?
Para
um
obituário
em
tons
líricos?
Então,
diga-me, por
que
o
sorriso?
Nov/04
Leonardo
de
Magalhaens
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