quinta-feira, 17 de maio de 2012

O OUTRO - conto



O OUTRO


Quando recebeu a carta, aquele envelope de aspecto formal, o Sr. Antunes tratou logo de abrigar o papel na maleta, visto a pressa com que girava a chave no portão e abria a porta do carro, com as rodas dianteiras já caídas na sarjeta, esforçado-se para sorrir e ser simpático ao carteiro, “Bom dia, seu Buarque!”, ao lembrar de quase uma década de residência e serviços.

leu a carta no escritório. Quando Edwiges chegou, logo aprontou o café e pediu leite e torradas pelo delivery da padaria. Sempre eficiente a Edwiges. quanto tempo em tão prestativo serviço? O Sr. Antunes nem fazia contas, mas considerando-se os quase dez anos de advocacia, independente, emcarreira solo, como dizia em amplo sorriso. Na verdade, o Sr. Antunes se livrara dos sócios, os sucintos e sisudos Srs. Albertini e Garcia Melo, e da esposa, a graciosa e ambiciosa, Sra. Marta Gouveia Tavares de Aguiar.

Abriu o envelope, junto com correspondência do escritório, enquanto a Sra. Edwiges servia o café-com-leite, muito de sua preferência. O texto da missiva muito o surpreendeu, tratando-se de uma correspondência formal expedida pela Marinha, especificamente o Departamento de Pessoal da Marinha, sediada na bela e atlântica cidade do Rio de Janeiro, da qual o Sr. Antunes guardava recônditas saudades do seu tempo de estudante, seu contato com as lindas morenas de doce boêmia.

O que dizia o texto? “Através desta mui agradecemos ao Sr. Antunes Anselmo Duarte de Aguiar, por seu interesse e suas propostas quanto ao funcionamento do nosso quadro de pessoal, no tangente às reformas trabalhistas, tal podemos constar em seu artigo publicado em O Globo, de fins de março, artigo este muito elogiado pelo Almirante e distribuído aos demais oficiais, que muito louvam a sapiência e bom-senso do articulista.” E seguia com formalidades. O que muito arrepiava o Sr. Antunes.

Em arrepios, degustava o café-com-leite, reclinado em sua cadeira, e girava a caneta reluzente nos dedos da mão esquerda, a pensar, sim, profundamente pensar. Quando enviara algum artigo ao jornal O Globo do Rio de Janeiro? Em fins de março? Isto é, há quase dois meses atrás. Mas já se esquecera? Andava assim com a memória tão fraca? Era coisa de procurar um médico, não? E conferia a carta e revirava o envelope e lá está o Ministério e lá está a Marinha e lá está o seu nome “Ao Ilmo. Sr. Antunes Anselmo Duarte de Aguiar, Belo Horizonte”, e questões, muitas questões.

Desde quando escrevia sobre questões trabalhistas da Marinha? A sua linha não era mais patrimonial, coisa de alvarás, escrituras, termos de ocupação, ordens de despejos, coisas totalmente civis? Por que lhe vinha logo agora essa de escrever sobre assuntos militares? Ainda que só referindo-se à questão de quadro de funcionários, nada de táticas e afins, que disso ele realmente nada entendia, com sua formação modesta no serviço militar, e o que seria? Loucura? E essa de Rio agora? Não tinha uns dez anos que ele abandonara o calçadão e a baixada? E quando fora as últimas férias? A um ano e meio, não? Ainda com a megera da Marta! Contorceu-se numa careta e reclinou-se, afundou-se na cadeira.

Foi a Sra. Edwiges quem o resgatou naquela vertigem. Indagava, como quem não muita importância,Dona Edwiges, escute aqui. Me esclareça. Eu cheguei a enviar algum artigo para um jornal do Rio, a saber, o Globo? Que eu me lembre..., e a secretária se voltava,Não senhor Doutor, não que eu me lembre. Mas posso consultar os arquivos. O senhor Doutor não guardou um recorte quando saiu o jornal?Sim, muito inteligente e prática, a Sra. Edwiges! Claro, o Sr. Antunes é (ou depois dessa, devamos chamar Dr. Antunes) é um tanto vaidoso, e nunca se preocupou em ocultar,Modéstia é coisa de vaidoso!, e fazia questão de guardar, numa pasta específica para este fim, uma série de recortes de artigos que saíam nos jornais locais e nacionais (não ainda os internacionais, hélas!, mas ele não tinha tamanha pretensão) E a Sra. Edwiges retorna a dizer nada ter encontrado.

Continuou abrindo mecanicamente o restante da correspondência, toda agora com assuntos do escritório, embargos em obras, prédio com riso de desabamento, um novo loteamento na zona sul, a planta de uma mansão no Belvedere, outras pendências judiciais, e um bocejo. Não prestava atenção. Seu olhar caía vez ou outra no formal envelope da Marinha, onde a secretária do Almirante F. elogiava um artigo sobre. Bem, já sabemos. O Dr. Antunes é que se perde em conjecturas. Que é estranho é. Coisa de nomes parecidos? De repente, um outro Dr. Antunes Anselmo Duarte de Aguiar. Por que não, ora? Mas era muita coincidência! Existia coincidência? E com o mesmo endereço? Mas e se procuraram no catálogo telefônico e lá estava o seu nome e endereço e de pronto enviaram a correspondência sem maiores averiguações, como ele imaginava de praxe em ambientes burocráticos.

O Dr. Antunes nada sabia sobre a Marinha. Nunca adentrara um navio, nunca vira, aliás, uma vez só, quando passeara no porto de Santos, mas antes de morar no Rio, quando do mestrado. E suas preocupações não incluíam navios, antes uma certa, digamos, companhia. Ruborizando-se, o Dr. Antunes se esforça para desviar o pensamento das coxas nuas daquela morena. Volta a vasculhar o envelope, “Ao Ilmo Sr. etc etc” e não acreditava.

Igual daquela vez, que voltando ao Rio, um amigo de tempos de outrora, jurava ter visto seu vulto branco e lusitano num boteco lá pros lado dos Arcos da Lapa. Impressão? Mas insistia que Antunes andava dando suas escapadinhas na noite boêmia. O que muito irritou o Dr. Antunes, já a imaginar um sósia, um irmão gêmeo, que desconhecia, coisas assim, de romances fantásticos. O que fazia ele num boteco pros lados da Lapa? Estaria acompanhado? E deixou-se imaginar a cena de estar ali com uma morena de traseiro farto e peitos à mostra, ou quase. Ah, fantasias!

Cuidemos do trabalho! E passava a leitura do alvará de um terreno e da escritura a tal mansão outrora citada e deixou assim escoar boa meia hora. E essa da Lapa? Só se estivesse morando ainda no Rio! Nas noitadas, época em que dera um tempo com Marta. Viviam em brigas. Daí ele pensar no mestrado. E não é que quando se separam no definitivo, ele tirara um tempo para aprender noções de informática? Uma das morenas ele, o Dr. Antunes, conhecera no Orkut, e que dona Edwiges não o surpreendesse usando o computador do escritório para semelhantes “inutilidades”. Loira, alta, aristocrática, ainda que secretária humilde, dona Edwiges nunca o perdoaria, “Até o senhor, Dr. Antunes?” e diria que os homens realmente não prestam, até porque estava igualmente separada do marido, há dois anos, devido à flagrante traição. Ah, mas o que isso importa? Sua mente já delirava?

Sim, estaria um boteco da Lapa se morasse no Rio. Se estivesse no Rio? Sempre o “se” ou “se”, sempre a dúvida! Se eu estivesse no Rio o que estria fazendo hoje em dia? Hein? Responda rápido! Certamente trabalhando com o Renan. Sim, o seu amigo daqueles tempos. O mesmo Renan que lhe apresentações diante do sujeito que insistia porque insistia que o honesto Dr. Antunes estava em farras lá pros lados da Lapa! Isso, certamente, se estivesse vivendo no Rio! E sem a mulher. E aí então seria outro! Por que não ficou no Rio? Ora, por que? Por causa do Garcia! Que montou o escritório, junto com o Albertini. Um nas causas trabalhistas, e o outro na administração, assessoria para empresas, as pequenas que serão grandes negócios!

Certo, certo. Era isso. E quando o abordaram sobre um difícil caso trabalhista e ele não entendeu. Por que ele? E não resolvera nada. Entregou para o Garcia. Que se virasse. Mas o Renan é que entendia de trabalhistas. Ei, se estivesse com o Renan, então certamente! Mas o telefone tocou e parecia um badalar de sinos! Sorte era a dona Edwiges ter atendido e resolvido. A cabeça do doutor não estava para estas coisas, “O senhor anda muito estressado, seu Antunes.”, a secretária dizia, maternal.


Mas era isso! Ele, o doutor Antunes, nas trabalhistas! Quando? Ora, se antes tivesse se agarrado ao Renan igual um mexilhão a sua crosta! E Renan não tinha trânsito dentro dos Ministérios, no governo estadual, certamente? E encheu a xícara de café e desistiu do leite. Tentou lembrar-se se estava acompanhado quando passeava na Lapa. Já começava a sentir-se como o ‘outro’ Antunes.


Mar/07


Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Lição de Poesia




Lição de Poesia

(a morte do autor?)



Qual o nome da amante de
Baudelaire?

Qual a fantasia erótica de
James Joyce?

Qual o nome da fiel esposa de
Machado de Assis?

Quantas namoradas teve o
sedutor Kafka?

Quantas virgens pálidas roubaram
o coração do funesto
Edgar Allan Poe?

Qual a igreja frequentada por
Murilo Mendes?

Qual o toureiro predileto de
João Cabral ?

Quais as fobias aninhadas
no olhar de
Paul Celan?

Qual o nome da amante de
Elizabeth Bishop?

Qual era a puta favorita de
Bukowski ?

Qual era a cor favorita de
Rimbaud?

Qual era o prato favorito de
Ferreira Gullar?

Qual o cemitério frequentado
por Augusto dos Anjos?

Quantas foram as virgens pálidas de
Álvares de Azevedo?

Qual a bebida favorita de
Mallarmé ?

Quais os livros prediletos de
José Paulo Paes?

Quantas musas deitaram-se
na cama do poetinha
Vinicius?

Quais as ruínas favoritas de
Octavio Paz?

Quais as propriedades de
Lord Byron?

Quantos maridos teve
Hilda Hilst?

Em quantas casas repousou
o errante Shelley?

Quantos rouxinóis cantavam
no jardim de
John Keats?

Quantas estrelas brilhavam
à janela de
Olavo Bilac?

Qual o suspensório predileto de
Haroldo de Campos?

Qual o time favorito de
Waly Salomão ?

Em quantas ilhas viveu o
oceânico Neruda?

Quantas lilases desabrocharam
no jardim de
W. Whitman?

Quantas pessoas eram o
poeta Pessoa?

Qual o chá predileto da
meditativa Emily Dickinson?

Qual a cachaça predileta de
Carlos Drummond ?

Qual o boteco frequentado por
Mário Quintana?

Quantas lesmas habitam
o pantanal de
Manoel de Barros?

Quantas crises depressivas derrubaram
Leopardi?

Quantas pulgas sugaram
o sangue pútrido de
Lautréamont?

Quantas gravatas nas
gavetas de
Castro Alves?

Quantas fotos revelam
o olhar contemplativo de
Sylvia Plath?

Quantos garotos de São Paulo
possuíram o xamânico Piva ?

Quantos mancebos suspiraram
pela beleza de
Cecília Meireles?

Quantos curiosos leram
as cartas íntimas de
Ana Cristina César?

Qual, Quais,
Quantos, Quantas, etc





abr/11



Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com

 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

2 poemas de William Carlos Williams





William Carlos Williams



As Árvores Botticellianas

O alfabeto das
árvores

vai desmaiando na
canção das folhas

as hastes cortadas
das finas

letras que escreviam
inverno

e frio
foram iluminadas

com
pontas de verde

pela chuva e o sol -
As regras simples

e estritas dos ramos
retos

vão sendo alteradas
por ses de cor

pinçados, por cláusulas
devotas
os sorrisos de amor -

..


até as frases
desnudas

se moverem como braços
e pernas de mulher sob o tecido

e em sigilo o louvor
entoarem do desejo

e do império do amor
no estio -

No estio a canção
canta-se por si

acima das palavras surdas -


trad. by José Paulo Paes


nota: Sanzio Botticelli é um pintor italiano da época
da Renascença europeia, séculos 15 e 16.

...

The Botticellian Trees
(1931, 1934)

The alphabet of
the trees
is fading in the
song of the leaves
the crossing
bars of the thin
letters that spelled
winter
and the cold
have been illumined
with
pointed green
by the rain and sun --
The strict simple
principles of
straight branches
are being modified
by pinched-out
ifs of color, devout
conditions
the smiles of love --
. . . .
until the stript
sentences
move as a woman's
limbs under cloth
and praise from secrecy
quick with desire
love's ascendancy
in summer --
In summer the song
sings itself
above the muffled words --





William Carlos Williams




A Duração

Uma folha amarfalhada
de papel pardo mais
ou menos do tamanho

e volume aparente
de um homem ia
devagar rua abaixo

arrastada aos trancos
e barrancos pelo
vento quando

veio um carro e lhe
passou por cima
deixando-a aplastada

no chão. Mas diferente
de um homem ela se ergueu
de novo e lá se foi

com o vento aos trancos
e barrancos para ser
o mesmo que era antes.


trad. by José Paulo Paes

..

The Term


A rumpled sheet
Of brown paper
About the length

And apparent bulk
Of a man was
Rolling with the

Wind slowly over
And over in
The street as

A car drove down
Upon it and
Crushed it to

The ground. Unlike
A man it rose
Again rolling

With the wind over
And over to be as
It was before.






William Carlos Williams

...