segunda-feira, 8 de agosto de 2011

sobre 'Z a Zero' - de Wilmar Silva




Sobre “Z a Zero” (Anome Livros, 2010)
do poeta e ator Wilmar Silva



Testemunho Formal da (Des)Construção Poética



Forma e Conteúdo, Forma-Conteúdo


Expliquemos, didaticamente, com exemplos, a questão forma-conteúdo. Consideremos uma canção popular. Nela temos sons, melodias, ritmos, compassos, vozes humanas. Os instrumentos e as vozes interagem. As melodias – acordes e pausas – criam uma tessitura com a voz que diz algo. Se entendermos o idioma – temos o som e o significado, as palavras dizem algo que compreendemos: uma descrição, um lamento, etc.

Se não compreendemos o idioma, podemos perfeitamente ouvir o som, a voz, o todo forma-conteúdo sem significado. Uma canção em árabe diz algo a quem compreende árabe – caso contrário é só expressão, é capaz de emocionar, mas não de significar. Se não sei árabe sou incapaz de saber se a voz – ou vozes – descreve(m) uma paisagem ou lamenta-se de um amor perdido. Somente a forma – tendo o conteúdo em si – é acessível e suficiente. Posso gostar da ‘Marseilleise’ sem saber francês, por exemplo.

A percepção da forma-que-é-conteúdo, a do conteúdo-que-é-forma, é dada em bloco, isto é, a melodia e a voz numa canção árabe – para quem não compreende o idioma árabe – se fundem de modo que as palavras entoadas sejam percebidas como melodia ou instrumento. As palavras não se revestem de significado – é preciso ser educado em árabe para isso – mas elas simplesmente SÃO, não dizem.

A emoção, sendo um fenômeno irracional, não exige a compreensão dos sentidos das palavras. Assim uma canção em árabe é forma-conteúdo para quem não sabe árabe, e é forma e conteúdo para quem compreende o tal idioma. A mesma canção terá sentidos diversos caso seja entoada nas ruas do Cairo ou num shopping-center de Belo Horizonte – é um fenômeno de percepção por parte do ouvinte (vide “O Imaginário” de J-P. Sartre, e “O Ato da Leitura” de W. Iser, obras sobre Fenomenologia e Estética da Recepção)

Podemos apreciar a beleza estética (forma-conteúdo) de uma canção em qualquer idioma, sem entender o que é dito. Posso apreciar, ter prazer estético, tranquilamente, ao ouvir uma canção islandesa, sem saber uma só palavra do idioma islandês. Mas não terei acesso ao significado, apenas as emoções. O conteúdo é recebido em bloco na percepção da forma.

Devido ao fato de não entender as palavras árabes ou islandesas minha percepção das vozes é igualada a dos instrumentos. As palavras integram o tecido melódico. Sem significado distinguível. Posso ‘ler’ Z a Zero como ouvir uma canção em árabe ou islandês, assim apreciar a forma-conteúdo sem se preocupar com o que é dito, ou pretende dizer.

Contudo, se eu aprender o idioma islandês, minha percepção passará a dar sentido à canção, pois se destacam quais assuntos, quais mensagens, em suma, o tema que é transmitido, se um lamento por perda ou frustração amorosa, se crise existencial, etc. A temática se destaca enquanto conteúdo – o que é dito.





A Obra


Em Z a Zero só há ‘forma estética pura’ não há ‘matéria semântica’, nenhum sentido, nenhum tema, muito menos ‘mensagem’ que o eu-lírico (que eu-lírico?) queira transmitir – só o poema visual-sonoro, desprovido de sentido ou lirismo. É o poema verbivocovisual anti-poema que o Concretismo idolatra.

É visual, é ritmo, é silabação, é entonação, daí diferir de prosa. Mas não é lírico, é mais expressionista, mais poema-coisa. Sendo poesia visual e sonora ela significa em si-mesma, nada além. É uma obra para exposição.

A dicotomia forma-conteúdo é implodida. Qual o conteúdo? Ora, a própria forma. O ‘poema’ diz tudo, pois nada diz. Não tem outra mensagem além de si-mesmo: nada há para decifrar. É um universo auto-referente, nada diz fora de si-mesmo.

Aqui o Poeta vem desfazer a própria poética. Ainda mais se lembramos que o poeta Wilmar Silva é o autor de obras diametralmente opostas, mais líricas, ainda que ásperas. “ANU” e “Cachaprego” são os exemplos mais polêmicos deste fenômeno. Obras que confundem pelo expressionismo, pela palavra-alada oralizada ainda que graficamente segmentada, truncada, mesclada, embolada. Tanto ANU quanto Cachaprego são gráfico-e-sonoridade, Concretismo e Poesia Sonora ao mesmo tempo.

Mas em Z a Zero, obra extrema, que se autofagocita, percebe-se a desconstrução da poética – tão ‘lírica’ quanto é possível os números que deslizam no painel de uma Bolsa de Valores.


Considerando, portanto, que em Z a Zero temos um exemplo de conteúdo-forma, vejamos este fenômeno formal. Encontramos duas seqüências inversas. Enquanto o primeiro ‘soneto’ é intitulado ‘z’, temos a vogal ‘a’ predominante, excessivamente alongada em cada verso. E a cada verso uma forma extensa de uma dupla de números é desconstruindo a omissão das vogais. Assim ‘zero’ torna-se ‘zr’ e ‘dois’ torna-se ‘ds’, e assim por diante até o 260 (‘dznts sssnt’) no soneto ‘a’, o último, onde a letra ‘z’ é prolongada a cada verso. 

É possível traduzir Z a Zero ? Eis uma interessante questão. Vejamos sua forma em francês, inglês e alemão. Seria ‘legível’? ou mero poema-gráfico?


Vejamos. Em français seria algo assim


z

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 0 9 zr nf
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 1 10 n dx
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 1 10 n dx
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 0 9 zr nf

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 2 7 dx spt
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 3 8 trs ht
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 3 8 trs ht
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 2 7 dx spt

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 4 5 qtr cnq
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 5 6 cnq sx
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 4 5 qtr cnq


com um detalhe (dx) pode ser tanto 2 (deux) quanto 10 (dix), com pronúncias muito próximas, inconveniente aqui.


Em english, o poema-gráfico seria

z
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 0 9 zr nn
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 1 10 n tn
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 1 10 n tn
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 0 9 zr nn

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 2 7 tw svn
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 3 8 thr ght
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 3 8 thr ght
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 2 7 tw svn

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 4 5 fr fv
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 5 6 fv sx
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 4 5 fr fv


Já, em Deutsch, temos

z

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 0 9 nll nn
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 1 10 ns zhn
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 1 10 ns zhn
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 0 9 nll nn

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 2 7 zw sbn
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 3 8 dr cht
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 3 8 dr cht
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 2 7 zw sbn

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 4 5 vr fnf
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 5 6 fnf schs
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 4 5 vr fnf



Temos poema-gráfico de tão ilegível. Poema-enigma cuja a solução vem a ser ele mesmo. Disposição formal per excellence. É intraduzível na medida em que a forma poética é intraduzível. Um soneto de versos decassílabos em inglês, um soneto em alexandrinos em francês, é impossível de traduzir para as suas respectivas formas, por exemplo, em português. (Tentem traduzir sonetos de Shakespeare e/ou Baudelaire e entenderão o que acontece.)


Ao poeta Wilmar Silva de Z a Zero está a faltar a dimensão da comunicação com o leitor. O excesso de expressão – ou de ‘experimentalismo’ - torna-se um monólogo – e há-de chegar o momento em que o poeta vai falar (e gemer sílabas) sozinho. Não apenas de expressão, mas de contato, até de comunhão e cumplicidade, se faz a interação poeta-leitor – e Whitman, F. Pessoa, Maiakovski que o digam.

Mas sendo o poeta multifacetado, de identidade estilhaçada, uma boa solução seria aquela encontrada por F. Pessoa ao se fragmentar em heterônimos.

Poderia o heterônimo ‘Joaquim Palmeira’ assumir a poesia AgroLírica? Assim o WS ficaria livre para outros experimentalismos biossonoros e neoconcretistas. WS poderia assim radicalizar nas explorações não líricas. Eis uma questão a se pensar.

Por outro lado o papel da Crítica não é estabelecer, ou fundamentar, uma Coerência. Muito menos um poeta coerente. Até porque não somos seres coerentes, e muito menos o artista, o poeta.


Em Z a Zero temos um excesso de expressão, repetimos. Um excesso de forma (a la formalistas, admitamos), a ponto de implodir o conteúdo (que devido ao hermetismo só é acessível, quiçá, ao próprio autor) como se nada a dizer – consoantes, vogais esticadas, números usurpam o espaço da palavra – que se encontra incompleta – irrealizada. Palavras subnutridas de vogais. O poeta vocaliza sílabas, geme, perde a fala.

Tanta coisa a ser dita – ou tudo já foi dito? Tudo já foi escrito? – e o poeta desperdiçar páginas e páginas, tinta e papel, excelente encadernação com consoantes, vogais engolidas e esticadas, e número que já cansam nossas retinas nos painéis das Bolsas de Valores. Assim Z a Zero zera a própria comunicação, mostra um quadro abstrato que é tudo em si, mas nada diz. Ou diz a inutilidade de todas as coisas –incluindo a Poesia.

Em Poesia a questão da forma-conteúdo é dissecada desde os formalistas russos e não foi superada pelos estruturalistas, nem apagada pelo New Criticism – que pretendia amalgamar forma-conteúdo em tudo. Até hoje temos o ‘problema da forma’ onde o poema diz tanto quanto um quadro – é inútil explicar, criar discurso. O poema É, o quadro É. Universo em si-mesmo, o Poema, enquanto Coisa, virou enfeite na parede.

Problema de semântica? A Arte precisa significar algo? Ser mensageira de algum conteúdo? Nem vamos cair na ‘falácia intencional’ de saber de há algo que o Autor intenciona dizer aqui. O Autor não tem que pretender dizer – ele diz. Mas dia nada. Se a comunicação se faz na interação Artista-Plateia, ou Autor-Leitor, aqui o Autor regurgita letras e números que merecem o bocejo, ou fornecem uma desculpa para se ligar a TV ou o PC. Se o leitor nada vê na construção poética, a poesia é um conjunto vazio. O poema nada significa. É zero.

Assim ‘Z a Zero’ diz o não-dito, expressa para nada expressar, desenvolve organicamente o tema do esvaziamento da poesia – acúmulo quase-soneto de consoantes, vogais engolidas ou alongadas, números enfileirados, em colunas, desfilando na página-monitor. Tal não-dito impossibilita qualquer ‘paráfrase’ (ou tradução, segundo vimos).

Para ser semiótico (e pedante) posso escrever que Z a Zero tem muita ‘enunciação’, muita ‘estrutura’, mas para ‘enunciado’, para ‘conceito’, ou ‘mensagem’, digamos, zero. Nada vezes nada. É mais poético contemplar os outdoors da avenida central ao crepúsculo na hora do rush. Sim, outdoors com forma-conteúdo que preenchem o nosso lirismo de asfalto na alma. Adoramos as luzes néons e os faróis que ofuscam nossas violentadas e seviciadas retinas. Somos nadas com cartões de crédito. Mentes sobrecarregadas de cifras, algarismos, logins, senhas.

Ao poeta de ‘Z a Zero’ prefiro o poeta agrolírico de “Arranjos de Pássaros e Flores” e “Estilhaços no Lago de Púrpura”, ou até o hermético “Cachaprego” (cujo hermetismo ao menos envolve palavras, e não números, vogais e consoantes), pois prefiro o poeta que une organicamente, lírico e áspero, forma-conteúdo nos poemas que envolvem e estrangulam o leitor quando não pretendem, mas dizem, mas do que dizer, dilaceram.



Jul/ago/11


por

Leonardo de Magalhaens




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LdeM

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