domingo, 20 de março de 2011

sobre ESTILHAÇOS NO LAGO DE PÚRPURA - de Wilmar Silva




sobre ESTILHAÇOS NO LAGO DE PÚRPURA (2006)
do Poeta WILMAR SILVA


O Eu-bestial diante do olhar do Outro


Dizem os embriologistas que o embrião humano, em seu desenvolvimento, passa por várias fases em que se assemelha aos animais mais primitivos na Escala Evolutiva, como peixes, anfíbios, reptéis.

Dizem os psicólogos que a noção do Eu, quando da infância, engloba todo o mundo, tudo é uma projeção-do-Eu, e que o Eu-social é formado pela interação com os Outros-Eus, a partir da aceitação destes Outros-Eus. O narcisismo propicia, assim, a formação da Identidade. Somos algo a partir do olhar do Outro.

Dizem os Poetas que a linguagem é tão-somente uma forma de deixar vazar, transbordar mesmo, o Eu amordaçado pelas máscaras da Identidade.

Ciências, pseudo-Ciências e lirismos à parte, todas as afirmações fazem algum sentido. Quando o desenvolvimento do ser humano ainda conserva algo de animalesco, de selvagem. Ou quando o Eu nada mais é do que reflexo do Outro, quando vivemos querendo agradar gregos e troianos. Ou quando a fala poética nada mais é do que desabafo torrencial de amores e desafetos, de dores e prazeres.

O Poeta torna-se o animal que esbraveja suas intimidades para uma platéia, uma quantidade incalculada de Outros. Assim se vê o Eu-lírico do Autor Wilmar Silva, em metamorfoses de um Eu estilhaçado em várias imagens sedutoramente bestiais e jogadas contra o olhar do Ouro, espelho e “leitor hipócrita”, narciso-duplo e “meu irmão”.

Um fluir de imagens do corpo em si-mesmo, um corpo plenamente sondado e desvelado, integro e sacralizado, selvagem exaltado. “É em nossa natureza selvagem que melhor nos restabelecemos de nosso movimento anti-natural, de nossa espiritualidade...”, escreveu F. Nietzsche em “Crepúsculo dos Ídolos”. Corpo não menor que a alma, não uma prisão da alma, mas corpo-alma.

Em ensaio anterior, abordamos o egocentrismo – o Eu-onipresente – em “Estilhaços”, contudo tal perspectiva sofre m abalo quando percebemos que nos 390 versos, 33 versos fazem referencias ao Outro, desde o 1o. Verso: “eu quebrado por você sou estilhaços no lago de púrpura

O Outro surge como um Receptor do discurso, seja o Ser-Amado, seja o Leitor-Cúmplice, um Outro que é a origem e o destino de todo o discurso poético,


você é este fogo que me entranha” (12)

ou

mas agora no rubor de quem escreve um tormento
sou eu o mesmo que vem de longe em busca de você/
você tão febril: eu mais febril ainda/ eu sozinho” (17)


Um Outro responsável pelo desassossego do Eu, que inclinado sobre o lago encontra a imagem do Si-mesmo, o Narciso poético de Identidade estilhaçada. Sua identidade bestial a “cavalgar poemas” (28), em múltiplas formas que personificam seus estados emocionais.

Nas suas metamorfoses algo barrocas (ainda que o Eu-lírico se declare “medieval”/”medievo” (9), “faço medieval este poema que diz vitupérios” (5)), o lirismo adquire transtornos imagéticos bestiais, sendo ave, sendo réptil, sendo fera, formas andromorfas- zoomorfas, abrigo de invertebrados (numa imagem à la Lautréamont, “tarântula aninhada nas axilas” (11), besta selvagem sem rumos.

Mutante e delirante, o Eu se polimorfiza em “cavalo com escamas nas crinas” (1), “pássaro/ de asas nos braços” (2), “um lobo eu faminto” (3), “eu gambá” (4), “lontra que sou eu” (4), “pássaro azulão que perdi o bico” (10), “tarântula aninhada nas axilas” (11), “mula que debate bestas nos olhos” (11), “cavalos selvagens” e “cavalo indomável” (16), “colibri que diz líricas” (23), “cavala com toda a brida” (29), em conjunções 'cubistas' de pesadelos os mais bizarros, de um ser humano às voltas com seu interior animalesco, indomesticado, indomável, sendo e comunicando- se com todas as bestas-feras do campo tal um louco Nabucodonosor.

Nessa perda de referencial, diante do outro, matriz de toda a mestiçagem poética, resta apenas os fragmentos poéticos, os próprios versos. Estes versos – o corpo do poema – são a ligação possível entre o Eu e o Outro (“você”), assim em explícitos trechos metalinguísticos, “sou este almíscar que fenece nos poemas” (4), “faço medieval esse poema” (5), “enredo uma palavra ou arrefeço meu poema” (8), “eu e minha fazenda de poemas a seus pés” (19), “um colibri que diz líricas apenas para você” (23), “um ser // que engendra poemas” (26), “cavalgar a noite é como cavalgar poemas // que escrevo com sangue neste lago de veneno/” (28)

Ponte de ligação sobre o abismo que separa os seres, principalmente os entes amados, os outros-Eus desejados, o Poema surge como referencial em si, única fala única solução. Não é um poema sobre algo, mas é um poema que é algo – confunde Emissor e Receptor, perde Referenciais, perverte o Código.

Fragilizado pela própria Mensagem, o Eu se perde em carinhos e ameaças, a esbravejar com um Outro dentro-fora, espelhado, “você ave de asas indóceis, indócil e fugaz” (15), “você tão febril: eu mais febril ainda” (17), “você que anda com um pássaro preso” (22), “você que é letal como uma ponta de punhal” (22), “você que vem com uma manada de gumes / lâminas (24), “quem é você que diz lançar meu corpo sem alma” (30), pois o Outro pode não passar de um espelho turvo, em águas revoltas, em lago manchado de sangue. “A boca fala aquilo do que o coração está cheio”, diz um trecho bíblico, e aqui o Eu está farto de si-mesmo na mesma proporção em que ama/odeia o Outro.

Quer-se dizer que para o Eu o Outro não é indiferente. O Outro pode ser o Inferno (como dizia uma peça de Sartre), mas também pode ser um Paraíso, Abrigo, derradeiro Refúgio. “você com suas íris, retinas, você com olhos // que me olhem e descubram íris, retinas” (20), quando ainda resta o olhar do Outro e uma possível compreensão, “sou este mulo que apenas você há de desvendar” (11)

Ciente de sua imagem – aquela que é sempre no olhar do Outro – o Eu-lírico em suas andanças de metamorfoses nada mais faz do que “cavalgar o poema”, nada mais do que estilhaçar-se em versos, em imagens embaralhadas de si mesmo, possuidor e posse, vítima e carrasco, face e bofetada, pele e punhal, Narciso e lago espelhado.



Jul/07



por
Leonardo de Magalhaens



quarta-feira, 9 de março de 2011

A Miséria Manda Lembranças (conto)




A MISÉRIA MANDA LEMBRANÇAS



     Minha querida Lídia não mostra-se mais tão animada, após contínuas considerações sobre o seu desânimo, semelhante a síndrome daqueles mau-humorados que ainda
mais ranzinzas se tornam, caso ouçam comentários sobre mau-humor crônico.

     Lídia recebe-me, assim que abre o portão, com aquela carranca depressiva a ponto de atemorizar-me, eu ligara antes, naquele entardecer de sábado, em gentil convite para o casamento de uma amiga de Cíntia, minha irmã, Se apronte logo, querida. Daqui a pouco, apareço aí! Sim, é isso. Aparece um casamento,  há um convite, uma festinha restrita, e Lídia mostra enfado, a incomodar-me com o que ela denomina o meu “tom imperioso”, e eu preciso apaziguar os ânimos, “Querida, sem traumas! É só se aprontar, daqui a pouco eu chego, é claro, se você quiser ir...”

     Não mais que uma hora e lá estou. E aguardo ainda quase outra. E Lídia, ainda que toda magia e perfume, fala pouco, responde por monossílabos e sai, sem ao menos se despedir da família, e espero não terem se degladiado.

    No carro, distâncias se sucedem, ela em silêncio, e, se responde, é ainda em monossílabos, a voz sumida, mas não exatamente irritada, e sim apática, algo sonâmbula.

     Preciso abastecer a máquina. No primeiro posto, exigo logo a aditivada e aguardo o trabalho dos frentistas. O moreno que atende tem umas olheiras medonhas e anda a passos miúdos, certamente sem paciência para levantar os pés, e o outro é um branco, alto e magrela, fartamente agasalhado, a esperar um frio noturno, enquanto o moreno se limita ao uniforme, em gestos pré-determinados, robóticos até, e penso se, um belo amanhã, não serão substituídos por robôs ou andróides.

     E o silêncio de Lídia, ali ao meu lado, mas assim distante, me incomoda, e então ligo o rádio, bem discreto, e o Rolling Stones entra sem pedir licença, “I  can’t  ge t no satisfaction!”, grita o indiscreto Mick Jagger e lídia até se assusta, num frêmito brusco, mas tudo bem, ela estava dormindo certamente.

     Os frentistas conferem os valores, destacam cédulas e eu recebo o troco, e estou pronto para acelerar, quando surgem dois garotos, não mais que uma década de sofrimento, mas com olhares de uma temporada milenar no inferno, “Moço, compra um salgado pra ajudar a gente!”, diz o que parece ser o mais velho, e o mais novo segura um frasco de catchup na mão direita, e um de molho de pimenta, na esquerda, e olha todo pedindo (ou exigindo) piedade, como se dissesse, “ o senhor precisa ajudar a agente, sabe, senão a gente cresce e vira tudo bandido!”                                                                  

    Parece que Lídia já observava o trabalho dos meninos, a abordarem os outros carros, e comovida, até exaltada, percebo, suplica que eu ajude os pequeninos, “Ei, campeão”, eu digo, “deixe-me escolher! Empada ou coxinha?”, e o menorzinho oferece o catchup e o molho de pimenta, mas só consigo ouvir Lídia, toda dolorida, “Sobrevivem  assim! Ah, Alonso, é de perder o tesão!”

    Mastigo o salgado, e digo “não era pra ser assim.”, mas ela agora está dada à oratória, “você acha que esses garotos algum dia entenderão o significado de cidadania, ou de dignidade?”, eu, ainda mastigando, “É lamentável.”, e ofereço a empada, ela não aceita, “Ah, é de perder o tesão! Vamos embora.”

    Não é uma ordem, mas foi obedecida. Não fomos a casamento algum. E fui obrigado a engolir também a empada! Ah, eu mereço!




         Leonardo de Magalhaens


         http://leoleituraescrita.blogspot.com/

quarta-feira, 2 de março de 2011

sobre A Infernização do Paraíso - de Rodrigo Leste




Sobre “A Infernização do Paraíso
(Mano a Mano, BH, 2010)
do poeta e ator Rodrigo Leste


“O paraíso está longe, o inferno aqui dentro”


Um Preâmbulo histórico


Vivemos numa nação que tem tudo para ser rica, próspera, desenvolvida e auto-suficiente. Não se trata de uma ilha, não tem um clima único, não é limitada por inimigos em potencial. Não sofre com terremotos, furacões, tufões (ainda que enchentes e deslizamentos sejam comuns e trágicos). Tem uma variedade incrível de ecossistemas e riquezas minerais. Tem acesso fácil  às fontes e montanhas, é farta de chapadas e planícies, e é banhada pelo mar.

Na época do 'achamento' esta terra chegou a ser considerada o 'Paraíso' terrestre. Haviam lendas na época sobre uma terra paradisíaca onde o homem era livre e as riquezas brotavam do chão. O trabalho não era tortura e o prazer físico era livre de culpa. Então os navegantes, advindos da vetusta Europa, começaram a achar que devia ser por 'estas bandas.'

Quando encontraram nativos nus e festivos, e uma quantidade exorbitante de riquezas vegetais (pau-brasil) e minerais (ouro, diamantes), os europeus ajoelharam-se em lágrimas crendo-se no próprio Éden terrestre, no que restou da felicidade num mundo tão decrépito – aliás, por obra do próprio ser humano.

E o Brasil prometia. Vastidão de terras, fartura, clima tropical, povos vencíveis. Várias nações disputaram isso aqui – vieram franceses, holandeses, espanhóis, ingleses – até que os portugueses conseguissem carregar essa 'mina de ouro' para o trono lusitano. Dominar através de um imperialismo cruel, um colonialismo perverso, eis a decisão dos soberanos de Lisboa.

Dividido, fragmentado, rasgado, subjugado por capitanias, províncias, governos-gerais, este país tornou-se gradativamente num paraíso assombrado, num paraíso infernizado, onde a ambição do lucro – através da exploração mais abjeta e burra – conseguiu sugar a fartura da terra ao mesmo tempo em que empobrecia o povo.

É que nada ficava aqui a ser distribuído para o bem-estar coletivo. Nada disso! Tudo era embalado e embarcado nas naus de Sua Majestade rumo a Lisboa e, de lá, rumo a Londres. Sabemos. Era um negócio. Leva quem paga mais. E nesse jogo os brasileiros sequer eram consultados. Os luso-brasileiros que faziam as negociatas formaram uma camada de 'homens-bons' que dominavam o comércio e sufocavam os interesses  do resto do povo - eis uma característica nacional que pouco mudou nos últimos 500 anos.

Para dominar um povo, nada mais fácil do que dominar a Elite deste povo. A ambição da Elite – ao dominar o próprio povo – faz o resto. É assim que os britânicos dominaram a África do Sul, a Índia, a Birmânia, o Egito, o Sudão; é assim que os franceses dominaram metade da África e a Indochina; e os norte-americanos hoje dominam o Oriente Médio.

A transformação do Paraíso em Inferno foi um dos principais temas nos escritos do historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda – autor de obras essenciais tais como “Raízes do Brasil” (1936) e “Visão do Paraíso” (1959) – a indagar como uma terra tão promissora virou este país explorado e avacalhado, decepção para todas as gerações conscientes.

Este é também um dos temas centrais na obra “A Infernização do Paraíso” do poeta e ator Rodrigo Leste, que indignado não poupa esforços para denunciar as explorações – evidentes e ocultas – que minam o nosso destino. O que é a exploração e como se processa. Quem lucra e quais são as vítimas da exploração. Qual deve ser a atitude do Poeta diante da exploração.

O tema – ou o conteúdo – desta obra está acima de qualquer crítica. É de fundamental importância a presença e a voz ativa dos poetas e dos literatos que se preocupam com questões sociais – ao contrário de se elevarem em 'torres de marfim' ou 'cultivarem as flores do próprio jardim' – o que gera apenas uma poesia individualista, egocêntrica e alienada.


Uma vez elogiado o conteúdo – ou a mensagem – vamos nos concentrar na Forma, na Estética, do que se pretende 'poema' Infernização. Terá o Poeta alcançado uma forma ideal para divulgar suas ideias? Terá alcançado êxito em  se expressar de modo a comover os leitores? Onde a Arte e onde a Mensagem devem 'operar' em consonância? A Poesia veicula algum 'conteúdo' além de si-mesma?



Lirismo e Descompassos



É inquestionável que o Poeta tenha algo a declarar. A preocupação de veicular um conteúdo é evidente desde a capa, desde o título (cujo subtítulo é “Mina de Morro Velho: As Vísceras Douradas da Maldição”), como uma espécie de acusação, ou desabafo referente a exploração do homem pelo homem, e a exploração da Natureza pela ambição humana.

É justamente sobre os descaminhos  do ouro que eu quero falar” é a introdução ao assunto: saberemos mais sobre os processos de exploração e vitimização referentes ao garimpo e suas mazelas às populações. Há todo um trabalho de pesquisa e seleção de informações, além de uma 'narração' indignada por parte do eu-lírico.

Na tentativa de 'narrar' o drama e de forma o mais 'poética' possível, cria-se uma tensão entre o 'narrativo'  e o 'lírico', notamos um descompasso entre forma e conteúdo, estética e tema.

Se o tema / conteúdo / mensagem merece nota 10, com toda uma patente indignação diante da exploração do homem pelo homem, da exploração da natureza pelas atividades humanas visando lucro – uma indignação de cidadão consciente, portanto – a forma poderia ser antes prosa ou drama do que poesia ...

Não é poesia – poderia ser prosa, conto ou crônica – a manter o mesmo nível de conteúdo. As partes mais líricas podem ser apontadas – ao mostrarem recursos de ritmo e sonoridade – segundo notamos nas páginas 25, 34, 38, 39, 42, 53 a 55, 63 a 67, 69, 71 e 72. É poético justamente quando o 'jogo de palavras' – com suas 'figuras de linguagem', em recursos de metáforas, enumerações, alegorias, descrições, metonímias - ressalta-se sobre o que é dito, por exemplo em

Tatuagens de fogo
me acompanham pelo resto da vida
(p. 25)


ou

As botas bandeirantes
esmagam o orgulho dos carijós,
goianás, guarachués, bororós,
cataguás, caxinés e outras tribos
que viviam nestas montanhas.
Contra a pólvora, o chumbo e os canhões,
seus tacapes, lanças e flechas
pouco podem.”
[...]
(p. 39)

ou ainda

“Meu corpo era
feito de gigantescas
e altivas montanhas
adornadas por exuberantes matas.
Úmidos vales banhados
por caudalosos rios.
Fontes e olhos d'água
brotavam
em todas as partes.
Já fui perfeita,
sagrada comunhão
de espírito e matéria.
(p. 64)


A Estética não pode se curvar aos imperativos da Mensagem – nem poetas panfletários assim fizeram. Basta ler Maiakóvski, Brecht, Neruda, Ginsberg, Cassiano Ricardo, Drummond de Andrade, F. Gullar, Moacyr Félix, para citar alguns. A poesia não pode abrir mão de ser 'poética' para servir a um dado conteúdo. O inverso é aceitável - que o conteúdo seja adequado ao formato poético. (Enquanto a prosa aceita qualquer conteúdo, até o lírico)

A narratividade, o tom jornalístico – a citar locais, datas, nomes, cifras, fatos, dados outros – em-si é prosaica, e consegue destruir o possível lirismo a nascer da 'escolha das palavras'. Não havendo métrica nem rima, nem ritmo, nem 'escolha de palavras' não há qualquer lirismo.

(Nesta minha leitura, é patente que considero os mesmos parâmetros que J. L. Borges usou para ler “Canto General” (1950, no Brasil: “Canto Geral”) de Neruda, onde o argentino argumenta que o chileno perdeu o foco poético ao desejar veicular conteúdo, no caso uma historiografia das agruras da América Latina)

O gênero mais próximo que artisticamente poderia se prestar à semelhante conteúdo é a Literatura de Cordel. Em suas formas mais coloquiais, para fácil compreensão dos leitores/ouvintes e fácil composição do autor, o Cordel abre espaço para um estética poética que se permite narrar. Seria uma versão simplificada – não inferior! - às Epopeias de outrora. (Que aliás nasceram de uma oralidade, de uma tradição de poemas-canções transmititdos de geração a geração, através de bardos, aedos, músicos-poetas)

A estética do Cordel aceitaria o 'tom narrativo' – o que resguarda um aspecto de épico – que o conteúdo de Infernização apresenta, e daria uma forma – os versos de 7 sílabas, as estrofes com 6 (ou 7) versos, os padrões de rimas AABCCB ou xAyAzA. O Cordel abrigaria em sua forma um conteúdo narrativa 'contido' e 'disciplinado'.

(Sem esta 'represa' em versos, teríamos os 'versos longos' - vide a estilística 'verborrágica' de Walt Whitman e de Ginsberg, e de Fernando Pessoa-Álvaro de Campos - ou a 'prosa poética' - vide Baudelaire, Rimbaud, Lautreámont, dentre outros.)

A quebra do ritmo – o que cria uma 'fala solta', logo prosaica – é um dos motivos da ausência de poesia – ainda que um verso, ou um conjunto de versos, ainda resguarde 'poeticidade'. O uso de 'versos brancos' não segue regras de métrica ou rima, mas de Ritmo – ou então se dispensa o versos e escrevemos em 'poema em prosa' ou prosa poética (o lirismo passa ao contéudo e a 'escolha das palavras', em redes de significantes-significados)


Dramaticidade entre poesia e prosa


Ousamos sugerir: semelhante conteúdo se adapta mais a crônica ou drama – havendo personagens – pluridade de eus-líricos. Se crônica, há a voz do narrador a apresentar os personagens. Se drama, os personagens se apresentam no ato discursivo. Ambas as técnicas são encontradas em Infernização.

Vejamos, nas páginas 21 e 22 temos uma voz que se localiza no tempo, “Estou no ano de 1814 e em seguida se mostra um 'coletivo', “Somos escravos / Trabalhamos na lavra [...]”, na página 23 temos a voz do chinês (que pode ser o mesmo de 1814...) - “Sou chinês / Chego neste fimdemundo / trazido pelos ingleses.”

Também a voz do índio “guerreiro carijó” (na p. 38), “paramentado e pintado pra guerra”, depois a voz do mineiro que se intoxicou, “Estou na UTI de um hospital” (pp. 47 a 50). Há o depoimento de uma senhora idosa (pp. 62-67) que pode ser lido de duas formas - conotativa ou denotativamente – ou seja, a velhinha é um vítima, ou ela é uma figura alegórica para a Mãe-Natureza.

Já fui rica, meu filho, / muito rica.” é o que discursivamente é razoável para um ser humano, o que não é em “Meu corpo era / feito de gigantescas / e altivas montanhas / adornadas por exuberantes matas.” ou “Arrancaram tudo de mim; / minhas matas viraram carvão, / a cal calcinou minhas células.”

Temos a voz narrativa que se dirige aos leitores e aos poetas que inspiram referências (“Sim, Dantas Mota” ou “É, Drummond,...”), uma voz que tenta dar 'coerência' ao conteúdo textual que é feito de uma 'colcha de retalhos' tecida na pluralidade de vozes – as vítimas reais e potenciais da 'infernização do paraíso'.


O que mostra que a dramaticidade tem todo um potencial aqui para reformular a poesia ou dela se desfazer. O drama não precisa ser em verso, não preciso ter métrica e rima. Ainda que grandes dramaturgos – Shakespeare, Molière, Gil Vicente, Wilde, Beckett, etc – tenham usado (e abusado) da fala poética em seus dramas. O que estranha ao 'bom senso' da plateia – ainda mais hoje em dia – é que as personagens se amem e se odeiem em versos, e nós – seres comuns - não falamos em versos!

Por outro lado, a dramaticidade em si-mesma não é necessariamente lírica. Podemos registrar dramas anti-líricos – ou por tratarem do cotidiano ou por serem mesmo 'iconoclastas'. A Dramaticidade lírica já foi fartamente estudada, afinal 'autores clássicos' não faltam.

Entre a prosa e a poesia, o drama mantem-se em 'equilíbrio instável'. Talvez seja essa um dos pilares do fascínio: dramatizamos um pouco do que somos (prosaicos) e do que desejamos ser (líricos). Vivendo entre a 'realidade' e as expectativas, tentamos nos localizar através de personas outras (ou 'máscaras'), onde podemos ora se emocionar com a figura de Quixote – pois somos algo quixotescos – ora se comover com um Hamlet – pois somos um pouco Hamlet também.

(Também talvez isso explique o fascínio dos heterônimos de Fernando Pessoa: com suas personas poéticas ele cria um híbrido poesia-drama, cada poema a fala de um personagem de uma peça que chamaríamos de “Vida das Múltiplas Pessoas de Pessoa”. Temos o caipira lírico em Alberto Caeiro, o médico classista em Ricardo Reis, o engenheiro futurista em Álvaro de Campos, o burocrata meditativo em Bernardo Soares...)

As vozes das testemunhas compõe o dramático em “Infernização do Paraíso” e salvam a obra. Se não é exatamente poética, ela passa o 'recado' nos sensibilizando com as vozes plurais: quem realmente sofreu, que foi vitimado. O Poeta – que sabemos ser ator e contista – perdeu a oportunidade de escrever uma peça dramática ao estilo Nelson Rodrigues (ou Dias Gomes, ou Suassuna,  a depender do quão 'alegórico' ele pretenda ser). Mas aqui – não há dúvidas – trata-se mesmo da 'vida como ela é'.


jan/fev/11



Por Leonardo de Magalhaens




mais sobre o poeta, contista e ator Rodrigo Leste