Conto
A Aposta de Pascal
1
Um mês antes de morrer, o Sr. Seixas nem pensava em morrer. Vivia da casa para o serviço e do serviço para casa. Pagava seus impostos, jogava xadrez com os amigos, mandava sonetos para as amigas, jantava aos sábados na casa da filha, e almoçava aos domingos na casa do filho.
Vivia bem. De nada fazia reclamação. Vez ou outra criticava o governador ou o presidente. Tinha parentes militares e se dava bem com todos. Os evangélicos da família é que criticavam o catolicismo esporádico do patriarca.
Sr. Seixas era gerente de uma empresa de exportação, desde a década de 80, e poderia ter montado a própria empresa, mas não o fez, por falta de adaptação. Quero dizer que não poderia se adaptar a outra rotina. E, no mais, era quase um sócio.
Seguia de bom ao melhor, o Sr. Seixas. Até que um dia, ao acordar, sentiu pontadas no abdômen. Será que não bebi água? Será que é pedra nos rins? Ou uma hérnia? Vá saber...
Bebeu bastante água. E soltou uns ares... Talvez fosse um problema de gases ... Teve um alívio naquela aflição. Tinha que se livrar os refrigerantes. Foi até a geladeira e pegou a garrafa gigante de C-C. E despejou tudo na pia! (Depois a esposa certamente ia dar um grito!) O Natal a C-C comprou... Até o bom velhinho o Papai Noel mercenário estava na folha de pagamento da C-C!
É que o Sr. Seixas não gostava de Natal. Se seguia a época e suas boas festas era por causa de tradições. Nem sabia mesmo se o Salvador tinha nascido num 25 de dezembro... Quem terá inventado esta? Um CDL da vida ...
2
Foi pouco antes da época do Natal que o Sr Seixas ficou doente. Suas dores abdominais aumentaram. Eram os rins? Uma hérnia? O apêndice inchado? Uma tripa entupida?
Começou a romaria aos médicos. Exames de sangue, urina e fezes. Exames que ele detestava, simplesmente detestava! Provas dantescas da indignidade! Sentia-se exposto num microscópio... Alguém analisava suas entranhas!
Ele seguia com o trabalho, mas os patrões não gostaram das faltas. Neste mês o senhor faltou duas vezes. E eis os atestados. O senhor foi embora mais cedo na terça-feira? E explicações e justificações. O Sr. Seixas detestava se explicar. E mais atestado na mesa do RH.
3
O Sr. Seixas cismou que tinha um tumor e que pouco tempo lhe restava. O que faria no seu último mês? Uma viagem às praias cariocas? Um retiro nas montanhas mineiras? Uma odisseia internacional? Pampas, Chile, Titicaca, Machu Picchu, canal do Panamá, Miami...
A esposa achava o marido meio deprimido, era até exagerado, coisa de hipocondríacos... Que ele buscasse botar a mão na consciência e fazer um pacto com o Pai Divino. Deixasse esta vida de estresse, e buscasse com Deus uma cura. De repente, a esposa do Sr. Seixas se redescobria cristã.
O Sr. Seixas não apedrejava a Santa Igreja, mas também não era de ir às missas. Não era devoto nem era do clube dos ateístas. Ele participava de missas e novenas e casamentos e batizados. Era sua vida cultural. A Bíblia? Só lia os trechos das liturgias... Não se preocupava. Bíblia é coisa para padres.
Foi depois de um tempo, então o Sr. Seixas começou a pensar em Deus. Que destino ele teria se estivesse sob um olhar divino? Acredito em Deus? Em que Deus eu acredito? Se não acredito em Deus e, ao chegar no outro lado, Deus não existe, é o fim. Mas se Deus existe, estou em apuros. Melhor acreditar que Deus … e não se surpreender lá diante do Trono! Acredito em Deus? Ou é prudente acreditar em Deus?
4
Depois de fazer os exames todos, e reunir os resultados, o Sr. Seixas marcou o retorno. Dia do bendito (ou maldito?) diagnóstico. Hérnia, apêndice, rins, tripas traiçoeiras?
Ele seguia com ares perturbados. Não quis ir de carro. Era só uma lotação só. Desceu no ponto errado, mas tudo bem. Foi só um quarteirão...
Andava olhando tudo, como se precisasse escrever um relatório. Ele viu logo um homem falando ao celular. E uma criança chamando a mãe na porta do correio. E depois uma mocinha fazendo cara feia para o namorado (?). Mil coisas aconteciam ao mesmo tempo. O Sr. Seixas descobrira o Agora. Tudo ao mesmo tempo agora.
Ele viu um menino que pedia esmolas. Ele viu uma moça de cabelo afogueado que corria atrás de um ônibus. Ele viu, e nunca saberá para onde foi, uma ruiva de blusa branca numa bicicleta rosa. Ele viu a sombra da torre da igreja matriz. Ele viu um pombo que pousou numa varanda. Ele viu carrinho de supermercado debaixo de uma árvore: ao lado um ser semelhante ao homo sapiens.
No entanto, infelizmente, o Sr. Seixas não viu um carro que descia a ladeira na lateral da praça matriz. Um carro mascarado, cinza brilhante, de marca japonesa, guiado por um motorista sem noção, que nem percebeu o sinal fechado. Assim o Sr. Seixas nada percebeu, só o fim do jogo. No fim, o Sr. Seixas perdeu a chance de saber o verdadeiro diagnóstico.
Dez 24
Leonardo de Magalhaens
poeta, contista, crítico literário
Bacharel em Letras FALE / UFMG
https://www.youtube.com/@leonardodemagalhaensliteratura
.: