SHAUN
TAN
[Australia]
A
MÁQUINA DE AMNÉSIA
Estou
de pé no meio da nossa rua. Ao longe vejo um enorme objeto de metal,
uma espécie de máquina, arrastada pela rua na caçamba de um
comprido caminhão. É aquele fim de semana longo e abafado antes da
última eleição, e todo mundo parou de lavar carros, de ler jornal,
de assistir a esportes ou de reformar os banheiros, para sair e
curtir o inexplicável espetáculo. E para ganhar sorvete grátis,
distribuído em uma van colorida que está sempre por perto. Ela toca
uma musiquinha grudenta, que sei já ter ouvido antes.
Um
espectador à minha frente diz: “É isso que faz você apreciar a
beleza da engenharia humana”.
A
máquina agora está tão próxima que tapa o sol, e sou forçado a
concordar com ele. Ela é pesada, impõe respeito, está além da
compreensão dos contribuintes comuns.
Mais
à frente, o caminhão dá ré para entrar no parque sem árvores
atrás do nosso shopping center. Uma equipe de operários já está
esperando com um monte de guindastes e cabos, e partem para deslocar
a monstruosidade para uma zona de grama demarcada com linhas oleosas.
Ouve-se uma cacofonia de marteladas e soldas. Uma grande placa é
afixada nas grades do muro: “MANTENHA DISTÂNCIA”. De
repente, o silêncio. Não se vê mais os operários. Percebo que já
está escuro e que todos foram para casa jantar e assistir ao
noticiário.
Nas
profundezas da estrutura de metal, luzes piscam e há um estranho
zumbido elétrico, uma tênue vibração que sinto nos dentes do
fundo, e outro estranho ruído, como o dos carros correndo à noite
na autoestrada. Ao longe, um cachorro late.
Só
me recordo disso ao ler uma matéria no jornal sobre os resultados da
eleição, com a previsível vitória do governo,
e outras matérias sobre controle da mídia, finanças públicas
perdidas, corrupção e assim por diante, todas muito chatas. A maior
parte das páginas traz um anúncio todo colorido de um novo sorvete
rosa-choque.
Voltando
da minha ida semanal ao supermercado, decido fazer o caminho mais
longo, pelo parque, por pura curiosidade. Claro que não há nada
para ver, apenas um quadrado vazio de grama recém-cortada envolto
por uma cerca de arame farpado, com uma solitária placa dizendo
“MANTENHA DISTÂNCIA”. Acho que isso sempre esteve lá,
mesmo que eu não consiga imaginar o motivo.
Agora
estou de volta à cozinha, ouvindo os ruídos ao longe da TV alta do
vizinho (mais um programa de atualidades com uma musiquinha de
abertura grudenta) e a leve agitação do trânsito noturno; um mar
de burburinhos.
Estou
tentando recordar meu sonho com a coisa, a máquina, mas mesmo agora
os detalhes me escapam e minha mente se parece cada vez mais com uma
sala vazia.
Só
consigo pensar no sorvete de casquinha bem aqui na minha mão,
derretendo. Era pra ser de morango ou de framboesa?
Shaun
Tan
“Contos
de Lugares Distantes”
(Tradução:
Érico Assis. Cosac Naify, 2012, 104 páginas)