terça-feira, 24 de setembro de 2024

Conto. Fim de expediente. No bar. by LdeM

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Conto


Fim de expediente. No bar.



    Ontem conheci o Silvano. No bar mesmo. Não lembro de ter visto o cara por lá antes. Mas parece que o Silvano já me conhecia. Um cara bem tranquilo, bem zen, fala pouco, assim sempre calmo. 


    Eu estava no bar desde o fim do expediente na gráfica. Vi o Jailson na praça e seguimos pro boteco. Lá tem uma mesa no segundo pavimento que a gente sempre 'aluga' até o bar fechar. 


    Eu continuava com umas dores no peito e que não passavam. Eu até me acostumava. Devia era procurar um consultório ou posto de saúde. A gráfica não pagava plano de saúde para funcionários. O pessoal do escritório é que tinha grana pra pagar por conta própria.


    Acontece que a gente só ficava bebendo, ouvindo um Lulu Santos ou Adriana Calcanhotto, e contemplando a paisagem: as belas que saíam do serviço ou seguiam para a happy hour


    O tempo passava e já era de noite. O primo do Jailson, o Ribamar, chegou e ficou tagarelando sobre olimpíada em Paris. Eu lembrei da Mulher Maravilha correndo numa maratona....


    A dor no peito ora ia ora voltava. Realmente eu estava precisando fazer uns exames. Melissa bem que dizia. É nessas horas que eu me arrependia de ter deixado a Melissa. É que a gente brigava muito... Ela vivia me chamando de bebum e outros deboches. Teve uma vez que eu desci a mão. Foi a briga final. Eu fui embora. 


    O Jailson queria ver as Hildas na descida da rua da Bahia.... O Ribamar parece que esperava alguma conhecida aparecer ali. Eu fiquei sentado bebendo e ouvindo o Milton Nascimento. Amores perdidos etc. Pelo menos eu tinha meus amigos.



    De repente, eu estava no chão. Acho que tinha caído da cadeira. Será que cochilei? Ou eu estava levantando para ir ao banheiro?


    Lembro de ouvir as vozes do Jailson e do Ribamar me chamando. Então eu vi uma mão e alguém ao meu lado. O Silvano. Pessoa simpática que me ajudou a levantar. 


    Onde os meus amigos? Devem ter se preocupado e descido pra chamar alguém, tipo o dono do bar... Só o Silvano ali tentava me acalmar . Que eu me sentasse... Se tinha melhorado a dor no peito... Como ele sabia?


    Acho que ele deve ter percebido quando eu caí... Devia estar apertando o peito. Sim, uma punhalada no coração! Saudades de Melissa? Eu não era de ficar sentimental assim...


    Silvano sentou-se na cadeira ao lado na mesa, onde antes estava o Jailson. Ele falou pouco e muito calmo. Se a dor tinha passado que eu me levantasse, pois andar me faria bem. 


    Assim descemos a escada e saímos na rua. Quem passava nem me olhava na cara. Também não me lembrava do pessoal. Vi o dono do bar, o Jonathan, fiz um gesto, mas ele não me viu. Também tanto freguês nesta hora...


    Saindo na rua andei meio desorientado. O Silvano explicou que meus amigos logo voltariam. Eu queria esperar? Disse que sabia ir pra casa. Não adiantava esperar carona. Todo mundo bêbado só voltava de táxi ou Uber. 


    Estranho que não vi qualquer conhecido. As pessoas passavam e os ônibus passavam. Não estava tão bêbado mas me sentia andando em estopa, com os passos incertos. 


    Atravessei a praça e desci a avenida. Eu morava perto do shopping no apartamento da minha mãe e da minha irmã. Precisava avisar que chegava mais cedo. Onde estavam as minhas chaves? 


    Por um momento, agora me lembro, antes de atravessar pra praça, vi os vultos dos meus amigos... Mas eles não me viram. Aliás, quem me conhecia por ali, naquelas esquinas? 


    Não sei quanto tempo andei. Estranhei o Silvano me acompanhar. Ele disse que também foi morador da região. Até conhecia a minha mãe e minha irmã. É mesmo? Não conseguia me lembrar do Silvano... 


    Era noite e todos aqueles faróis me deixavam entorpecidos. Devia mesmo estar muito bêbado... Parecia que eu flutuava... A dor tinha sumido... Nem sentia minha respiração... 


    Quando chegava ao prédio, vi minha mãe e minha irmã que saíam apressadas. Entraram num táxi e nem me viram. Por que isso? Pareciam preocupadas... O Silvano viu tudo e nada disse. 


    Ele parou diante do prédio e ficou contemplando um apartamento com uma janela acesa. Será que era lá que ele tinha morado? Se não me engano, a dona lá tinha ficado viúva na época da pandemia.... O marido morreu quando a pandemia já estava acabando...


    Por que aquele desconhecido me acompanhava? Seguia mesmo para o mesmo quarteirão e mesmo prédio? Silvano se aproximou da portaria e lá dentro estava o porteiro falando ao telefone. Ninguém entrava e ninguém saía. 


    Tanto eu quanto o Silvano a gente hesitava em entrar. Não sei o porquê. Aliás agora eu sei. Demorou mas a ficha caiu. Quanto tempo ficamos ali, olhando um pra cara do outro? 


    Quando eu vi a minha mãe e a minha irmã estavam saindo de novo! Como assim? Elas tinham voltado e eu não tinha visto? E agora corriam apressadas assim? Parecia um filme se repetindo.... 


    Cismei que precisava seguir as duas desta vez. E fiz um movimento rumo ao táxi mas o carro logo acelerou. Aí Silvano falou que eu me acalmasse. Elas seguiam para a Santa Casa. Uai, mas por que? 


    Quando eu pensei em Santa Casa, logo percebi que estava justamente na Santa Casa. Claro que conhecia o lugar. Minha avó morreu aqui. Minha tia morreu aqui. 


    Então vi a minha mãe e minha irmã seguindo para um corredor. Vi que estavam chorando. Será que alguém da família morreu? Não lembro de alguém internado ali.... 


    Elas entraram numa sala. Funcionários vestidos de branco entravam e saíam. De repente eu percebi que o Silvano estava ao meu lado e ele se vestia de branco! Não havia percebido antes?!


    Então entre corpos deitados sob lençóis brancos, elas se inclinaram para um e aí levantaram o lençol e então é que choraram mais ainda! Ora, na hora eu não entendi....


    Silvano apontou o corpo e, com a cabeça, sinalizou que eu podia me aproximar. Pensando bem, agora, ele agia mesmo como um enfermeiro.


    Então me aproximei. O mais estranho é que nem minha mãe nem minha irmã me notaram ali do outro lado do corpo sob o lençol. E então é que entendi. O homem deitado usava as minhas  roupas. E sua face era a minha. Agora uma face sem vida. 


    Segurei o peito com força. Nada senti. Elas choravam. Abraçadas. Silvano fez um gesto calmo. Vi o homem deitado. Sim. Era isso: meu corpo morto. Ataque cardíaco fulminante. 


    Fiquei ali vendo o corpo. Minha mãe e minha irmã foram embora. Chegou um pessoal da funerária. Seguia ali ao lado do meu corpo. Mas era como ver uma foto de mim mesmo.... Uma lembrança do passado. 


    Silvano era mesmo uma espécie de enfermeiro. Sua calma me contagiava. Em nenhum momento me desesperei. Deixei o corpo seguir. Quando Silvano fez um gesto, eu o acompanhei. 


Jul 24 


LdeM 


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG

BH MG






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