sexta-feira, 22 de maio de 2015

Imagens surrealistas em mil Estilhaços


 






Sobre Estilhaços no Lago de Púrpura

de Joaquim Palmeira / Wilmar Silva [2006; 2007]



(artigo 3)





Imagens surrealistas em mil Estilhaços


      Em outros dois ensaios [artigos] sobre Estilhaços no Lago de Púrpura [ELdeP] abordamos o bucolismo, a aridez, a ambiguidade amorosa-agressiva, em suma, a AgroLírica, estilo pessoal do Autor, com flora & fauna do sertão, na secura do cerrado, no mundo grande onde poucos sobrevivem. Daí ser uma poética de sobrevivente, então vívida & afiada.

     Agora abordaremos outras facetas desta obra-prima, a saber, as imagens surrealistas, com suas hipérboles & delírios, numa loucura-êxtase-xamânico em bestiário sádico.

       Há uma tessitura barroca, ou neo-barroca, de elementos vários & díspares, Que se negam e se complementam, em passagens líricas que partem de um drama e findam em tom de espinho cortante. Sentimentos confessados são bruscamente interrompidos por vociferações, por urros bestiais de um sujeito lírico incontido, que ama & odeia sem limites.

       Tratamos de um sujeito poético estilhaçado, dissonante, contraditório, que confessa e ofende, em confronto com um Outro que é benção & maldição, não encontrável por mais que procurado. Uma entidade poética entre fragmentos em busca de uma Identidade, ora lúbrica, ora xamânica. Esta relação do Humano com a Natureza já foi tematizada por bucólicos arcadistas ou idealistas românticos, mas nenhum chegou perto do teor visceral de poéticas tais como as de Lautréamont, no século 19, e Octavio Paz, Herberto Helder e Manoel de Barros, no século 20. Aliado ao tema Natureza & Humano há um ‘desregramento dos sentidos’ (que é almejado em Arthur Rimbaud, em verdadeiras 'estações no inferno') e uma cosmovisão xamânica (presente na poesia tardia de Roberto Piva).

        Imagens absurdas, tons exagerados, megalomania agrolírica, tudo a relembrar certa vanguarda que nos acompanha quase há um século, com os delírios surrealistas feitos Arte. A percepção de uma racionalidade insuficiente, de um Humano cindido entre razão e intuição, levaram os vanguardistas surrealistas a buscarem uma outra Realidade, um além do Realismo, um proclamado Surrealismo, a congregar Lógica & Quimeras. Assim as pinturas de Dalí, Miró e Magritte, assim as poéticas de Aragon, Prévert e Péret.

       No mais, a escrita de ELdeP, segundo assegura o Autor, foi fruto de um automatismo, um despejar de palavras datilografadas e laudas após laudas, em um momento de possessão poética que nos legou um ‘poema de um só fôlego’, assim uma obra abertamente visceral, verdadeira Escrita com o corpo. A vociferar versos & abscessos um ente poético que se entrega a uma Escrita que é um martírio de agruras líricas.

       Em vários trechos encontramos certas características da escrita surrealista, pela estilística e pela recorrência, tais como hipérboles, oxímoros, figuras bestiais, ou fusões, algo xamânicas, de animal-humano, além da relação sádica-masoquista com o Outro, dominado e dominador. 


 

      Em pronunciadas & afiadas Hipérboles o sujeito poético evidencia o estado de afetada megalomania do qual é vítima, ao vitimizar seu amado-odiado Outro, em diálogos & embates, mas sempre dono da fala, autor de um discurso exageradamente passional. A Natureza se submete ao seu teor de amorosa agressividade, quando fauna & flora se curvam ao extravasar do lirismo áspero.

mil diamantes nos olhos” [1]


eu faço galáxias na fonte do desejo que me consome” [7]


arremedos de uma noite adensa com mil assombros” [11]


e mais mil e um marimbondos presos em meu umbigo” [12]


sempre sozinho na revoada onde sou tempestade
 
limo as unhas para cozer um inverno e hibernar” [25]



 

      Notamos também as recorrências de figuras tais como os oximoros, ou paradoxos, a saber, a união de contrários em antíteses, absurdos, bem ao gosto barroco, que reflete nas colagens surrealistas de possíveis & impossíveis (mas a lembrar que na linguagem tudo é permitido...), que faz de EldeP uma obra mais que passional, um longo poema pulsional, no mundo dos sentidos, onde as percepções se confundem,

piscoso envenenado de tanto mergulhar na terra” [2]


um sol aceso em noite plena / eu” [20]


deixar que o escuro seja meu sol imaginário” [25]


esta represa onde peixes nascem da terra” [28]


cavalos marinhos no céu” [29]



 
     Encontramos cenas de um Bestiário de seres fantásticos, híbridos, amalgamados, com aparências terríficas & delirantes, enquanto símbolos do desassossego do sujeito poético, como bem percebemos na épica trágica de um Maldoror, alter-ego de Lautréamont, entre o simbolismo e um proto-surrealismo, como bem aceitam os próprios surrealistas,

cavalo com escamas nas crinas” [1]


esta ema com onze penas de pavão” [19]


passarinhos de sabre com asas aziagas, eu sou” [27]




 
Então entre seres selvagens, na terra e no pó, nas matas e nas águas, o Humano se confunde com animais, lembra que compartilha instintos animais, deseja entrar em contato com as forças do mundo natural, exercitar um ritual íntimo que muito o aproxima do Xamanismo, enquanto cosmovisão,

coiote eu / eu hiena” [2]


um lobo eu no escuro / um lobo eu faminto” [3]


todo nu tenho um sabre na lontra que sou eu” [4]


eu anfíbio, escavo um rastro na memória do chão” [6]


azulado sou este pássaro azulão que perdi o bico/ e cala” [10]


sou esta tarântula” ou “meu corpo de pelicano” [11]


cavalos selvagens, eu: um cavalo indomável / eu sim” [16]


sou esta novilha com êxtase de égua no curral” [17]

sou este corcel / eu um corço entre avestruz e
 
seriemas, sou esta ema com onze penas de pavão” [19]



sou o fero ferido” [21] ou “ave ferida no ermo” [22] e também “eu sou 

esta ave ferida de verde” [28]


minha língua de lebre / viperino sou [...]” [26]


 

    Figura de xamã, ritualista pagão, nativo indígena, um-com-a-Natura, com a qual o sujeito poético se identifica, e mesmo confessa em “índio estranho, face de espantalho xamã, calo” [8] e também “sou esta imitação / de um deus, um xamã” [30], pois em seu mergulho, em seus desnudamentos com Natureza e instintos, o sujeito poético adentra um reino de irracionalismo, de imersão mística, quando confessa seus êxtases / delírios, sinais de sua identidade ambígua, anfíbia de animal-humano.


nascem entre meus dedos de sonhos” [1]


onde um doidivano atravessa meus ombros / e
 
atravessado até a espinha onde piracemas nadam” [7]


agora que esta noite alcança meu êxtase” [18]



 
      Numa relação dúbia com o Outro, ora em dominação, ora em submissão, ou seja, alternância entre sadismo e masoquismo, o sujeito poético tanto ama quanto detesta o Objeto da paixão, desvairado por exigências & rejeições. As imagens surreais servem para explicitar o desvairismo (ainda mais que Mário de Andrade) dos afetos, como num duelo de paixões, onde o exagero marca o território, como a dizer 'vejamos quem é mais apaixonado aqui'. Então a oscilação entre dominação-submissão se evidencia a cada golpe & contragolpe, a cada avanço sobre o Outro que ataca de volta.

eu quebrado por você sou estilhaços” [1]


eu que venho com um ramalhete de espinhos na carne /
 
derramo lâminas e facas nos olhos dos pés,” [2]


sou esta vespa que transpassa tuas coxas” [12]


você é este fogo que me entranha” [12]



      De tal modo áspero que a relação amorosa se clarifica aos nossos olhos como um jogo de forças, uma 'guerra de tronos' para conquistar o afeto do Outro, objeto do ávido desejo, essencial & fundamental, e que é insaciável. 
 


sou eu quem levo para o mundo profundo você
 
mas você que é letal como uma ponta de punhal” [22]


você que vem com uma manada de gumes, lâminas” [24]


vem você agora com este canto de ema arisca
 
e faz cantigas que me alucinam nesta noite /” [27]


sou este verde que hei de queimar seu corpo / eu” [30]



 
      Então suas agruras são assim metaforizadas em exageros de retórica surrealista, com tons de sadismo / masoquismo, em toda uma flora & fauna agreste, de sertão demasiadamente perigoso (como já sabia Guimarães Rosa) com as vidas penosamente secas (como denunciava Graciliano Ramos) de tal modo que a poesia ousa retratar figurativamente um embate selvático de amor & ódio. Finalmente, que o/a Leitor/a suporte digerir tamanho desassossego, ou estação infernal, de (anti)lirismo! 
 


Maio/15



Leonardo de Magalhaens


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segunda-feira, 11 de maio de 2015

NA PRÓPRIA PELE (III e IV) - conto





          Na própria Pele


             III

            Diante dele, o Cabo Bucher alisava o Canhão do Panzer, o “cuspe-fogo” de 88 mm de seu Armamento. Era a sua única Crença. Aquela Belezura não poderia falhar. Afinal, uma Avalanche de T34 se precipitava do Leste!

            -Ei, Handke, tem alguma Ideia do Alcance dos Canhões deles?

            E o Geógrafo se voltou com o Brilho de seus Óculos, sem Resposta. O Engenheiro é quem ousou. -Pois devem estar atirando desde o Oder! Mas as Bombas que atingem a Capital estão voando desde o Tronco ferroviário.

            -Pensa que eles estão aproveitando a nossa Artilharia, abandonada lá?

            Ao ouvirem a sua Voz de Sargento, todos se voltam. Era uma Ideia que todos temiam. Não houvera Tempo de destruir os Despojos. O Engenheiro ousou novamente. -Certamente usam os Trilhos que restam.

            -Precisamos explodir a Ponte. - soou a Voz de Handke. - Depois apontamos os Canhões e... Fogo!

            Dez Minutos até a Ponte sobre o Rio Spree, a atravessar o Distrito de Köpenick. No Percurso, mais Faces em Pavor. Precisavam isolar a Área. Dinamitar a Ponte. E o Sargento Hans Kreis sabia dinamitar Pontes. Assim fizera nas Ardenas, depois em Sedan, e quase fora designado para fazer o mesmo em Cassino e Monte Castelo. Mas as Linhas se romperam rapidamente. Os Americanos não aliviam !

            O Cortejo rasgava a Tarde de domingo – de Silêncio atroz, só quebrado pelo Estrondo esperado. Os Civis se mantinham entocados. O “Tiger” de 55 Ton à frente, com o Sargento e seus Imediatos, Kempf, Handke e Bucher, depois o “Panther” de 46 Ton com Weber, Hoffman e Berger, e em seguida, o Jipe, com o Canhão, conduzido por Friedler. Oito Homens de sua unidade, o que sobrara de seu Pelotão, de 40 Soldados, comandado pelo Tenente Brombert, enviado três Semanas antes para a Defesa do Rio Oder – todos massacrados!

            -Vamos explodir a Ponte. Acene aí para o Friedler.

            Logo, a Ponte ruiu com um Estrondo. Voltaram e apontaram os Canhões e Metralhadoras. “Russo que chegar leva Fogo!”, sorria o Engenheiro, enquanto acompanhava os Cálculos do inabordável Handke, o mais letrado da Tropa. Não que fosse orgulhoso, mas vivia mais consigo mesmo. Deixara Família em Potsdam. Sua Bertha e uma Filha, cujo nome soletrava. Sempre detalhista, o Handke. Movia-se à Preocupação. Quanto ao Kempf não sabia porque sorria. Perdera um Filho de Vinte e três Anos no Norte da Itália.

            O Panzer de Weber parou à esquerda e girou o Canhão. A Noite ainda demoraria. Todos às espera de Erich, com reforços. Ou pelo menos, a Munição e a Comida. “Saudades de um bom Jantar e Vinho tinto”, sussurrara Berger ao seu lado. Captara Ordens confusas, e mais Promessas de Tropas de Apoio. Apenas Promessas.

            -Os “Camisas-negras” já deram o fora. Defesa? Que Defesa? Jamais vai entrar em Ação!

            -A única Ação dos “Caveiras” é vestir logo um Pijama civil !

            E que o Berger não levasse esses Gracejos à sério! Nem que imaginasse o Sorriso do seu Sargento quando ouvira a Fala do glorioso Ministro, “Nosso Objetivo é a Libertação de nosso Reich e um Império de Justiça Social em um vindouro, afortunado Futuro”, em Promessas para alimentar a Esperança do “Povo”, o que sobrou do “Povo”. De que Futuro ousavam falar?! Aqueles Assassinos!

            -Vamos esquecer os Camundongos. Nossa Preocupação agora nem é mais os 'Lobos', mas os 'Ursos'. Antes que atravessem o Rio e o Canal.

            -Quantos Canhões, o Sargento acha que eles têm? - voltava-se o calmo Heinz Berger, atento aos chiados do Comunicador.

            -Boa Informação a ser pesquisada, Berger. Não faço ideia. Mais de dez mil. Pela Chuva de Chumbo.

            Ao Anoitecer, Luzes flutuavam à leste. Certamente os Bombardeiros russos, com suas Toneladas de Dinamite. E onde os nossos Caças? Nem chegam a decolar! Estratégia que antes nós usávamos. Atacar antes deles. Agora estamos de Asas cortadas. Coisa que o nosso Capitão Günther já temia, o que foi fuzilado, não importando sua Cruz de Ferro e sua Medalha de Mérito de Guerra. E o nosso Günther que nada tinha de 'Vermelho', de 'Comuna', mas Nacionalista como devia, sem os Misticismos e Racismos dos “Camisas-negras”, dos “Caveiras”, dos “Sieg Heil!”. Por que os Judeus não poderiam cavar Trincheiras? Por que essa Preocupação em eliminar os Judeus? O Capitão fizera a Requisição de Comboio para as Tropas rumo ao Oder, mas recebera uma Notificação de Adiamento. Depois se descobrira o motivo: Transporte de Judeus para os KZ, os Campos de Concentração, de onde se elevava aquela Fumaça espessa, Fuligem gordurosa de Restos humanos! Por que o Regime chegara a semelhante Quadro doentio?

            -Sargento, são Bombardeiros russos!

            A Voz do Engenheiro Kempf cortou os Pensamentos do Sargento Hans Kreis, que ergueu os Olhos ao Crepúsculo. Corvos negros a descerem sobre uma Plantação. O Engenheiro estendeu o Binóculo e o Sargento pode acompanhar a Queda das Bombas e os Clarões. Ataque à nordeste. Bairros da Burguesia, das Classes médias, Áreas verdes, a Saída da Rodovia, o Cruzamento das Ferrovias, mas qual era o Alvo?

            Segundo o 'Homem da Comunicação' Heinz Berger, a Tropa da Unter den Linden estava em Movimento para o Reichstag, assim tal Ataque visava as Tropas do Norte, ao longo do Tronco ferroviário. Tropas que fugiam rumo à Pankow, Área ainda não destruída. Mas, certamente se deixariam render nos Limites do 'Mitte'. A Capital agonizava. E onde os Comissários, os 'Caçadores-de-Inimigos do Estado', os 'Homens-da-Caveira'? Todos Civis agora, no meio das Multidões apavoradas que fugiam do leste, expulsos pelos Russos e Polacos, Gente camponesa da Pomerânia, da Silésia, do Corredor de Dantzig, sem nada além do Corpo coberto de Trapos!

            -Vamos dormir. Friedler assume o primeiro Turno, e depois, o Weber. E Alerta: Erich pode voltar ainda à noite. Não atirem no Rapaz! Cuidado!

            -Atirar no Erich? Mas se o Moço está trazendo a nossa Janta!

            E todos riram do Espanto de Weber. Os Atiradores se posicionaram junto a Carapaça dos Panzer.  E o Sargento Hans Kreis reclinou-se, logo a permitir-se sonhar com o seu Passeio na Île de La Cité, no meio do Sena, fascinado pelos Vitrais da Notre Dame. Sonhava, enquanto as Bombas caíam.



                IV


            Esperaram dois Dias. Na madrugada de quarta-feira, veio o Barulho. 'Tropas vermelhas' à leste. Faltavam ainda umas quatro horas para a Aurora, segundo o Relógio do pensativo Alois Handke. Mas as Bombas iluminavam as Margens do Rio. E onde a Defesa organizada pelo Tenente-General das SS? E o Exército que rastejava do Sul? Mas os Aliados se aproximam do Elba, os Oficiais SS desaparecem meio aos Civis, as Ordens não surgem Efeito, as Provisões que Erich conseguira só duram mais Vinte e quatro Horas, estou cansado. Assim, o Sargento Hans Kreis se levantou para comandar a Tropa, como fazia desde a Derrocada no Rio Oder. Com seus Trinta Anos, o Sargento já era um Veterano. Parecia um Quarentão, com sua Voz gasta e Gestos pensados. Suspirava pela Família, abrigada junto aos Bosques de Grünewald. Temia pela Segurança de Selma, tão nervosa, ainda mais depois do Golpe, vivendo ao lado de sua Cunhada, a Irmã dele, a resignada Louisie. Mas nunca demonstrava. Quanto a Heinz Berger, ao seu lado, era a Melancolia em Pessoa.

            -Estabelecida a Posição. Ordens para o Canhão. Ouviu, Friedler? Visibilidade e Avanço. Mira posicionada. Atacar antes de ser atacado.

            Ele ajustou o Binóculo. Os Russos bombardeiam e avançam. Fizeram assim em Varsóvia, em janeiro; assim em Budapest, em Fevereiro; assim conquistaram Dresden, as Ruínas da Chuva de Bombas!, enquanto dormimos. Bombas! e deixam a Fumaça abaixar. Tática que nós usamos! No 'Passeio' na França. Pegou os Franceses de Calças na Mão!  Depois cercamos os Ingleses na Praia. Ah, chamam de “o Milagre de Dunkerque” ! Sorte a deles o Führer ordenar a Pausa no Avanço. Que os Ingleses mereciam os 'Presentes' da Aviação. Paramos para assistir: Espetáculo que durou nove Dias! Apenas deixamos os Ingleses fugirem, para depois invadirem a Normandia! Mas, na Época, ele, Cabo sob as ordens do Capitão Günther Spitzer, até de acordo, para que destruir os Ingleses? Precisamos da Aliança deles, ou então da Neutralidade – que cuidem de seu Império Britânico. Agora (isso ele dissera em 40) é o momento da Ascensão do império Germânico!

            O “Império Germânico de Mil Anos” que desabara em uma Década! Eis ali os Escombros e a Fumaça densa sobre a Capital. Somos os Sobreviventes! E o Führer, onde está? Em seu Bunker nas Montanhas alpinas? Nas Ruínas da Chancelaria? Lutamos para salvar nossa Pele, não o “Império de Mil Anos”!

            -Contato visual, Sargento. Visibilidade média. Grupo de Tanques à sudeste. Número estimado: Vinte e cinco. Ao longo da Ferrovia. Calculo duas Horas até o que sobrou da Ponte. - informava o Engenheiro.

            -Então temos Tempo. Erich, pode servir as Provisões.

            Enquanto isso, Hoffman e Handke vigiavam as Posições da Tropa russa. Era preciso manter a Disciplina. Tudo o que sobrou. A Munição não duraria uma Semana, e ao Anoitecer Weber e Erich receberiam Ordens de Requisição de Víveres – onde houvesse 'Víveres'! O que mais preocupava era a Divisão das Tropas de Defesa, o que restava das Tropas de Defesa. O que poderiam fazer nove Homens, com Dois Tanques, e um Canhão, contra um Pelotão de Tanques soviéticos? Eles copiaram nossas melhores Táticas! E até a nossa Crueldade! Com esses Canhões de 122 mm causam Estragos, os Ivans! Mas Alguém se aproxima. Sem Farda, mas armado.

            -Precisam de Ajuda? - um Homem grisalho, Voz forte, com Fuzil e Botas militares. -Não fui convocado. Mas estou pronto. Aceitam um Voluntário?

            Aceitaram. E outros dois se apresentam. Mais Jovens, entretanto. Não mais que quinze Anos. Mas envelhecidos. Parentes do primeiro Voluntário, ex-Ferroviário, ferido na Grande Guerra de 14, no Marne, o velho Patriota, mas não Racista, nem Fanático, uma Companhia perfeita para um Entardecer de Lembranças. Os Jovens, Fritz e Otto, Enteados dele, ajudavam a cozinhar o Jantar. Mais enlatados, claro. Carne fresca era Raridade. Mas havia Doce de Leite, que diluíam em Água. Poderiam beber. Direito à Sobremesa, não mereciam os Heróis?

            -Vai chover Chumbo, Sargento. Aguarde. Os Meninos aqui vão tremer um Bocado!

            Dizia eufórico, o ex-Ferroviário. Suas Mãos só sabiam desalinhar seus Cabelos. E onde sua Mulher? Morrera num Desabamento. A Bomba arrasara Metade do Quarteirão. O Sargento achou melhor que usassem os Capacetes que sobram, já que faltam os Combatentes.  E que dispensassem as Continências. A Tropa ali necessitava de Munições e Comida. Ainda que a Batalha não durasse mais de dez Dias. Derrotados, afinal ! Por que a Insanidade daquele “Sieg Heil!”, dos “Camisas-negras”, Jovens fanáticos, logo todos seriam enforcados, se já não estão se enforcando!

            -É, Sargento, Fumaça das grossas! Vamos tomar Banho de Dinamite!

            E falava de Olhos apertados, com Imagens trágicas, sabendo das Violências contra as Mulheres, da Fome das Crianças, das Populações expulsas de suas Terras, o Fim de um Sonho de Império, de Expansão para o Leste, de um “Espaço Vital para o Povo germânico”, o outrora mais populoso da Europa, uma Limpeza que a própria Guerra proporcionou, pois nunca antes um Governo matou mais Alemães, um Governo a dizer-se “Protetor dos Povos germânicos”, um Führer fanático pela Pureza racial, mas que não hesitou em mandar os mais belos e os mais jovens para o Horror das Frentes de Batalha!

            E ali o ex-Ferroviário trazia um Entusiasmo pesaroso à Tropa. Em todo Lugar, gritando com os Enteados, os Jovens Fritz e Otto, ou querendo ajudar o Erich na Cozinha, ou o Friedler na Artilharia, e até ousando incomodar o Handke na Balística. Contudo um Companheiro de Presença, este Rainer Herzog! E se entendiam, ele e o Sargento, já contagiado pela Melancolia de um Berger.

            -Que pisassem a França, aceitamos, mas Encrenca com os Anglos? Cutucar o Vespão dos Ivans? Coisa de Louco!

            E sem hesitar, o assustado e eufórico Rainer Herzog, sem se preocupar com o sombrio Heinz Berger, sozinho, a culpar todos os 'Traidores' pelo Fracasso do Reich, a lamentar em sua Mudez, não só a Derrocada da Capital, mas o Desabar de todo o esperado “Império de Mil Anos'.



abr07//mai15


Leonardo de Magalhaens


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quarta-feira, 6 de maio de 2015

conto de guerra - NA PRÓPRIA PELE




Contos de Guerra



NA PRÓPRIA PELE

           I

    Ouviram o Ministro da Propaganda. Sua Voz ecoava no Rádio, meio abafada pelos Estrondos sobre a Capital.

    O que mais poderiam fazer? Recuando sem Proteção desde o Rio à leste. O que mais o Ministro esperava? Morrer com Honra? Isso não existe! Que Honra sobrara para a Tropa? “Defensores!”, o Ministro numa última Aclamação, a lembrar de nossa “Provação”. Ele não deixará a Capital, e sua Esposa e Filhos aqui permanecem. Ao menos é diferente dos Outros. Os Crápulas que já fugiram. Quando o Barco afunda, os Ratos não perdem Tempo.

    As grossas Mãos, tão jovens!, esfregam o Suor da Face. Ele nunca havia passado pela Marinha, nunca pisara num Navio, tão somente os Barcos nos Rios à leste, e num passeio no Sena, ainda nos áureos Tempos, e se angustiava ao imaginar os Naufrágios! E as Tripulações nos Fundos das Águas, e os Pobres enlatados nos Submarinos agora nos Abismos! Mas o Exército tem lá suas Profundezas: quantos não morreram soterrados nas Trincheiras! Nas Casamatas e nos Abrigos! Seu último Bunker desabara sepultando cinco Homens!

    A Artilharia trovoava à leste, e Alguém abafou os Estrondos, ao fechar a Porta. Heinz Berger, o Homem da Comunicação, entrara.

    -Sargento, os Homens não acreditam mais. Zombam do Ministro. Se me permite...

    Fala pausado, com Dificuldade. Mas uma Voz clara, sem Ranhuras. Vivera sempre na Capital, interrompera o Curso na Faculdade. Seria Jornalista. O mais entusiasmado com o Ministro e seu Regime sanguinário. Queria doutrinar a Tropa, inutilmente. Ninguém mais acreditava em Vitória, e muito menos em “Armas secretas”. Ninguém mais se deixava enganar desde... desde os Bombardeios.

    Recuavam, nada mais. A Munição faltava, também as Peças de Reposição para os Tanques, os pneus para os Carros da Artilharia. De Perseguidores passaram a Perseguidos, sem Tréguas.

    -Estamos pagando. Arruinamos o país deles. Agora eles arruínam o nosso. O Reich se despedaça.

    -Sargento, nunca acreditou no glorioso Futuro de nosso Povo?

    Ah, o idealista Heinz Berger, com sua Necessidade de Crença. Nunca poderia entender. Crenças são inúteis, só há a Fome e a Guerra. A Competição. Perdera a Fé, abandonara seus Pais católicos e seus Padres amedrontados. Sua Devoção, desde Jovem, era a Guerra. Não pelo Regime, não pela Glória da Raça, mas pela Guerra! Pelo Horror, pelo Fascínio do Horror! Isso o Berger não entende. Crer no Futuro? Na Vitória? Desde o Führer quase voara pelos Ares, a sua Fidelidade ao Reich estava abalada. Ele lutava ainda, mas para salvar sua Cidade, sua própria Pele.

    -Não importa o que eu penso. Reúna os Homens, devemos manter nossas Posições no Bairro operário. Quem organizou as Barricadas? Os Civis, inclusive as Mulheres, devem ajudar.

    -Devemos aguardar o Exército do Sul, Sargento.

    -Promessas. Não percebes? Mais Promessas a serem quebradas. Não virá qualquer Exército do Sul. Os Ingleses já devem mante todos ocupados. Chegaram ao Elba.

    -Mais Relatório, Sargento. Duas Esteiras danificadas. Duas Baixas: Propp e Müller. Morreram de Armas em Mão. Recuperamos as Armas. Já sepultados.

    Um Estrondo próximo. Longo Alcance da Artilharia. Ecoava. Apenas mais Alguém que entrava. Um súbito Cheiro de Carne. Com uma Marmita aberta, o Cabo Weber olhou pra dentro da Sala e dispensou as Saudações.

    -O Resto das Provisões. Aproveitem.

     A Marmita sobre a Mesa. Um Chiado de Rádio preencheu a Sala, além do Cheiro de Carne. Ali Heinz Berger em Tentativas de Contato com o Resto das Tropas. Dividiu o Conteúdo da Marmita com o concentrado Heinz Berger, atento ao Rádio, assim inclinado, com sua Águia brilhante na lapela do Uniforme. Depois o Sargento reclinou-se para descansar. Não fechara os Olhos o Dia todo! Agora já escurecia, merecia um Cochilo. Afinal, ao Alvorecer haveria Barulho.




           II

    Acordou antes da Luz. Um Estrondo agita as Folhas da Janela. A Casa era frágil, sua Consciência desliza em Busca de uma Noção de si mesmo, Sargento Hans Kreis, do Exército, no Perímetro sudeste da Capital, no Comando de onze Homens, tendo sofrido duas Baixas nas últimas Vinte e quatro Horas, com Ordem para defender a Ferrovia sobre o Rio.

    -Sargento, más Notícias. Estamos divididos! Em quatro Guarnições. O Comando passou a Defesa a um Tenente-General das Tropas SS, mas nada sabemos.

    -Antes, um Bom-dia, Heinz. Nada de nervosismo. Inútil agora. Quanto aos “Camisas-Negras”, os “Homens-da-Caveira”, não me admira. Não espere Contra-ataque algum. A Defesa só pode contar com a nossa Gente. Nossas Famílias, nossos Rapazes. Notícias sobre a Barricada além do Rio, no Bairro operário?

    -Negativo. Mas as Ordens exigem a Expansão das Barricadas antes do Tronco ferroviário à leste. Serviço para os nossos Quadros noturnos.

    -E você dormiu, Heinz? Será um longo Dia, esteja certo. Precisamos de Munição e Provisões. Envie o Erich. Ainda seremos oito, uma Muralha de oito Heróis!

    O olhar de Heinz. Como diante de um Inimigo do Estado. Ele não entende. Não mencionar o Capitão Günther perseguido na “Ação Tempestade” depois do 20 de Julho. Heinz veria um Traidor, e, em sua Inocência, não hesitaria em denunciar ao Comissário mais próximo. Heinz sabe ser eficiente. O Comissário, não sei. Todos fogem agora. Somente sobrou o Povo.

    -Entendeu, Heinz. Envie o Erich. E que ele tenha Sorte. Quanto a nós, vamos levantar Acampamento. Dentro de Horas, esta Casa não passará de Escombros. Vamos.

    E Heinz saiu, batendo a Porta. Confiava em Heinz? Infelizmente, não. A última Pessoa em quem confiara fora o Capitão Günther, Homem honrado, ao lado da Tropa desde o 'Passeio' em Paris.  Depois da Dureza das Ardenas, claro. Mas tinham Tanques novos, seus “Tiger” de 50 Ton moendo Troncos e Raízes da Floresta francesa.  Um 'Passeio'. Mas passados cinco Anos, tudo se perdera, em Massacres e Delírios de Poder. Por pouco, ele, Hans Kreis, não fora enviado ao Front sul, quando da Deposição do Duce, e a Traição dos Italianos. Mas a Defesa da Capital não poderia dispensar sua “Experiências e Espírito de Liderança”, como era elogiado, e jamais decepcionaria seus Comandantes e Comandados. Nem com o Golpe de 20 de Julho e a Execução dos Oficiais, entre eles o seu Capitão Günther Spitzer, acusado de “Traição”.

    Lá fora, os homens à espera. Erich fechava a mochila, e fez a obsoleta Saudação. Seguiria para o “Mitte”, o Centro, onde encontraria as Tropas do Sargento Klein, ainda em plena Unter Den Linden. Todos apreensivos. Afinal, os Russos, os Autores dos medonhos Estrondos, se insinuavam ao Norte, num Avanço sobre o Reichstag, aquele mesmo que os Assassinos incendiaram.

    E imaginar que aquele Histérico conseguira fascinar todo o Povo! Um Louco como se mostrou! Invadir a Rússia! Bombardear a Inglaterra! A França até faz Sentido – tínhamos Contas a acertar. Ele mesmo, Hans, matara uma boa Dúzia de Franceses, além dos tantos que sua Metralhadora giratória alvejara! Os Franceses, a gente pisa e cospe em cima! Mas incomodar os Russos? Aquela Horda de Bárbaros! Culpa dos Ingleses, os rancorosos, que colocaram o Mundo todo contra o nosso Povo! Loucura! Logo os Ingleses, Povo metódico, fleumático, que ele tanto admirava!

      Os Homens se adiantaram. Alguns pedidos. O Cabo Friedler estendia o Envelope com a Carta para a Noiva. A bela Freya, ruiva e dominadora. Queria que Erich a entregasse na Moabiter Strasse. Seria possível? E depois o Engenheiro Kempf com sua Lista de Peças de Reposição. Apontava os dois Tanques, em Operação, onde se apoiam Vicent Bucher e Alfred Hoffman, ambos da Artilharia, enquanto o terceiro Tanque, danificado, fora deixado sob um Telhado semi-desabado. No mais, o Geógrafo Alois Handke, a cuidar dos 'Cálculos de Balística', a reclamar da Munição. Falta de Munição. O de sempre. Desde o Oder. E o Ministro pregando a Resistência, falando em “Muralhas de nossa Cidade” onde devia ser quebrada a “Tormenta mongol”, ah o velho Ministro, mentiroso até a medula, a atemorizar os Homens com esse Terror ancestral das Hordas do Oriente!

      Ergueu o Braço, cheirou o Ar, fez um Sinal. Com um Gesto, o Sargento Hans Kreis subiu ao primeiro Tanque, ciente de que sua Tropa o seguia.




[CONTINUA]



abr07//mai15


by Leonardo de Magalhaens



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