quinta-feira, 23 de julho de 2015

sobre a antologia AMOR NO TERCEIRO MILENIO







Sobre O Amor no Terceiro Milênio [BH, Anome, 2015]
antologia organizada por Wilmar Silva de Andrade




que possa falar de amor
neste mundo triste desencanto
assolado por ódio e desamor
há uma palavra engasgada na garganta
uma palavra incriada
tolhida
condenada ao silêncio

(Elizabeth Rennó, Há um poema engasgado na garganta)



A poesia contemporânea


     Para falar de poesia precisamos antes nos situar. Onde estamos – topologica e temporalmente falando? O que podemos considerar poesia? Ou de poético? O que diferencia um poema de uma máxima ou de um anúncio publicitário? Um texto em prosa pode ser poético? Uma propaganda de outdoor pode ser poética? Um ensaio literário pode conter poesia? Um discurso político pode nos soar poético?

     Para responder, precisamos relembrar as características da poesia moderna. Além de lirismo e formalismos, os críticos literários, desde Walter Benjamin e Octavio Paz, passando por Hugo Friedrich, fazem suas listas de marcas textuais, de tom discursivo, de performance enunciativa que possam caracterizar o moderno (hoje, a preocupação é o pós-moderno...) desde os poetas-malditos, os franceses simbolistas, os essenciais Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud. Poetas de nova voz e novo fôlego, que souberam integrar lirismo e cotidiano, vida e escrita.

     Na poesia de fins de século 19 até hoje encontramos elementos tais como a ironia, a dissonância, a polifonia (com várias vozes e antinomias), a proliferação de metapoemas (onde a poesia fala de … poesia), as atuações iconoclastas do[a]s poetas. Vida e obra seriam entrelaçadas, com as presenças extratextuais dos autores, com suas biografias excêntricas (assim Sade, Byron, Shelley, Poe, Rimbaud, Dalí, etc), tão interessantes quanto seus textos. As obras seriam essencialmente anti-canônicas, mesmo que depois integradas em novos cânones (até os 'malditos' assim 'sacralizados' depois, como é o caso de Mallarmé...), que as novas gerações sempre elegem, nas marés das vanguardas.

     A ironia, em qualquer que seja o tema, amor ou morte, sempre ironiza as ideologias, pois as ideias da geração passada sedimentam-se na tradição, que é o alvo predileto das vanguardas, isto é, os novos autores que precisam se firmar, assim a negarem o velho e produzirem o novo. Mesmo que as vanguardas, sabemos bem, saibam se nutrir das tradições. Resgate de românticos e simbolistas mostra o quanto o ódio ao passado é relativo. É irônico ver modernistas se voltarem para barrocos e místicos pré-românticos, quando não a buscarem raízes na lírica provençal.

     A metalinguagem, claro, a lembrar sempre que se trata de literatura, um esforço da condição autoral, a voltar-se para o leitor. Se a questão é entregue ao leitor, se o texto é 'completado' pelo[a] leitor[a], então se constata a 'morte do autor'? Teríamos apenas um julgamento crítico-afetivo? É bom o que o leitor decide ser bom. Nem esteticismo, nem historicismo nem moralismo, nem ceticismo, mas apenas o leitor co-autor. É a apoteose da 'estética da recepção'?

     Mas que leitor é este? Qual 'leitor ideal', aliás. É o leitor atento, imaginativo, crítico? Ou aquele que quer fantasiar livremente, fugir do drama (ou tédio) cotidiano? Quem é o leitor que nos interessa? Aquele que lê as obras de Dostoiévski ou aquele que lê a série do Harry Potter? Qual definirá a obra canônica? (o leitor é capaz de 'canonizar' uma obra? Assim, a série da J. K. Rowling está no cânone pós-moderno...)


O que é antologia?


     Por que fazer antologias? Com quais critérios? Um recorte de época, de geração? Amostra de estilos? Ou eixos temáticos? Ou de gênero? Ou de espectro político? É válida uma antologia da mulher negra socialista? Ou dos homossexuais brancos da década de 1990? Faz sentido? O que fazer para definir os limites da antologia?

     Pois, aqui, temos dois recortes: o temático e o temporal. Trata-se da temática do amor, seja eros ou ágape, as mil formas do amor/amar, se é possível falar sobre amor, etc, e do 'terceiro milênio', ou seja, de nossa contemporaneidade, das obras das últimas duas décadas. Assim, o antólogo delimitou seu campo de leitura e ação, em seguida se disponibiliza para a colheita de poemas e quase-poemas, prosas e discursos. Ele pretende um recorte, uma amostragem, em suma, um panorama. Mas há equívocos aqui.

      Autores que não estão bem representados. Temos apenas um poema de Márcio Almeida, de Wilmar Silva, de Luiz Edmundo Alves, de Rodrigo Starling, de Olga Valeska, de Tânia Diniz, de João Diniz, de Marcos Fabrício, etc, poemas que não são amostras do estilo ou da estética do[a]s poetas, que estão (qualitativamente!) acima de muitos aqui exibidos em 3, 5, até 10 poemas! Aliás, por que alguns [algumas] poetas têm direito a uma página e outros, 10? Não parece democrático. E não é por qualidade (quando nos importa a aristocracia...), pois muitos poemas são esteticamente frágeis, mesmo que dentro da temática.

      Quando o antólogo Wilmar Silva editou, em 2009, a contra-antologia PORTUGUESIA, não houve preocupação com os autores, os nomes sequer apareciam junto aos poemas, cujas autorias somente estavam disponíveis nas páginas finais. Aqui os autores voltam ao topo da página, nas sequências dos poemas (ordenados por autoria, não por cronologia), como uma moldura para o texto (e o extratextual fica por conta das minibiografias, com carreiras, currículos, obras e desfiles de títulos & medalhas). Alguns autores respondem por vários poemas, outros por apenas um.

     O critério será o de idade? Ou de status social? Ou de quantidade de títulos honoríficos? (Aqui ganham as autoridades, os acadêmicos, os membros correspondentes, os curadores, os premiados, os vencedores de concursos, menções honrosas, honoris causa, honra ao mérito, medalha da Inconfidência, etc) São critérios extratextuais, nada dizem da estética ou do estilo. Ser acadêmico, colecionar títulos, tal não qualifica o/a poeta – antes, pode desqualificar.

     Não que o poeta precise ser um marginal, ou marginalizado. Pode muito bem ser um funcionário público ou professor universitário ou profissional liberal ou empresário de sucesso ou político profissional ou diplomata de carreira. Não importa. Aqui vamos tratar de uma leitura estética, sem ideologias. Nossa preocupação é mais com logopeia, fanopeia e melopeia do que engajamento, é mais sobre elaboração do que expressão, é mais sobre linguagem do que confessionalismos.

     Logo é preciso que o crítico, o leitor atento, tenha um critério, visto a multiplicidade de vozes aqui. É uma selva de variedade de estilos e estéticas que é de assombrar. Alguns com explícita qualidade, outros que apenas reptem fórmulas textuais, como manda o bom cânone. Outros, iconoclastas, querem destroçar o cânone.


Variedade de estilos


     Temos poetas de estilo classicista, ou neobarrocos, os cultivadores de sonetos, os modernistas, os concretistas, os pós-concretistas, os da poesia-processo, aqueles dados às paródias, pastiches, colagens (cut-ups), os poetas da Escrita, de âmbito psicanalista, os/as autore[a]s de poemas em prosa (não confundamos com prosa poética...), poetas que militam pela presença feminina, pela participação das ditas minorias, que clama contra os cânones. É uma polifonia de vozes autorais, além das polifonias internas de cada poema / texto. Multiplicidade de leituras também possíveis – não há dogmatismos aqui.

     Ao lado de poetas que cultivam poemas formalistas, cuidadosos sonetos, comportadas metáforas, previsíveis imagens líricas ou oníricas, temos poetas que desafiam até o bom senso, que não se prendem a nada, muito menos métrica e rima. Há os modernistas da geração de 45, ou aqueles que leem Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, assim como os modernistas / pós-modernistas (os limites não são claros...) que mesclam tradição e vanguarda, um conteúdo lírico numa estrutura pós-concretista. Ao lado de poetas que nutrem uma erudição classicista a la Alexei Bueno ou Marco Lucchesi, tais como Antonio Miranda, Márcio Almeida e Salomão Sousa, temos poetas que preferem o antiacademicismo, o ludismo e antilirismo da geração mimeógrafo ou marginal, marcada pelos iconoclastas Cacaso, Chacal e Waly Salomão, assim Alécio Cunha, João Diniz, Marcos Fabrício, Beatriz Myrrha, Washington Assis.

      Várias colagens (cut-ups) ao estilo dadaístas, surrealistas, renovado pelos Beats, e pelos publicitários dos anos 80... Assim o destaque da obra de Ronaldo Werneck, poeta, tradutor, agitador cultural, de Cataguases / MG, terra dos modernistas Ascânio Lopes e Humberto Mauro e do surrealista Rosário Fusco, além do neo-realista Luiz Ruffato. De fato, Werneck, desde seu clássico Selva Selvaggia, de 1970?, apresenta seus versos dispersos pela página, a la lance de dados de Mallarmé, com uma disposição gráfica de colagens, referências e imagens, sempre a jogar com o leitor, que deve reconstruir, no ato de leitura, a rede de significações.

     Mais além do poema-processo, Werneck atualiza-se, tal qual um Affonso Ávila, modernista além dos modernistas, construindo uma poética enquanto desconstrói um cânone. Vejamos Aço e Estilhaço, na p. 221, entre o lírico e o áspero,

são ásperas as veredas
                      do amor pouco a pouco
despedaçado
[…]

são ásperas
as veredas de aço
                     motor em pane
tumor tocando
                    o corpo / estilhaço

são ásperas
e o amor
                 pouco a pouco
                            despedaçado

são ásperas
                   e o amor

essa flor esquerda
                    subitamente despetalada


     Temos a questão da Escrita, tópico do/as poetas-psicanalistas a se apoiarem teoricamente em Freud, Lacan, Barthes, Blanchot, para se entregarem às leituras de Clarice Lispector, Marguerite Duras, Nelida Piñon, Maria Gabriela Llansol... Assim o texto da poeta e psicanalista Renata Araujo Donato, que destaca a condição do autor enquanto leitor de si mesmo,

A escrita me chama. Cabe a ela dizer o que escrevo. Suas palavras chegam a
pedir que minhas mãos falem. Sou apenas passagem. Um corpo de passagem
numa tentativa de representar. Sou apenas aquela que toca o papel com a
pena e a tinta. Não sou eu, aí nem existo. Há uma solidão, um abandono. Em
mim somente uma barra, uma barra que me divide e possibilita a escrita.
Cabe a mim depois de um tempo, poder ler o legado, pois não sou mais
autor e sim leitor das letras deixadas. (Corpo de Passagem, p. 204)


       Exemplo de poema em prosa. Os 'poemas em prosa' não são confundidos com a 'prosa poética', pois nesta temos uma prosa, um tom narrativo, mas densa com elementos poéticos, enquanto naquela há um poema, de tom lírico, apenas não disposto em versos. O poema em prosa estruturou-se e ficou célebre entre os simbolistas, com Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Lautréamont, sendo, entre nós, cultivado por Ana Cristina César, Hilda Hilst, Afonso Henriques Neto, Marco Lucchesi, Floriano Martins, além de Noé Zayas [República Dominicana], aqui em BH temos a Adriana Versiani, autora de Livro de Papel [2009].

      Outro exemplo de belo poema em prosa é o texto A Tenista, de Lúcia Serra, poeta e pesquisadora, na p. 142, onde algo é narrado, mas o que chama a atenção é o como é narrado, a própria linguagem se deixa em evidência, mais do que alguma mensagem,

Meus olhos vagueiam por onde teu corpo labora. És pássaro forjando o
arremesso. Danças e desenhas no saibro a sanha do passo. Imagino-te peixe e
cristal na gênese do mergulho. A curva dos seios e a linha das coxas compõem
geometria de encanto e músculos: cantata de movimentos. Antecipo, sob o
algodão, o sol bordando sal em tua pele desnuda. Experiencias agruras e
desfrutas no singular do tempo um átimo sob a ótica da bola. Seu felpo e
penugem, insígnia de gema e costuras. Não fora a raquete também feminina
e dócil a desfechar, de tuas mãos e braços, tenaz o golpe, talvez, o gozo se
furtasse ao gesto. O balé pressupõe ritmo e compasso e teu peito arfa. Inspiras
e expiras. Depois, o ar afoito se afrouxa e teu coração acomoda-se lasso.
Consciência e lucidez te remetem à alegria do toque e a bola, ela própria,
faz-se prisioneira de teu intuito. Não és tu que a prendes. É teu olhar que se
revela por ela apossado. A bola risca no ar o seu trajeto. Pontua, perfeita, seu
destino e, na paralela, fere fatal a seda vermelha da quadra. Acompanho a
manhã de teu ofício e bebo a serenidade semeada em teus lábios.


      Há vozes de gênero? Para falar de amor (seja eros ou ágape)? Há voz masculina ? Há voz feminina? Primeiramente, pensemos o que seria o 'masculino' aqui. Uma certa estrutura sucinta, objetiva, lacônica, racional, irônica, até áspera? E o que seria o feminino? Mais afetivo, subjetivo, lírico, digressivo, até passional? Assim, sem dúvida, Hemingway, Graciliano Ramos, Henry Miller, Bukowski seriam masculinos, enquanto Virginia Woolf, Gabriela Mistral, Clarice Lispector, Marguerite Duras, Ana Cristina César, Maria Gabriela Llansol seriam femininas.

      As mulheres teriam mais voz feminina e os homens, mais masculina? Muito óbvio, não? Mas o que dizer de autores de 'voz feminina', tais como Henry James, James Joyce, Fernando Pessoa, Marcel Proust, J. G. Noll, Herberto Helder, Luís Miguel Nava, etc ou de autoras de 'voz masculina', tais como Simone de Beauvoir, Gertrude Stein, Hilda Hilst, Ana Miranda, dentre outras? A questão da voz está além do gênero, que seria limitador. Bons autores sabem falar tanto 'masculinos' como 'femininos', assim Proust, Joyce, Thomas Mann, Guimarães Rosa, Ginsberg, Hilst, para citar alguns/ algumas.

      Algumas poetas militam pela voz feminina, que dizem abafada no mundo masculino, até machista. Combatem a misoginia nas artes, exaltam certos símbolos do feminino, certas marcas do ser mulher. Assim, infelizmente, acabam limitadas. O gênero não pode limitar o/a poeta, uma vez que a poesia não tem sexo. A poesia tem sinceridade ou fingimento, confissão ou elaboração, mas sexualidade não. A sexualidade está no/a autor/a e no/a leitor/a, não no texto. Assexuado, este é uma voz que terá receptores distintos, que vão ler a partir de seus horizontes de expectativas.

      Assim, é claro, que as poéticas de Whitman, Lorca, Pasolini, Piva não são recomendadas apenas para homossexuais, assim como Sylvia Plath e Ana Cristina César não escreveram apenas para mulheres. Além de sexualidade, a poesia tem todos os sexos, onde tudo é sexo, num reinado do pansexualismo, quando a poesia encosta seu corpo textual a todas as coisas. Quando lemos um poema não nos interessa se foi homem ou mulher, hetero ou homossexual, liberal ou marxista, estas condições extratextuais (geram o texto, mas não o explicam nem o esgotam...) que não definem o 'como ler' a escrita. No máximo não dão um contexto (onde? quando? quem?) que apenas emolduram o texto.

      Assim são verdadeiras gratificações quando encontramos poetas que falam além da sexualidade, que falam para todos os sexos, que na sua fala não faz classificações ou discriminações. Ler um poema de Whitman é acessar uma voz atemporal, afetivamente próxima, toda sexual (sem distinguir sexo X ou sexo Y). é um exemplo, há outros. Aqui, na antologia, temos ótimos autores, da confissão e da elaboração, que nos deixam belos poemas, como se escritos para nossa recepção.

     Leida Reis, com Beijo o Prisioneiro [p. 130], ou Augusto Guimaraens Cavalcanti, com Remédio Veneno [p. 47], ou Caio Junqueira Maciel, com Poema de Santiago [p. 58], ou Cely Vilhena, com A Esfinge [p. 73], ou Regine Limaverde, com Minas [p. 200], ou Elizabeth Rennó, com Paradoxo [p. 113], ou Maria Lúcia Simões, com O Início [p. 164], todos autores de belos poemas que fazem valer a publicação desta antologia, que tanto nos deixa insatisfeitos com a ausência de poemas de poetas significativos (que existem sim! A poesia está mais viva do que nunca! Basta uma olhada em redes sociais, revistas literárias, eventos culturais!), tais como Adilson Alchuiy, Lecy Sousa, Leonardo Morais, Adriana Versiani, Rodrigo Leste, Floriano Martins, Vinicius Magalhães, Ikaro Max, Neuza Ladeira, Diovani Mendonça, Nelson Alexandre, Flávio Castro, dentre tantos.

Remédio Veneno (a melancolia do azul)

Todo amor é bélico, requer
navalhas e pequenos barcos selvagens
de papel, requer que se improvise
escultura de sua poeria, que se faça diamante
de sua ruína
Todo amor é bélico, manancial do Presente,
semente de uma tatuagem mental, o amor faz
sangrar os pássaros.
Todo amor coleciona abismos
como quem recolhe precipícios, como quem
acolhe a aridez de sua chuva;
sem os dentes não há amor possível;
suas estruturas descem para a vida
Todo amor é bélico, asa que paira no azar,
seu corcel é aflito, wild horses,
de sua cloaca humana jorra ouro, de seus
objetos nascem pequenos deuses efêmeros.
O amor não deixa sobreviventes.



A Esfinge

No mapa do meu corpo
um olho
imerso em círculos e pálpebras.
Meio a secantes, tangentes
meridianos e paralelos
rutila justo, perfeito, sereno.

Uno, completo, reluzente.

Atento a limites
discorre livre
no seu distanciamento e forma.

Atento a obstáculos
desliza rotas planas e abertas
projeta-se no infinito.

Atrai-me. Fustiga-me.
- O que sou
a que vim?

- Por que me olhas fixo
num mapa semovente
represo o corpo liberta a alma?

Uno, integrado, presente
sem arestas e sem ângulos
instiga-me.

- Decifra-me ou devoro-te.

- Devora-me !



Paradoxo

Como a dos lagos
é curta a existência
e com eles
termina
sufocada pelos sedimentos da vida
que a torturam
profundos por verticais movimentos
Ei-la doce como um Baikal
ou salgada como o Mar Morto oriental
Se dores se escoam
e preenchem aquíferos de ombro amigo
emerge em nascentes
aflora ao ar livre
A superfície tranquila
em calma vivência
possui forças escondidas
símiles de um rio modelador
que escava seu canal
formando vales e profundezas
Escoa sobre rochas
corta colos de meandros
gera lagos solitários
Por moderador secular
das marés surge
o agridoce de um mar dantesco.


     O poema de Maria Lúcia Simões, que descobrimos ter formação em psicanálise, além de promotora de eventos culturais, é belo e conciso em sua forma poética-narrativa como uma fábula, ou lenda, uma parábola, uma página de realismo-mágico, como uma crônica de Macondo, o universo das obras de Gabriel García Márquez, como um poema do mundo-primevo de Manoel de Barros, onde as vidas se entrelaçam com a paisagem, o referencial e o surreal, o prosaico e o lírico, quando o literário re-cria o histórico,

No princípio, as carroças vinham desgarradas, poucos cavaleiros,
com seus cabelos vermelhos de terra.
Em volta da grande árvore se aqueciam em fogo brando.
No crepitar da galharia, os homens acendiam os pitos de palha,
toscos cigarros feitos a canivete.
E o nome foi-se enraizando: pau-de-binga.
Nas noites escuras, as mulheres, com frio e medo,
se encostavam em seus homens, e o povoado foi nascendo.
Os negros chegavam trazidos pelos donos e juravam que,
durante a chuva e a trovoada, o saci acendia no lume o seu cachimbo.

Assim contavam os antigos.


     Como o nosso objetivo aqui é falar dos bons poemas da antologia O Amor no Terceiro Milênio, nosso artigo é deveras breve, trata-se mais um apanhado de nossas reflexões sobre o que é escrever poesia hoje em dia. Pena que a antologia desperdice valiosas páginas com discursos, textos sem eira nem beira, vazios (sim, páginas em branco!), anúncios de consultoria ou clínica, elogios à confrades, pseudo-artigos, pseudo-resenhas. (Às vezes, o antólogo parece testar nossa paciência...) E tanta boa poesia deixada de lado! É de dar insônia! Mas o que nos salva é que temos sempre gente da nossa turma (como bem sabe o poeta-arquiteto João Diniz, em Turma, na p. 128).

soldados da humanidade, aposentados criativos,
empolgados idosos economistas da distribuição,
urbanistas da natureza, maduros adolescentes
feiticeiros de férias e sacerdotes do convívio …

provisórios melancólicos, anjos na multidão, fadas com caridade
musas de analfabetos, ricos em amizades, carentes esperançosos
cônjuges em liberdade e pacientes conquistadores …

inspirados ociosos, ébrios de consciência, galantes não ansiosos
abastados desprendidos, modistas sem estação, líderes generosos
fatigados com disposição e sábios aprendizes...

tem de tudo na minha turma.





Leonardo de Magalhaens

[Leonardo Magalhães Silva / Fale -UFMG]




links para sites de divulgação de poesia :


Germina Literatura



Tanto Literatura



Cronópios



Releituras



Jornal de Poesia



Memória Viva



Antonio Miranda [com vários poetas]



Antonio Cicero – Acontecimentos



Mallarmargens



As Tormentas



A Magia da Poesia



Poesia Ilimitada






...




quarta-feira, 15 de julho de 2015

sobre poemas de Adilson Alchuiy






Sobre os poemas de Adilson Alchuiy [Santo André/SP]
divulgados no facebook do autor [em 2014/2015]


Uma Poética antenada com o Mundo


para que encontremos nosso desequilíbrio
oportuno na quietude dos tesouros em livros
de poesia...” (Acorde de Verão)

      A poética de Adilson Alchuiy é marcada pela variedade. Várias camadas de significação e ressignificação. É possível ler numa direção, e também em outras. Podemos acessar vários níveis de referências, além dos jogos com a linguagem. Há todo um ludismo em fazer o[a] leitor[a] entrar no jogo de releituras, paródias, pastiches. Temos uma dissolução de referencial & surreal em doses quase diárias.
      Encontramos múltiplas imagens surrealistas, intertextualidade, referências à cultura pop (músicas, bandas, pop-stars, filmes, diretores, artistas plásticos, etc), às personagens das fantasias, dos contos de fadas, ou das mitologias, ou terras mágicas, ou paraísos de evasão (Terra de Oz, Terra do Nunca, Pasárgada, etc), ou ruas de São Paulo (Augusta, Largo do Arouche, etc) tudo num emaranhado de possíveis leituras, que desafia quem ousa ler.
     Engendrada no seio cultura pop sua poesia carrega referências múltiplas aos ídolos da música, principalmente rock, brasileiros e internacionais. O mais destacado é Bob Dylan, voz do rock'n'roll ou do folk rock desde os anos de 1960, nos Estados Unidos, grande influenciado pela Beat Generation, também referencial nos poemas. Encontramos Joe Cocker, Hendrix, Janis Joplin, vozes de Woodstock (festival de 1969), além de Chuck Berry, Jim Morrison, David Bowie, John Lennon, Patti Smith, Zappa, e as bandas The Beatles, Grateful Dead, T. Rex, Grad Funk Railroad, Ramones, etc.
     Estão presentes os cantores nacionais Cazuza, Renato Russo, Jorge Mautner, a banda Os Mutantes. Além do rock temos as referências ao blues de B.B. King, ao jazz de Miles Davis e Coltrane, à música erudita (ou clássica) barroca de Bach e Mozart, ou romântica de Beethoven. Ou à ópera Aída (1871) de Verdi (compositor italiano) ou ao blues-jazz-soul de Ray Charles, etc
     
      Referências aos poetas românticos, místicos, sejam clássicos ou malditos, ou modernos, tais como Dante, Shakespeare, Goethe; Lord Byron e Edgar Poe; William Blake e Yeats; Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Piva, Bukowski; mais Rilke, Breton, E. E. Cummings, Sylvia Plath, Marianne Moore, Ana C., Hilda Hilst, etc
     Artistas plásticos não faltam, pois são citados o italiano renascentista Leonardo da Vinci (famoso por sua Gioconda, ou Mona Lisa), os holandeses Rembrandt e Van Gogh, o francês Monet, os modernistas Dalí e Picasso, além de Frida Kahlo, Andy Warhol, etc
     O cinema aparece com seus diretores, sejam os clássicos Chaplin, Fellini e Goddard, seja o inovador Kubrick. Não faltam os pensadores e cientistas, tais como Freud, Lacan, Einstein, que deixaram suas marcas na cultura, além de suas áreas de atuação.
     Contudo o mais icônico na poesia de Alchuiy é o poeta Roberto Piva, leitor de Whitman, Pessoa e dos modernistas, influenciado pela estética surrealista e pela geração Beat na metrópole paulista. Através de Piva chegamos aos poetas Beats, os “fantasmas beats nas esquinas”, seja nas galerias, na caronas, em Larimer Street ou no México, as figuras de Neil Cassidy (“beat insano Neil”), Jack Kerouac (“meu herói Jack”), Allen Ginsberg, Burroughs, Gregory Corso, juntos ao pai da psicodelia lisérgica, Mr. Timothy Leary.
     Com o diálogo com a poética de Piva, cultivador da estética de André Breton, guru francês, há um desabrochar de imagens surrealistas, que pontuam os poemas com devaneios, exageros, oxímoros, antinomias, absurdos, mixagens oníricas, que conseguem encantar e causar arrepios, quando mais belo por menos compreensível,
o sol à deriva afoga o horizonte” ; “chuva de salivas amargas & pérfidas”; “com o silêncio das sombras dancei” (Por el camino [12.12.14])
hoje no baile de sombras / o deserto absorve todos os sóis” (Sempre nunca 
[19.12.14])


silêncio da boca mordida por beijos roubados”; “um sorriso de vento por debaixo 
da pele enfurecida!” (Presente [14.1.15])


teu vestido de vento”; “dançar na luz desequilibrada” ; “tuas pernas de leito seco 
com rijas paisagens talhadas” (Ninguém ou um nome impróprio à todas 
combinações [07.1.15])


cuspir luas na estrada sem fim do gozo”; “deitar nas enseadas do sonho / 
dividindo o voo ao nadar no sangue dos sóis / desenterrados do silêncio.” (Irmã do 
Abismo [28.1.15])


talvez este amanhecer em Rimbauds desgraçados / escrevendo o último poema 
sem a perna / enterrada com vermes atravessando o osso / com o sol sob a terra 
batida!” (Sem a tamanha importância [03.2.15])


canal de fontes sinuosas até erigirem chamarizes no cérebro ...” (Existência 
[04.2.15])


caminho de solidão nas noites com seu ritmo mecânico … / enquanto 
soberbamente exponha teu silêncio de exílios / nas beiras dos abismos frenéticos 
...” (Amor Sublime [11.2.15])


esbarrei nesta beira com o sol gotejando / em sombras amorfas” (Convulsão 
[24.2.15])


      Lembramos que as características da estética surrealista são bem marcadas, com a exploração do mundo onírico, com a valorização do delírio sobre a observação, a busca da superação da escrita padronizada, com o desejo de deixar fluir o inconsciente, num jorro de palavras, de modo automático (daí dizer automatismo), não apenas pelo irracionalismo, mas a integração de consciente e inconsciente, num ser humano íntegro, sem separações nem departamentalizações, pois somos únicos e unos.


eu tento renovar o fluxo sanguinário / das ruínas... / me esforçando em impedir o 
vento / nos cabelos das estátuas...” (Tocaia [25.3.15])


depois que você partiu / comecei condicionar a mortadela / na creolina […] 
comentar música clássica com as baratas” (Reclusão Butolínica [02.4.15])


a depressão contaminada das ruas / roubando das sombras / a riqueza da lua 
sem bolsos” (Assalto a Sonhos Armados [08.4.15])


 “névoas enganadoras em palavras de poemas mortos” e “pescando em ilhas 
peixes luminosos” e “perto da fiação elétrica de sonhos quintescendo infâncias” 
(Cotidiano em si [10.4.15])


ventre de relógios com a ferrugem / nas engrenagens mortas … / sobreviventes 
pletóricos na vida / consumida por vícios nos sonhos / de partidas...” (Verdadeiro 
Triângulo das Bermudas [16.4.15])


tentei elucidar o caos acorrentado / nos tornozelos artificiais do paraíso... /
 
só para ver os rastros nos desertos / a ilusão cansada em abrir caminhos.../ 
o mar regurgitar poentes esquecidos / nas enseadas dos sonhos” (Casillero del 
Diablo Devil's [24.5.15])


O vórtice incerto dos delírios / espirais luminosas feitas por asas / no abismo /
 
a solidão empalidece as noites / fluem desorganizadas em pesadelos /
 
minha fuga desperta as lâminas” (Divino Comédia [26.5.15])


âncoras no fundo de rios escravizados / por enchentes no rosto surpreso das 
pedras / afogadas pelas almas das raízes” (Bárbaros ou quase [02.6.15])


     Percebemos um sensacionalismo – em turbilhões de sensações ou alucinações, ao estilo sensacionista de Walt Whitman (“eu contenho multidões”) ou de Álvaro de Campos [Fernando Pessoa] (“sentir tudo de todas as maneiras”) - que vem carregar o[a] leitor[a] num drama sem fim de figuras que se encaixam, lembrança que atrai lembrança, poema que lembra filme, música que reativa memória, nas várias camadas que podemos acessar.
      Também nos excessos de reticências há algo de Simbolismo, de inconclusão, um não saber dizer, um deixar em suspenso, a ideia em aberto... temas também presentes no simbolismo, tais como a lua, o luar, os espectros, o jogo de luz e sombra, os rituais, busca do místico – aqui não o transcendental, mas o incompreensível, o inalcançado (visto ser inalcançável).


labirinto de sensações palpitantes que fazem gemer / a alma num nevoeiro 
noturno” (Anjos em Père Lachaise [25.2.15])

olhando as dimensões lúdicas da lua na abertura / comum das janelas...”
(idem)
noites nos becos com orgias refletidas / nas luas vomitadas...” (Anabel [18.2.15])


num dia de espelhos com montanhas / nas janelas” (Acordes [ ] )
vigília da noite cheia de espectros que dançarão / sob a lua os rituais perversos 
da solidão / encantada da morte” (Fuga à Libertação [26.2.15])


devoradores da noite & todos os subterfúgios / rituais lentos com todos os 
sacrifícios / tatuados na pele... / sangue das flores no pomar dos delírios” 
(Beatsurrealistas [21.5.15])


o sol rasgou as cortinas / a lua proporciona sensações vampiras / sugando o 
macio dos travesseiros & almofadas / jugulares perfuradas pelo tempo” (Solidão 
Decorativa [07.4.15])


      Em sinestesias golpeia o antipoema “Avanço o desodorante multimídia” [13.4.15] com suas imagens antilíricas, de sujeiras, imundícies, odores nauseabundos,
como um conto de Lispector / por mais asqueroso que seja /devemos sentir aquela 
nódoa das baratas / amassadas? / aquele ranço apodrecido de uma ratazana


em referências a obras de Clarice Lispector, com a barata esmagada em Paixão segundo G.H. (1964) e o rato morto em Perdoando Deus (conto em Felicidade Clandestina, 1971), quando há o anti-lírico com a presença do asqueroso, no que se aproxima dos indigestos Cantos de Maldoror, de Lautréamont, pré-surrealista uruguaio-francês, onde o sujeito poético está coberto de podridão, devorado por insetos, sentindo nojo de si mesmo.
       Para o poeta o sensacionismo está ligado ao exercício da imaginação. Sim, pois a imaginação deve ser exercitada, com os mergulhos no imaginário, com o cultivo de devaneios, com o plantio de bizarrices, que tudo converge para um não-sentido do existir, posto que ter certezas sobre o aqui-agora é aceitar convencionalismo, é o 'universalizar-se no senso comum' que denunciava Roberto Piva. O poeta está consciente, em meio aos delírios, a ponto de conceber um Convite para a Imaginação [20.5.15])

eu evoco as pulsações
que eu sentia na escuridão de um sorriso
nas noites de badernas no coração perdido
dos vícios & aventuras
palpitação que se alastra da periferia
para os subúrbios burgueses
com encontros marcados com meninas
virgens que hoje dançariam na boca
das garrafas & vomitariam no assoalho
de
porches ou outros conversíveis de marca!
eu chamo os vagabundos mediúnicos
tenebrosos que detonam qualquer superfície
dos planetas...
alimentados pelo vírus da loucura
a doença pecaminosa de um desastre iminente
por furacões nas veias armadas
de tudo que for contagioso para sobrarem
apenas ratos & baratas...
eu conclamo os exaustos das estradas
que bebem o elixir da lua sinistra
como um combustível interminável
rumo às estrelas...




      Em seu exercitar da imaginação, encontramos o Eu nos poemas, uma marca de tom pessoal, o poeta, que exercita seu olhar metalinguístico – quem escreve? por que escreve? o que ganha ao escrever? - sobre a Escrita e seus precursores, quem influenciou, quem desafiou a superar, desde Dante, a passar por Shakespeare, até os simbolistas, os modernistas, os surrealistas e os poetas Beat,
eu pertenço tanto ao que escrevo / que esqueço em transformar isso
em poemas... / Artaud, Breton, Rimbaud
tento encarnar esta fauna sem a pretensão / em ser alguma coisa
(Não me importa [29.5.15])


eu desenho & escrevo poemas / num lençol” (Branco Amor [29.5.15])


eu simulo o inferno / Dante nunca imaginou as torturas / no meu fogo!” (Divino 
Comédia [26.5.15])

eu componho aparências / experimento as manifestações interativas / além das 
janelas” (Avanço o Desodorante Multimídia [13.4.15])




      As marcas do surrealismo não estão distantes das referências à cultura pop, antes tudo está enredado, entrelaçado, sem separação em gavetas, sem limites entre fotos e canções, livros e filmes, soundtracks e pinturas, pois tudo é sentido em conjunto numa Gestalt desvairada (ao melhor estilo Mário de Andrade) onde tudo é a somatória de tudo, aleatoriamente, por saltos em links que nos escapam,
um leque de Frida para descabelar os bigodes / de Dalí que daqui pra lá desenhava nos sonhos / um rinoceronte belga com cauda de um pavão / no museu colorido de nossa imensa tristeza...” (Rusgas de Trinidad [28.3.15])


assim faziam os Beatsurrealistas [21.5.15], aqueles poetas do surrealismo tardio que vertiam a poética do teatro do absurdo em plena Beat generation, com o fim do pesadelo da Segunda Grande Guerra, sim, aqueles
anunciadores das apoteoses da percepção
 
inesgotável fluxo das sensações no universo
 
por virtudes salvadoras ANTES...

[...]
a arte minoritária da poesia em Piva
em Rimbauds ressuscitados na praça
sentados no banco dos réus julgados
por pecados em existirem
DEPOIS...


      A fusão de poema e música está mais que evidente em mais referências ao músico Bob Dylan, leitor dos poetas Beats, autor de Like a Rolling Stone, música de 1965, recuperada no poema As Pedras continuam rolando [16.5.15],
vertigem na rouquidão de Dylan / estradas férreas onde a maquinaria
espirra fumaça no céu cinza / uma balada pode mudar sua vida
um poema transformar a poeira em vários/ fantasmas...
e


trovador no pátio aberto do mundo / servindo ao coração pulsante das aventuras... / 
bufão, andarilho, qualquer coisa que seja/ de passagem ou às pressas...



      Os poetas Beats estão em todos os lugares nesta poesia de lembrança e recuperação, estão sempre entre as imagens surrealistas e as referências ao mundo da cultura pop, com seus meandros de contracultura e assimilação, libertação e consumismo, onde não é possível dizer onde acaba isto e começa aquilo, tudo é entregue à um olhar dado ao imaginário, que se nutre de todas as sensações, não diferencia, não cataloga, apenas rememora, tem visões,
alguns beats cumprindo o eco dos fantasmas / nas galerias vazias” (Decorei Esta 
[19.2.15])

[Galeria? Pode ser um link para a Six Gallery em San Francisco com a leitura de  
Howl (Uivo) por Ginsberg em 1955]


li Rimbaud ri das aventuras beats nas estradas … museus nas botas!” 
(Convulsão [24.2.15])

o vagabundo Jack sorri para fantasmas” (Meu Herói Jack [1.4.15])


      No poema Passarela da Moda Beat [10.4.15]) é mostrada a contracultura antes, que hoje é parte da cultura, visto ser é comum o uso de jeans surrado, ou rasgado, a jaqueta rústica, as minissaias... A moda saiu do gueto e direto para as vitrines de grifes, com “jeans desfiados cheirando guilhotinas / parisienses ou flores do gueto... “ que não mais agridem, mas fazem parte da paisagem fuliginosa das grandes cidades.
      Em seu Convite para a Imaginação encontramos os “vagabundos mediúnicos”, ou, como dizia Jack Kerouac, os Dharma Bums, ou andarilhos iluminados, seres evocados e invocados, advindos de outro mundo, a saber, o passado sempre rememorado,
eu conclamo os exaustos das estradas / que bebem o elixir da lua sinistra / como 
um combustível interminável / rumo às estrelas...


     Evocados, pois os poetas Beats fazem parte de um passado que lembramos com saudosismo, do tipo, por que não vivi na época dos Beats?, numa outra era de contestação, de busca de superação, de outra cultura que não a suicida civilização ocidental criadora do genocídio e da bomba atômica. No mais, importava libertar-se! Materialmente, espiritualmente, sexualmente! O poeta vê hoje com amarga ironia: “a devassidão beat te assusta?” (Fome Ruiva [25.5.15])
      Mas não é devassidão, pois sexo é libertação, não se trata de pecado, mas de comunhão, basta uma leitura do psicanalista judeu austro-húngaro naturalizado norte-americano Wilhelm Reich (1897-1957), a lembrar que a história da sexualidade é um testemunho da repressão (assim as abordagens do francês Michel Foucault (1926-1984) e do alemão Herbert Marcuse (1898-1979))
      A poética de Alchuiy é de um surrealismo tardio, via Piva, o leitor voraz, para quem é impossível a vida sem poesia. Piva, sim, é um Beatsurrealista, como bem defende Claudio Willer, poeta, crítico e tradutor, amigo do nosso xamã. É uma poesia em diálogo, aqui com a poética de Roberto Piva, assim como Piva dialogava com as figuras poéticas de Mário de Andrade, Jorge de Lima, Lautréamont, Whitman, Lorca, Rimbaud, Ginsberg, Neruda, Artaud, etc em Barro, Carvão & Cinzas [10.4.15]
eu vi os demônios de Gomorra / Roberto Piva / porque ontem eu atravessei o 
inferno / inventado pelos paraísos artificiais / dos suplicantes por milagres nas 
esquinas...


lembra os 'paraísos artificiais' de Baudelaire após uma travessia do inferno, a la Rimbaud, e lembra a poeta 'marginal' Ana Cristina César, dona de uma poética intimista, confessional, sentimental, mas também irônica.
vivo nos cometas do êxtase caindo no deserto / das mentes sãs que caçam / 
borboletas orbitais na boca mineral / de Ana Cristina César & ossadas geladas / 
misturadas ao mel do céu gótico evocando uma santa


     Encontramos uma poética que tem densidade, tanto referencial quanto surreal, em constante diálogo, atenta ao mundo ao redor, sempre a emitir opiniões, tecer considerações, em digressões, coerente numa estética que se quer automática, sem preocupação com a forma, antes deixa verter um conteúdo a transbordar do inconsciente, de uma mente já demasiadamente repleta de cultura pop, de mil livros lidos, de mil filmes vislumbrados, mil propagandas de TV, mil músicas ouvidas, mil pratos degustados. É deste caldeirão de vivências & experimentações que advém a força da poesia torrencial, quase diária, de Adilson Alchuiy, um herdeiro do Beatsurrealismo.




jun/jul/15




by Leonardo de Magalhaens

(Leonardo Magalhães Silva)

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